10/31/2018

Café! Café! (Conto), de Monteiro Lobato



Café! Café!

E o velho major recaiu em cisma profunda. A colheita não prometia pouco:

florada magnífica, tempo ajuizado, sem ventanias nem geadas. Mas os preços, os preços! Uma infâmia! Café a seis mil-réis, onde se viu isso? E ele que anos atrás vendera-o a trinta! E este Governo, santo Deus, que não protege a lavoura, que não cria bancos regionais, que não obriga o estrangeiro a pagar o precioso grão a peso de ouro!

E depois não queriam que ele fosse monarquista... Havia de ser, havia de detestar a República porque era ela a causa de tamanha calamidade, ela com seus Campos Sales de bobagem.

Que tempos! Pois até o Chiquinho Alves, um menino que ele vira em fraldas de camisa brincando na rua, não estava agora na chapa oficial para deputado? Que tempos!

E com as magras mãos de velho engorovinhado o major torcia com frenesi os bigodes amarelos de sarro.

Todo ele recendia a passado e rotina. Na cabeça já branca habitavam ideias de pedra. Como essas famílias de caboclos que vegetam ao pé dos morros numa choça de palha, cercada de taquara, com um terreirinho, moenda e o chiqueiro e toda a imensidade azul e verde das serras e dos céus a insulá-las da civilização, assim a cabeça do major. As primeiras ideias que ali abicaram, e isso já de sessenta anos, nas remotas eras do bê-á-bá na escola do Ganimedes, meteram a foice na capoeira, fincaram os paus da cerca, aprumaram os esteios da morada, cobriram-na de sapé; e lentamente, à medida que vinham entrando, compelidas pela vara de marmelo e a rija palmatória do feroz pedagogo, foram erigindo a casa mental do nosso herói. Depois, no começo da vida prática, como administrador da fazenda paterna, novas ideias e novos conhecimentos, filhos da experiência, tiveram guarida na choça daquele cérebro, acrescendo-o de mais uns puxados ou telheirinhos. Juízos sobre o Governo, apreciações sobre Suas Majestades, conceitos transmitidos por pais de família e coronéis da Guarda Nacional, ideias religiosas embutidas pelo roliço padre Pimenta, oráculo da família, receitas para quebrantos, a trenzama toda moral e intelectual da sua psíquica de matuto ricaço, por lá se arrumou com o tempo, apesar do acanhamento da choça e das dependências. Para o chiqueirinho foram as anedotas frescas e as chalaças pesadas aprendidas na botica do Zeca Pirula. E ficou nisso o meu major; se uma ideiazita nova voava para ele, batia de peito em seus ouvidos moucos, como rolinhas em paredes caiadas, caindo morta no chão; ou como borboleta em casa aberta, entrava por uma orelha e saía por outra. Ficou naquilo o major Mimbuia, uma pedra, um verdadeiro monólito que só cuidava de colher café, de secar café, de beber café, de adorar o café. Se algum atrevido ousava insinuar-lhe a necessidadezinha de plantar outras coisinhas, um mantimentozinho humilde que fosse, Mimbuia fulminava-o com apóstrofes.

— O café dá para tudo. Isso de plantar mantimento é estupidez. Café. Só café.

— Mas, com seu perdão, major, se algum dia, que Deus nos livre, o café baixar e...

— O café não baixa e se baixar sobe de novo. Vocês não entendem dessa história — e depois, olhe, eu não admito ideias revolucionárias em minha casa, já ouviu?

E estava acabado, o pedreiro-livre murchava as orelhas e abalava de rabo encolhido.

Veio, porém, a baixa; as excessivas colheitas foram abarrotando os mercados, dia a dia os estoques do Havre e de Nova York aumentavam. Os preços baixavam sempre, cada vez mais; chegaram a dez mil-réis, a nove, a oito, a seis. O major ria-se e limpando as unhas profetizava:

— Em janeiro o café está a trinta e cinco mil-réis.

Chegou janeiro; o café desceu a cinco mil e quinhentos. “Em fevereiro eu aposto que vai a quarenta!” Foi a cinco.

O major emagrecia. “Em março eu juro pela alma de meu pai, que Deus haja, como o café há de subir a quarenta e cinco mil-réis!” O café em março desceu a quatro.

