A quarto de légua do arraial
do Atoleiro começam as terras da fazenda de igual nome, pertencente ao major Zé
Lucas. A meio entre o povoado e o estirão das matas virgens dormia de papo
acima um famoso pântano. Pego de insidiosa argila negra fraldejado de velhos
guaiambés nodosos, a taboa esbelta cresce-lhe à tona, viçosa na folhagem
eréctil que as brisas tremelicam. Pela inflorescência, longas varas soerguem-se
a prumo, sustendo no ápice um chouriço cor de telha que, maturado, se esbruga
em paina esvoaçante. Corre entre seus talos a batuíra de longo bico, e saltita
pelas hastes a corruíra-do-brejo, cujo ninho bojudo se ouriça nos espinheiros
marginais. Fora disso, rãs, nimbuias pensativas e, a rabear nas poças
verdinhentas de algas, a traíra, esse voraz esqualozinho do lodo. Um brejo,
enfim, como cem outros.
Notabiliza-o, porém, a
profundidade. Ninguém ao vê-lo tão calmo sonha o abismo traidor oculto sob a
verdura.
Dois, três bambus emendados
que lhe tentem alcançar o fundo subvertem-se na lama sem alçar pé.
Além de vários animais sumidos
nele, conta-se o caso do Simas, português teimoso que, na birra de salvar um
burro já atolado a meio, se viu engolido lentamente pelo barro maldito. Desde aí
ficou o atoleiro gravado na imaginativa popular como uma das bocas do próprio
inferno.
Transposto o abismo, a
vegetação encorpa, até formar a mata por cujo seio corre a estrada mestra da
fazenda.
Na manhã daquele dia passara
por ali o trole do fazendeiro, de volta da cidade. Além do velho, de sua mulher
Don'Ana e de Cristina a filha única, vinha a passeio o bacharel Eduardo, primo
longe e noivo da moça. Chegaram e agora ouviam na varanda, da boca do Vargas,
fiscal, a notícia do sucedido durante a ausência. Já contara Vargas do café, da
puxada dos milhos e estava na criação.
— Porcos têm sumido alguns.
Uma leitoa rabicó e um capadete malhado dos "Polancham", há duas
semanas que moita. Para mim — ninguém me tira da cabeça — o ladrão foi o negro,
inda mais que essa criação costumava se alongar das bandas do brejo. Eu estou
sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio do maldelazento. Aquilo, Deus me
perdoe, é bicho ruim inteirado. Mas não "querem" me acreditar...
O major sorriu àquele
"querem". Vargas, com ojeriza velha ao mísero Bocatorta, não perdia
ensanchas de lhe atribuir malefícios e de estumar o patrão a corrê-lo das
terras que aquilo, Nossa Senhora! até enguiçava uma fazenda...
Interessado, o moço indagou da
estranha criatura.
— Bocatorta é a maior
curiosidade da fazenda, respondeu o major. Filho duma escrava de meu pai,
nasceu, o mísero, disforme e horripilante como não há memória de outro. Um
monstro, de tão feio. Há anos que vive sozinho, escondido no mato, donde raro
sai e sempre de noite, O povo diz dele horrores — que come crianças, que é
bruxo, que tem parte com o demo. Todas as desgraças acontecidas no arraial
correm-lhe por conta. Para mim, é um pobre-diabo cujo crime único é ser feio
demais. Como perdeu a medida, está a pagar o crime que não cometeu...
Vargas interveio, cuspilhando
com cara de asco: — Se o doutorzinho o visse!... É a coisa mais nojenta deste
mundo.
— Feio como o Quasímodo? — Esse
não conheço, seu doutor, mas estou aqui estou jurando que o negro passa diante
do... como é? Eduardo apaixonava-se pelo caso.
— Mas, amigo Vargas, feio
como? Por que feio? Explique-me lá essa feiura.
Grande parola quando lhe davam
trela, Vargas entreparou um bocado e disse: — O doutor quer saber como é o
negro? Venha cá.
