— Queres ir? — indagou Lino, espichando-me
um convite. Li: A Sociedade Científica, ahn,
ahn... convida, ahn... a conferência
versará sobre a História da Terra.
— É; a tese é catita; vais?
— Está-me apetecendo conhecê-los aos
nossos sábios.
— Sábios — rosnei —, gens ennuyeux...
— Nem sempre — contraveio Lino. —
O assunto é magnífico — e depois, que diabo! uma penitenciazinha de vez em quando,
por amor à ciência...
— Pois vamos — resolvi com intrepidez.
— Às oito, rua tal.
— Lá estarei sem falta.
***
Ao assomarmos à porta já as cadeiras
do grande salão se pintalgavam de graves sobrecasacas científicas, encimadas por
carecas luzidias, em cujo espelho punha gangrenas de luz (perdão, Apolo!) a luz
violácea do arco voltaico.
Entramos com religiosa compostura,
pisando com passos humílimos o augusto piso do Pagode da Ciência.
No rosto do meu amigo vi uma leve
expressão de terror sagrado. Os quíchuas, quando davam de chofre com o Eldorado,
haviam de ficar assim... Lino comovia-se deveras e foi balbuciante que cochichou:
— Sábios, hein?
Sentamo-nos devagarinho e pusemo-nos
a olhar. Novas sobrecasacas chegavam, aos magotes de três e quatro,
compenetradas, pensabundas. Eram novos sábios de variegado estilo. Havia o estilo-fiambre:
gente vermelha, com sangue à flor da pele em permanente congestão. O estilo-melado:
gênero de importação alemã. O estilo-ball:
queijos de Palmira com o vermelho substituído por um palor circular de cabelugens
ralas. O estilo-clorose: rapazelhos de peito cavo e barba a espontar ingenuamente,
macilentos de tez, olhos de bezerro disentérico, em cujas meninas — meninas dos
olhos — pareciam boiar hipotenusas de braços dados a binômios de Newton.
À nossa destra suava uma rubra apoplexia
alemã, enchouriçada em sobrecasaca de debrum contemporânea do iguanodonte, cujas
costuras cediam à pressão das enxúndias comprimidas; sua mão gordita, recoberta
de dourados pelinhos, alisava a grelha cor de fogo como quem alisa um gato de luxo.
Mais adiante, um amplo burguês, barbaçudo,
verrugoso, bexiguento, fungava a suar.
À sua frente, sorrindo com bondade
em meio dum grupinho amigo, uma espécie de criatura do sexo neutro, acondicionada
em alpaca, sem um só enfeite e cujos cabelos grisalhos se erguiam em ríspido pericote
sob a copa acartolada dum chapéu masculino. Discutia Cuvier.
— É a doutora Mariote... — sussurrou-me
o Lino. — Uma sábia sapientíssima!...
Mais além, um oculista de nomeada;
depois, um pomólogo; em seguida um filósofo, uma parteira, um charlata, um lente
de geometria, um fisiopsicopatologista.
Nós, miserandos intrusos, vexados
da nossa espessa ignorância a dois, comentávamos baixinho, com respeitosa deferência,
as efígies hirsutas daqueles paredros que davam de tu a Minerva. Lino nem falava:
ciciava tatibitate. Aquela face da sociedade nos era de todo desconhecida. Tudo
ali cheirava a novidade. O próprio ar nada tinha do ar comum das ruas: pairava nele
um cheirinho sutil a raízes cúbicas.
À frente do salão havia uma comprida
mesa em cujo centro o presidente da Sociedade — um rolete de homem cor de salame
— cofiava os bigodinhos ruivos, bamboleando no ar pés que não alcançavam o chão.
Ladeavam-no dois bonitos secretários a remexerem atas. Sobre a mesa, enfileirada,
uma récua de bichos pré-históricos em miniatura — estegossauros, plesiossauros,
iguanodontes e um mamutezinho que escancarava a goela vermelha num urro mudo.
— Dlin, dlin, dlin!... Está aberta a sessão — rosnou o presidencial salame.
O secretário mascou a ata — tá, tá, tá...
— Tem a palavra o conferencista.
Corre pela sala o bisbilho da curiosidade.
