— Olha, esperam-te hoje em casa,
para o jantar.
—Impossível. Não janto fora.
— Abre uma exceção e vai.
— Impossível, já disse. Não insistas.
— Põe de lado a esquisitice e
vai.
— Não é esquisitice, meu caro,
é sibaritismo e prudência. Tenho para mim que comer é uma das boas coisas da
vida. Mas comer o que se quer, como se quer, quando se quer. Gosto, por
exemplo, de lombo de porco, mas a meu modo, assado cá dum jeito que sei. Se o
como fora de casa, nunca o tenho ao sabor do meu paladar.
Gosto ainda de comer quando tenho
tome. Detesto a horário forçado, almoço às onze, jantar às seis, haja ou não
apetite. Ora, a não ser em minha casa, onde tenho horário, raramente o apetite
coincidirá com o momento do bródio. Esta circunstância aliada ao fato de ser forçado
a comer o que está na mesa e não o que me pede a veneta, leva-me a recusar sistematicamente
convites para jantar.
— Mas, homem de Deus, para
tudo há remédio. Farás tu mesmo o cardápio, darás as receitas e só se porá à
mesa voz do teu apetite.
— Não. Em tua casa são todos
de tal modo amáveis que receio, jantando lá, não chegar à sobremesa sem cometer
um homicídio.
— !!!
— Nunca te contei o meu rompimento
com a família do Melo? Éramos amicíssimos de longos anos, e sê-lo-íamos até
hoje se não fora a minha imprudência aceitando um convite para lá jantar, em
dia de anos da D. Vidoca. Mas cometi-a, e fui. Havia à mesa umas dez pessoas, todas
íntimas, e as filhas, os genros — um povaréu. D. Vidoca, como sabes, é uma criatura
excessivamente amável e nesse dia excedeu-se. Serviu-me sopa, ela própria, mas
carregando a mão como se eu fora um frade borra. Arrepiou-me aquele pantagruelismo
brutal, mas calei a exasperação e ingeri com paciência aquela maranha de fios
amarelos, boiantes num caldo untuoso. Mal absorvera a última colherada, a boa senhora,
sem consulta prévia, atocha feijão num prato e passa-mo.
— Não, minha senhora, muito obrigado!
— Ora, cama! Deixe-se de histórias,
Coma feijão que isso dá sustança.
— Não houve escapatória possível
e tive que aceitar o truculento prato de caroços pretos, coisa que detesto.
Olhei para a rodela de cor escura, cor de chocolate, que se me esparramava pelo
prato inteiro sem deixar transparecer uma nesga sequer da louça branca,
enchi-me de resignação e empreendi o trabalho de Hércules, que era o de
trasladar tudo aquilo para o estômago. Mas o meu sangue começou a esquentar e o
nó das cóleras surdas subiu-me à garganta. Estava em meio da empreitada quando
vi a excelente senhora dirigir para o meu prato um enorme naco de carne fisgado
no garfo.
— Doutor, um pedacinho de
carne assada?
Gaguejei, mal firme nas estribeiras:
— Mas, minha senhora, eu...
— Sempre com cerimônias! Olhe que
aqui não se usa disso! Coma lá! E soltou-me no prato o boi...
Senti bagas de suor frio
borbulharem-me na testa. O nó da garganta engrossou. Baixei a cabeça, resignado,
e encetei silenciosamente a mastigação, matutando sobre o modo de dar cabo
daquilo. Comer tudo, era impossível; deixar no prato, impolidez...
— Agora um pouco de arroz!
Lancei um olhar facinoroso à
santa criatura que o interpretou de maneira errônea, como de assentimento.
— Eu bem vi que estava
querendo arroz.
— Impossível D. Vidoca!
Peço-lhe perdão, mas estou satisfeito. Como pouco e o que tenho no prato janta-me
por três dias.
— Luxento! Cama lá!
E zás! uma, duas, três,
colheradas das grandes! Escureceu-me a vista uma onda de sangue. Tive ímpetos
de saltar pela janela.
Contive-me, porém, e com a
resignação dos verdadeiros mártires recomecei a mastigar.
— Um pastelzinho, agora?
— Era demais! A virtuosa
criatura abusava da minha situação. Recusei-lho desabridamente, áspero.
— Já sei porque não quer... É
que foram feitos por mim... Mas deixe estar...
— Dona Vidoca! Pelo amor de Deus!
gaguejei.
— Unzinho só! Para me dar opinião
sobre o tempero da massa, sim? Apare lá estezinho, tostadinho, sim?
Conheces o meu génio, sabes
com que facilidade saio fora de mim e cometo as maiores loucuras. Esse estado
de superexcitarão nervosa preludia por tremor da voz e excessiva quentura nas
faces. Naquele momento, sentindo os pródromos da erupção, entreguei-me a
esforços sobre-humanos para conter a fera que mora em mim. E contive-a. Curvei de
novo a cabeça e levei à boca umas garfadas.
Aqui o Melo principia a
trinchar leitão.
Refleti: se mo oferecem,
estouro.
E fiquei de sobreaviso,
engatilhado para a revide.
Não tardou muito que D, Vidoca
espetasse no garfo alentadíssima costela e fizesse pontaria para o meu lado.
Ah! Perdi a cabeça!
Agarrei na garrafa que estava
na minha frente e abri a cabeça da santa criatura com uma mocada horrível!
Nada mais me lembra. Ouvi um berro,
um clamor. Senti o pânico em redor de mim, e corri para a rua como um ébrio.
Foi quando...
Não conclui o caso. O amigo abalara...
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Notas:
Imagem: Ormindo Arruda, revista Vamos Ler!, 15/08/1946.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Um dos textos inesquecíveis e mais engraçados que já lera em minha época de estudante.
ResponderExcluirCito sempre este texto quando passo por essa situação.É horrível.
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