Vossa Senhoria agarre um judas
de carvão e judie dele; cavoque o buraco dos olhos e afunde dentro duas brasas
alumiando; meta a faca nos beiços e saque fora os dois; 'ranque os dentes e só
deixe um toco; entorte a boca de viés na cara; faça uma coisa desconforme, Deus
que me perdoe.
Depois, como diz o outro, vá
judiando, vá entortando as pernas e esparramando os pés. Quando cansar,
descanse.
Corra o mundo campeando feiura
braba e aplique o pior no estupor. Quando acabar agarre no judas e ponha rente
de Bocatorta. Sabe o que acontece? O judas fica lindo!...
Eduardo desferiu uma
gargalhada.
— Você exagera, Vargas. Nem o
diabo é tão feio assim, criatura de Deus! — Homem, seu doutor, quer saber?
Contando não se acredita. Aquilo é feiura que só vendo! — Nesse caso quero
vê-la. Um horror desse naipe merece uma pernada.
Nesse momento surgiu Cristina
à porta, anunciando café na mesa.
— Sabe? — disse-lhe o noivo. —
Temos um belo passeio em perspectiva: desentocar um gorila que, diz o Vargas, é
o bicho mais feio do mundo.
— Bocatorta? — exclamou
Cristina com um reverbero de asco no rosto. — Não me fale. Só o nome dessa
criatura já me põe arrepios no corpo.
E contou o que dele sabia.
Bocatorta representara papel
saliente em sua imaginação. Pequenita, amedrontavam-na as mucamas com a cuca, e
a cuca era o horrendo negro. Mais tarde, com ouvir às crioulinhas todos os
horrores correntes à conta dos seus bruxedos, ganhou inexplicável pavor ao noctâmbulo.
Houve tempo no colégio em que, noites e noites a fio, o mesmo pesadelo a
atropelou. Bocatorta a tentar beijá-la, e ela, em transes, a fugir. Gritava por
socorro, mas a voz lhe morria na garganta. Despertava arquejante, lavada em
suores frios.
Curou-a o tempo, mas a
obsessão vincara fundos vestígios em sua alma.
Eduardo, não obstante,
insistia.
— É o meio de te curares de
vez. Nada como o aspecto cru da realidade para desmanchar exageros de
imaginação.
Vamos todos, em farrancho — e
asseguro-te que a piedade te fará ver no espantalho, em vez dum monstro, um
simples desgraçado digno do teu dó.
Cristina consultou-se por uns
momentos e: — Pode ser — disse. — Talvez vá. Mas não prometo! Na hora verei se
tenho coragem...
A maturação do espírito em
Cristina desbotara a vivacidade nevrótica dos terrores infantis. Inda assim
vacilava.
Renascia o medo antigo, como
renasce a encarquilhada rosa de Jericó ao contato de uma gota d'água. Mas
vexada de aparecer aos olhos do noivo tão infantilmente medrosa, deliberou que
iria; desde esse instante, porém, uma imperceptível sombra anuviou-lhe o rosto.
Ao jantar foram o assunto as
novidades do arraial — eternas novidades de aldeias, o Fulano que morreu, a
Sicrana que casou. Casara um boticário e morrera uma menina de quatorze anos,
muito chegada à gente do major. Particularmente condoída, Don'Ana não a tirava
da ideia.
— Pobre da Luisinha! Não me
sai dos olhos o jeito dela, tão galante, quando vinha aqui pelo tempo das
jabuticabas.
Ali, naquela porta — "Dá
licença, Don'Ana!" — tão cheia de vida, vermelhinha do sol... Quem
diria...
— E ainda por cima a tal
história de cemitério... interveio Cristina. Papai soube? Corriam no arraial
rumores macabros. No dia seguinte ao enterramento o coveiro topou a sepultura
remexida, como se fora violada durante a noite; e viu na terra fresca pegadas
misteriosas de uma "coisa" que não seria bicho nem gente deste mundo.
Já duma feita sucedera caso idêntico por ocasião da morte da Sinhazinha Esteves;
mas todos duvidaram da integridade dos miolos do pobre coveiro sarapantado.