Galga a tribuna um homem. Roliço e pipote, tem a calva resplandecente, traz casaca,
óculos e convicção profunda. Prepara os papéis, tosse.
Novo psst! desliza pelo salão. Cai nele o silêncio curioso da expectativa.
— Minhas senhoras e meus senhores!
Me parece que a outro e não a mim, que sou o mais modesto membro da Sociedade...
Entreolhamo-nos àquele me com piscadelas gramaticais, e entregamos
nossos quatro ouvidos às palavras do Sábio. Após o exórdio da praxe, o orador veste
o escafandro da observação, apoia-se no pau ferrado da crítica, encavalga na penca
os nasóculos da análise e, sem tir-te, cai no mergulho do fundo sombrio das idades.
Vai aos períodos eos examinar gneiss e micaxistos; mostra exemplares ao
auditório, descreve-os com minúcia. Narra como vieram os primeiros vegetais — samambaiuçus
enormes e molengos — e como à sombra deles foram surgindo bichinhos tontos, sem
experiência da vida, admiradíssimos de verem casa tão grande posta a seres tão pequenos.
Fala com a segurança de um feto arborescente, testemunha ocular daquilo, transfeito
em sábio moderno. Diz e rediz. Vai e volta — porque o gneiss pra aqui, porque o gneiss
pra lá, porque o gneiss, o gneiss, o gneiss...
Depois agarra os trilobitas, os amonitas e mói, remói, tremói, pulveriza os pobres bichinhos, digressiona,
gesticula, sua: o amonita... porque o trilobita... não obstante o amonita...
bita... nita... e nita e bita, lá borbota ele ciência pura, híspida, hirsuta, inexorável,
num fluxo que berra por tampões de percloreto de ferro.
O tempo corre, e da torneira aberta
deflui caudaloso o jorro hermafrodita do palavreado greco-latino. O espelho da sua
careca tremeluz de inspiração. Seu dedo pontifical coleia riscos explicatórios.
E a linfa científica a jorrar, a jorrar durante quinze, trinta minutos, uma hora,
hora e meia...
O esgoelado urro do mamutezinho já
não é mais urro, sim bocejo formidoloso. E não o único. Pela sala outros se escancaram,
incoercíveis. A doutora reprime os seus com caretas. Algumas sobrecasacas cochilam.
O burguês das verrugas resfolga com maior estrépito e mais bagas de suor na testa.
E na tribuna a ciência a correr...
a farragem fóssil a desfilar inesgotável numa sarabanda sem fim: porque o gneiss, o micaxisto... não obstante o bita,
o nita... os conglomerados da Westfália,
as superposições devonianas, a sedimentação terciária, tá, tá, tá, tá...
Nesse ponto penetrou na sala um delicioso
casal, pisando de leve os passinhos de lã preventivos dos pssts. Ele, alto e elegante; ela, mimosa e feminina, tom exótico de
teteia cara. Sentam-se. Ele abre os ouvidos. Ela espevita o lorgnon e corre os olhos vivos de malícia
irônica pela assembleia inteira: pousa-os por fim na figura salpiconesca do orador.
Lino segue-os.
— Que graciosos! — diz, furando-me
as costelas a cotoveladas —; repara na ironia daqueles dois diamantes negros. Pousam
na careca do homem...
alisam-na com bonomia malandra...
agora descem, examinam o nariz... Riem-se os marotos — e da verruga talvez... Tentam
arrancá-la... irritam-se... fogem da penca... examinam o feitio da sobrecasaca.
Bom, deixaram em paz o homem... passeiam pela sala... dão com o chapéu da doutora
Mariote... Como se riem perdidamente os moleques!
Enquanto os olhos do meu amigo estudam
os maliciosos olhos da linda criatura, barafustam-se os meus pela goela do mamutezinho
que o dedo do sábio apontava naquele momento.
—... e apareceu então — dizia ele
— um animal de pelos duros e pretos, de presas recurvadas, cujo esqueleto foi encontrado
na embocadura do Iena e se chamou mamute...
Lino arrancou-me de golpe às goelas
do monstro e ao caçanje do sábio.
— Vê como ela boceja com graça.