O major enlouquecia. Estava à míngua de recursos, endividado, a fazenda penhorada, os camaradas desandando, os credores batendo à porta. Já ia para três anos que o produto das safras não bastava para cobrir o custeio. Três déficits sucessivos devoraram-lhe as economias e estancaram as fontes. Mas o velho não desanimava. O cafezal estava um brinco, sem um pezinho de capim. As casas desmoronavam, o mato viçava nos terreiros, invadindo as tulhas, inundando tudo de clara verdura vitoriosa, o caruru já estava cansado de nascer nos lugares proibidos onde outrora, nem bem repontava medroso, já vinha um negro cambaio a arrancá-lo sem dó. O major passava a mandioca assada e canjica: nem pitava mais daqueles longos cigarros de palha, por economia. Todo dinheirinho que entrava das vendas do gado, de pedaços de terra, de empréstimos, de velhas dívidas pagas, tudo ia para o Moloch insaciável do cafezal. Chegado o tempo da colheita, colhia muito, as safras eram ótimas, porém o produto das vendas nenhum alívio trazia à situação, antes agravava-a com um novo déficit. E como não, se o café estava beirando os três mil a arroba e lhe saía a seis a produção de cada uma?

Aconselharam-lhe o plantio de cereais; o feijão andava caro, o milho dava bom lucro. Nada! O homem encolerizava-se e rugia:

— Não! Só café! Só café! Há de subir, há de subir muito. Sempre foi assim. Só café. Só café!

E ninguém o tirava dali. A fazenda era uma desolação; a penúria, extrema; os agregados andavam esfomeados, as roupas em trapo, imundos, mas a trabalhar ainda, a limpar café, a colher café, a socar café. Os salários, caídos no mínimo, uma ninharia, o quanto bastasse para matar a fome. O velho roía as unhas rancorosamente, vomitando injúrias contra os tempos modernos, contra a estrangeirada, o Governo, os comissários, numa cólera perene, e trabalhava no eito com os camaradas a limpar café, a colher café.

— Sobe, há de subir, há de chegar a trinta mil-réis.

Para sustentar a luta vendeu uma nesga da fazenda — um pedaço da sua própria carne.

Depois vendeu outra, mais outra e outra. O Moloch insaciável, porém, engoliu tudo e pediu mais. Ele vendeu mais: vendeu os pastos, vendeu por fim a casa de morada com todas as benfeitorias e foi residir num ranchinho no cafezal.

A situação piorava, os preços continuavam a cair, o velho já estava sem unhas para roer e sem mandioca para se alimentar. Só possuía o cafezal, sempre limpo, sempre sem um matinho. Um dia desertou uma leva de camaradas: outros seguiram aqueles e em breve Mimbuia viu-se completamente só no seu ranchinho do cafezal. Levantava-se antes de clarear o dia e saía de enxada em punho, numa raiva surda, a capinar, a capinar o dia inteiro como um possesso.

Depois, como o cafezal fosse grande e ele um só, o mato brotou luxuriante, numa alegria verde-clara de vitória. O velho, possesso, dentes cerrados, surdo ao sol e à chuva, seminu, esfarrapado e macilento, baba a escorrer dos cantos da boca, torrado pela soalheira, sujo de terra, já não podendo vencer o mato exuberante, andava a arrancar as ervas mais atrevidas ou graúdas, catando uma aqui, outra ali.

A luta era gigantesca, de vida ou de morte. Pelo cafezal todo as ruas outrora vermelhas e varridas eram extensas faixas do verde vitorioso. A beldroega alastrava-se, o caruru já florescia, o picão derrubava as sementes novas para nova seara mais farta e pujante.

Pintassilgos inúmeros trilavam pelo chão banqueteando-se à farta nas sementes dos capins. As rolinhas rebolavam, arrulhando, roliças, de papinho duro. Os tico-ticos, como legiões de bárbaros, tagarelavam fabricando ninhos, pondo ovos, chocando-os, tirando ninhadas famintas. O sol rompia todas as madrugadas, fecundo, forte, vencedor, criando seiva intensa, acariciando as ervas transbordantes. Chuvas contínuas davam à terra magnífica um fofo de alfobre. O velho Mimbuia estava um espectro, já nu de todo, os olhos esbugalhados a se revirarem nas órbitas com desvario. Um espectro sem carnes, só pele calcinada e ossos pontiagudos. Mas quando a boca se abria naquela barba hirsuta, o que vinha era uma coisa só:

— Há de subir, há de subir, há de chegar a sessenta mil-réis em julho. Café, café, só café!...


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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