Esses incréus não mofavam agora do visionário, porque o padre e outras pessoas
de boa cabeça, chamadas a testemunhar o fato, confirmavam-no.
Imbuído do ceticismo fácil dos
moços da cidade, Eduardo meteu a riso a coisa muita fortidão de espírito.
— A gente da roça duma folha
de imbaúba pendurada no barranco faz logo, pelo menos, um lobisomem e três
mulas-sem-cabeça. Esse caso do cemitério: um cão vagabundo entrou lá e arranhou
a terra. Aí está todo o grande mistério! Cristina objetou: — E os rastos? — Os
rastos! Estou a apostar como tais rastos são os do próprio coveiro. O terror
impediu-lhe de reconhecer o molde do casco...
— E o padre Lisandro? — acudiu
Don'Ana, para quem um testemunho tonsurado era documento de muito peso.
Eduardo cascalhou uma risada
anticlerical e, trincando um rabanete, expectorou: — Ora, o padre Lisandro!
Pelo amor de Deus, Don'Ana! O padre Lisandro é o próprio coveiro de batina e
coroa! A propósito...
E contou a propósito vários
casos daquele tipo, os quais no correr do tempo vieram a explicar-se
naturalmente, com grande cara d'asno dos coveiros e lisandros respectivos.
Cristina ouviu, com o espírito
absorto em cismas, a bela demonstração geométrica. Don'Ana concordou da boca
para fora, por delicadeza. Mas o major, esse não piou sim nem não. A
experiência da vida ensinara-lhe a não afirmar com despotismo, nem negar com
"oras — Há muita coisa estranha neste mundo... — disse, traduzindo
involuntariamente a safada réplica de Hamlet ao cabeça forte do Horácio.
Zangara o tempo quando à tarde
o rancho se pôs de rumo ao casebre de Bocatorta.
Ventava. Rebojos de nuvens
prenhes sorviam as últimas nesgas do azul.
Os noivos breve se
distanciaram dos velhos que, a passos tardos, seguiam comentando a boa
composição do futuro casal. Não havia nisso exagero de pais. Eduardo, embora
vulgar, tinha a esbelteza necessária para ouvir sem favor o encômio de rapagão,
e Cristina era um ramalhete completo das graças que os dezoito anos sabem
compor.
Donaire, elegância,
distinção... pintam lá vocábulos esbeiçados pelo uso esse punhado de quês
particularíssimos cuja soma a palavra "linda" totaliza? Lábios de
pitanga, a magnólia da pele acesa em rosas nas faces, olhos sombrios como a
noite, dentes de pérola... as velhas tintas de uso em retratos femininos desde
a Sulamita não pintam melhor que o "linda!" dito sem mais enfeites
além do ponto de admiração.
Vê-la mordiscando o hastil
duma flor de catingueiro colhida à beira do caminho, ora risonha, ora séria, a
cor das faces mordida pelo vento frio, madeixas louras a brincarem-lhe nas
têmporas, vê-la assim formosa no quadro agreste duma tarde de junho, era
compreender a expressão dos roceiros: Linda que nem uma santa.
Olhos, sobretudo, tinha-os
Cristina de alta beleza. Naquela tarde, porém, as sombras de sua alma coavam
neles penumbras de estranha melancolia. Melancolia e inquietação. O amoroso
enlevo de Eduardo esfriava amiúde ante suas repentinas fugas. Ele a percebia
distante, ou pelo menos introspectiva em excesso, reticência que o amor não vê
de boa cara. E à medida que caminhavam recrescia aquela esquisitice. Um como
intáctil morcego diabólico riscava-lhe a alma de voejos pressagos. Nem o
estimulante das brisas ásperas, nem a ternura do noivo, nem o "cheiro de
natureza" exsolvido da terra, eram de molde a esgarçar a misteriosa bruma
de lá dentro.
Eduardo interpelou-a: — Que
tens hoje, Cristina? Tão sombria...
E ela, num sorriso triste: — Nada!..
Por quê? Nada... É sempre nada quando o que quer que é lucila avisos informes
na escuridão do subconsciente, como sutilíssimos ziguezagues de sismógrafo em
prenúncio de remota comoção telúrica. Mas esses nadas são tudo!...