De fato, a petulante boquinha da moça
escondia no leque um bocejo saciado; saciado e contagioso, porque logo em seguida
o sociólogo escancarou o seu, o pomólogo lá no fundo abriu outro, e o alemão da
nossa direita reprimiu um que prometia levar as lampas ao do mamute.
— Dez horas já! — espantou-se Lino,
consultando o relógio. — Há esperanças de fim?
— Qual! — gemi. — Ele ainda está no
megatério.
— E é comprido o megatério?
— Enorme. E tem vasta parentela. Só
depois de descritos os gliptodontes, os megáceros, os rinóceros e as hienas é que
há esperanças de entrarmos na terra do nosso avô pitecantropo. Coragem!
Às dez e mais inda o corrimento paleontológico
continuava copioso, sem sintomas de exaustão. Sistemas sobre sistemas amontoavam-se,
induções sobre induções, num mascar monótono de realejo elétrico. Nossas nádegas
protestavam. Novos bocejos insolentes amiudavam exigências: queriam sair já e já,
queriam passagem franca, bocas bem escancaradas — e nós lutávamos por conter-lhes
a má-criação.
E o chafariz científico a despejar.
— Há esperanças — sussurrei para o
Lino. — Já estamos no Homo sapiens.
— Bendito sejas, ó rei da criação!
Era verdade. O sábio penetrara no
homem. Mais cinquenta minutos de seca e pingou o ponto, convidando a assistência
a examinar de perto os fósseis amontoados sobre a mesa.
Estrepitaram palmas, e após o uf! de ressurreição encheu o recinto o sussurro
do “à vontade”, das cadeiras recuadas, do frufrutar surdo dos capotes enfiados,
dos espreguiçamentos risonhos.
— Que gostosura, um fim de seca!
A assistência aflui aos magotes para
junto à mesa a fim de examinar os bichos. Fomos na onda. Todos comentavam, queriam
pegar, apalpar os fósseis, cheirá-los, prová-los.
Com um estegossauro de palmo e meio
seguro pelo cangote, o sociólogo explicava ao pomólogo “de como pela restauração
de Cuvier se tinha ali um elo da vasta cadeia da evolução que Darwin descobrira”.
Ao centro da mesa o conferencista
desfazia-se em amabilidades de caixeiro, fragmentando sua ciência e distribuindo-a
em pílulas.
— Olhe, doutor — dizia o filólogo
—, olhe a baculite de transição de que
falei.
E para outro sujeito:
— Já viu, doutor, o magnífico exemplar
de hipurite que nos veio de Berlim? Nisto
ouvi ao meu lado um resfôlego adiposo; voltei-me: era o burguês das verrugas, com
a toucinhenta consorte pelo braço, a examinar uma lasca de pedra azulega que de
mão em mão viera ter às suas. O bicharoco olhava a pedra como quem olha talismã.
Não resisti, atirei-lhe a esmo:
— É o gneiss.
O burguês encarou-me com o respeito
devido a Quem Sabe e, virando-se para a mulher, repetiu gravemente:
— Este é o gneiss, Maricota.
Dona Maricota tomou-o nos dedos, examinou-o
sob todas as faces e em seguida passou-o a uma sua amiga, gaguejando de geológica
emoção:
— O gneiss, Nhanhã!
Na rua esfumada pela garoa, um friozinho
de tiritar. De golas erguidas estugamos o passo, enquanto íamos extraindo a moralidade
da festa.
Ciência e Arte nasceram para viver
juntas, porque Arte é harmonia e Ciência é verdade. Quando se divorciam, a verdade
fica desarmônica e a harmonia falsa. Se este senhor sábio trouxesse pela mão direita
a Ciência e pela esquerda a Arte, para fundi-las no momento de falar, que coisa
esplêndida não faria de um tal tema! Trouxe uma só e por isso maçou-nos, empanturrou-nos
a alma de coisas duras, indigeríveis, misturadas com mil pronomes fora dos mancais.
Além disso...
Foi-nos impossível prosseguir na filosofia.
Um carro passava estalando rumorosamente as pedras da rua. Dentro vinha a nossa
diva.
— Ela...
— A Verdade e a Harmonia...
Nossas bocas emudeceram, porque a
imaginação, tomando as rédeas nos dentes, nos levava a galope no encalço da teteia
de olhos negros.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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