10/24/2018

De como quebrei a cabeça à mulher de Melo (Conto), de Monteiro Lobato



De como quebrei a cabeça à mulher de Melo

— Olha, esperam-te hoje em casa, para o jantar.

—Impossível. Não janto fora.

— Abre uma exceção e vai.

— Impossível, já disse. Não insistas.

— Põe de lado a esquisitice e vai.

— Não é esquisitice, meu caro, é sibaritismo e prudência. Tenho para mim que comer é uma das boas coisas da vida. Mas comer o que se quer, como se quer, quando se quer. Gosto, por exemplo, de lombo de porco, mas a meu modo, assado cá dum jeito que sei. Se o como fora de casa, nunca o tenho ao sabor do meu paladar.

Gosto ainda de comer quando tenho tome. Detesto a horário forçado, almoço às onze, jantar às seis, haja ou não apetite. Ora, a não ser em minha casa, onde tenho horário, raramente o apetite coincidirá com o momento do bródio. Esta circunstância aliada ao fato de ser forçado a comer o que está na mesa e não o que me pede a veneta, leva-me a recusar sistematicamente convites para jantar.

— Mas, homem de Deus, para tudo há remédio. Farás tu mesmo o cardápio, darás as receitas e só se porá à mesa voz do teu apetite.

— Não. Em tua casa são todos de tal modo amáveis que receio, jantando lá, não chegar à sobremesa sem cometer um homicídio.

— !!!

— Nunca te contei o meu rompimento com a família do Melo? Éramos amicíssimos de longos anos, e sê-lo-íamos até hoje se não fora a minha imprudência aceitando um convite para lá jantar, em dia de anos da D. Vidoca. Mas cometi-a, e fui. Havia à mesa umas dez pessoas, todas íntimas, e as filhas, os genros — um povaréu. D. Vidoca, como sabes, é uma criatura excessivamente amável e nesse dia excedeu-se. Serviu-me sopa, ela própria, mas carregando a mão como se eu fora um frade borra. Arrepiou-me aquele pantagruelismo brutal, mas calei a exasperação e ingeri com paciência aquela maranha de fios amarelos, boiantes num caldo untuoso. Mal absorvera a última colherada, a boa senhora, sem consulta prévia, atocha feijão num prato e passa-mo.

— Não, minha senhora, muito obrigado!

— Ora, cama! Deixe-se de histórias, Coma feijão que isso dá sustança.

— Não houve escapatória possível e tive que aceitar o truculento prato de caroços pretos, coisa que detesto. Olhei para a rodela de cor escura, cor de chocolate, que se me esparramava pelo prato inteiro sem deixar transparecer uma nesga sequer da louça branca, enchi-me de resignação e empreendi o trabalho de Hércules, que era o de trasladar tudo aquilo para o estômago. Mas o meu sangue começou a esquentar e o nó das cóleras surdas subiu-me à garganta. Estava em meio da empreitada quando vi a excelente senhora dirigir para o meu prato um enorme naco de carne fisgado no garfo.


— Doutor, um pedacinho de carne assada?

Gaguejei, mal firme nas estribeiras:

— Mas, minha senhora, eu...

— Sempre com cerimônias! Olhe que aqui não se usa disso! Coma lá! E soltou-me no prato o boi...

Senti bagas de suor frio borbulharem-me na testa. O nó da garganta engrossou. Baixei a cabeça, resignado, e encetei silenciosamente a mastigação, matutando sobre o modo de dar cabo daquilo. Comer tudo, era impossível; deixar no prato, impolidez...

— Agora um pouco de arroz!

Lancei um olhar facinoroso à santa criatura que o interpretou de maneira errônea, como de assentimento.

— Eu bem vi que estava querendo arroz.

— Impossível D. Vidoca! Peço-lhe perdão, mas estou satisfeito. Como pouco e o que tenho no prato janta-me por três dias.

— Luxento! Cama lá!

E zás! uma, duas, três, colheradas das grandes! Escureceu-me a vista uma onda de sangue. Tive ímpetos de saltar pela janela.

Contive-me, porém, e com a resignação dos verdadeiros mártires recomecei a mastigar.

— Um pastelzinho, agora?

— Era demais! A virtuosa criatura abusava da minha situação. Recusei-lho desabridamente, áspero.

— Já sei porque não quer... É que foram feitos por mim... Mas deixe estar...

— Dona Vidoca! Pelo amor de Deus! gaguejei.

— Unzinho só! Para me dar opinião sobre o tempero da massa, sim? Apare lá estezinho, tostadinho, sim?

Conheces o meu génio, sabes com que facilidade saio fora de mim e cometo as maiores loucuras. Esse estado de superexcitarão nervosa preludia por tremor da voz e excessiva quentura nas faces. Naquele momento, sentindo os pródromos da erupção, entreguei-me a esforços sobre-humanos para conter a fera que mora em mim. E contive-a. Curvei de novo a cabeça e levei à boca umas garfadas.

Aqui o Melo principia a trinchar leitão.

Refleti: se mo oferecem, estouro.

E fiquei de sobreaviso, engatilhado para a revide.

Não tardou muito que D, Vidoca espetasse no garfo alentadíssima costela e fizesse pontaria para o meu lado.

Ah! Perdi a cabeça!

Agarrei na garrafa que estava na minha frente e abri a cabeça da santa criatura com uma mocada horrível!

Nada mais me lembra. Ouvi um berro, um clamor. Senti o pânico em redor de mim, e corri para a rua como um ébrio.

Foi quando...

Não conclui o caso. O amigo abalara...


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Notas:
Imagem: Ormindo Arruda, revista Vamos Ler!, 15/08/1946.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

2 comentários:

  1. Um dos textos inesquecíveis e mais engraçados que já lera em minha época de estudante.

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  2. Cito sempre este texto quando passo por essa situação.É horrível.

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