— À esquerda, pelo trilho! A
voz do major chamou-os à realidade. Um carreiro mal batido na macega
esgueirava-se coleante até a beira dum córrego, onde se reuniram de novo.
O major tomou a frente, e
guiou-os floresta adentro pelos meandros duma picada. Era ali o mato sinistro
onde se alapavam Bocatorta e o seu cachorro lazarento, Merimbico, nome
tresandante a satanismo para o faro do poviléu.
Às sextas-feiras, na voz
corrente do arraial, Merimbico virava lobisomem e se punha de ronda ao
cemitério, com lamentosos uivos à lua e abocamentos às pobres almas penadas — coisa
muito de arrepiar.
O sombrio da mata enoiteceu de
vez o coração de Cristina.
— Mas, afinal, para onde
vamos, meu pai? Afundar no atoleiro, como o Simas? Meu pai já fez o testamento?
— Já, minha filha — chasqueou o major —, e deixo o Bocatorta para você...
Cristina emudeceu. Retransia-a
em doses crescentes o velho medo de outrora, e foi com um estremecimento
arrepiado que ouviu o ladrido próximo de um cão.
— É Merimbico — disse o velho.
— Estamos quase.
Mais cem passos e a mata
rasgou-se em clareira, na qual Cristina entreviu a biboca do negro. Fez-se toda
pequenina e achegou-se a Don'Ana, apertando-lhe nervosamente as mãos.
— Bobinha! Tudo isso é medo? —
Pior que medo, mamãe; é... não-sei-quê! Não tinha feição de moradia humana a
alfurja do monstro. À laia de paredes, paus-a-pique mal juntos, entressachados
de ramadas secas. Por cobertura, presos, com pedras chatas, molhos de sapé no
fio, defumado e podre. Em redor, um terreirinho atravancado de latas ferrugentas,
trapos e cacaria velha. A entrada era um buraco por onde mal passaria um homem
agachado.
— Olá, caramujo! Sai da toca
que estão cá o sinhô moço e mais visitas! — gritou o major.
Respondeu de dentro um
grunhido cavo. Ao ouvir tão desagradável som, Cristina sentiu correr na pele o
arrepio dos pesadelos antigos, e num incoercível movimento de pavor abraçou-se
com a mãe.
O negro saiu da cova meio de
rastos, com a lentidão de monstruosa lesma. A princípio surgiu uma gaforinha
arruçada, depois o tronco e os braços e a traparia imunda que lhe escondia o
resto do corpo, entremostrando nos rasgões o negror da pele craquenta.
Cristina escondeu o rosto no
ombro de Don'Ana — não queria, não podia ver.
Bocatorta excedeu a toda
pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando, sobretudo, na monstruosa
deformação da boca. Não tinha beiços, e as gengivas largas, violáceas, com
raros cotos de dentes bestiais fincados às tontas, mostravam-se cruas, como
enorme chaga viva. E torta, posta de viés na cara, num esgar diabólico,
resumindo o que o feio pode compor de horripilante. Embora se lhe estampasse na
boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura a culminância da ascosidade,
a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas cambaias e uns pés deformados
que nem remotamente lembravam a forma do pé humano. E olhos vivíssimos, que
pulavam das órbitas empapuçadas, veiados de sangue na esclerótica amarela. E
pele grumosa, escamada de escaras cinzentas. Tudo nele quebrava o equilíbrio
normal do corpo humano, como se a teratologia caprichasse em criar a sua
obra-prima.
À porta do casebre, Merimbico,
cachorro à-toa, todo ossos, pele e bernes, rosnava contra os importunos.
Don'Ana e a filha
afastaram-se, engulhadas. Só os homens resistiram à nauseante vista, embora a
Eduardo o tolhesse uma emoção jamais experimentada, misto de asco, piedade e
horror. Aquele quadro de suprema repulsão, novo para seus nervos,
desnorteava-lhe as ideias. Estarrecido como em face da Górgona, não lhe vinha
palavra que dissesse.
O major, entretanto, trocava
língua com o monstro, que em certo ponto, a uma pergunta alegre do velho,
arregaçou na cara um riso. Eduardo não teve mão de si. Aquele riso naquela cara
sobre-excedia a sua capacidade de horripilação. Voltou o rosto e se foi para
onde as mulheres, murmurando: — É demais! É de fazer mal a nervos de aço...
Seus olhos encontraram os de
Cristina e neles viram a expressão de pavor da preá engrifada nas puas da
suindara — o pavor da morte...
Quando deixaram a floresta,
morria a tarde sob o chicote dum vento precursor de chuva.
— Foi imprudência, Cristina,
vires sem um xalinho de cabeça ao menos!... Queira Deus...
A moça não respondeu. D'olhos
baixos, retransida, respirava a largos haustos, para desafogo dum aperto de
coração nunca sentido fora dos pesadelos.
Generalizara-se o silêncio. Só
o major tentava espanejar a impressão penosa, chasqueando ora o terror da
filha, ora o asco do moço; mas breve calou-se, ganho também pelo mal-estar
geral.
Triste anoitecer o daquele
dia, picado a espaços pelo surdo revoo dos curiangos. O vento zunia, e numa
lufada mais forte trouxe da mata o uivo plangente de Merimbico.
Ao ouvi-lo, um comentário
apenas escapou da boca do major: — Diabo! Fechara-se a noite e vinham as
primeiras gotas de chuva quando pisaram no alpendre do casarão.
Cristina sentiu pelo corpo
inteiro um calafrio, como se a sacudisse a corrente elétrica.
No dia seguinte amanheceu
febril, com ardores no peito e tremuras amiudadas. Tinha as faces vermelhas e a
respiração opressa.
O rebuliço foi grande na casa.
Eduardo, mordido de remorsos,
compulsava com mão nervosa um velho Chernoviz, tentando atinar com a doença de
Cristina; mas perdia-se sem bússola no báratro das moléstias. Nesse em meio,
Don'Ana esgotava o arsenal da medicina anódina dos símplices caseiros.
O mal, entretanto,
recalcitrava às chasadas e sudoríferos. Chamou-se o boticário da vila. Veio a galope
o Eusébio Macário e diagnosticou pneumonia.
Quem já não assistiu a uma
dessas subitâneas desgraças que de golpe se abatem, qual negro avejão de presa,
sobre uma família feliz, e estraçoam tudo quanto nela representa a alegria, e
esperança, o futuro? Noites em claro, o rumor dos passos abafados... E o doente
a piorar... O médico da casa apreensivo, cheio de vincos na testa... Dias e
dias de duelo mudo contra a moléstia incoercível... A desesperança, afinal, o
irremediável antolhado iminente; a morte pressentida de ronda ao quarto...
Ao oitavo dia Cristina foi
desenganada; no décimo o sino do arraial anunciou o seu prematuro fim.
— Morta!...
Eduardo escondia as lágrimas
entre as almofadas do leito, repetindo cem vezes a mesma palavra.
Alcançava-lhe o significado
tremendo e, no entanto, quantas vezes a ouvira como a um som oco de sentido! A
imagem de Cristina morta, a esfervilhar na dissolução dentro da terra gelada,
contrapunha-se às visões da Cristina viva, toda mimos d'alma e corpo, radiosa
manhã humana de cuja luz toda se impregnara sua alma. Cerrando os olhos,
revia-se durante o passeio fatal, envolta nas brumas de vagos pressentimentos.
Vinham-lhe à memória as suas palavras dúbias, a sua vacilação. E arrepelava-se
por não ter adivinhado na repulsa da moça os avisos informes de qualquer coisa
secreta que tenazmente a defendia. Tais pensamentos, enxameantes como moscas em
torno à carne viva da dor de Eduardo, coavam nele venenos cruéis.
Fora, o sol redoirava
cruamente a vida.
Brutalidade!...
Morria Cristina e não se
desdobravam crepes pelo céu, nem murchavam as folhas das árvores, nem se
recobria de cinzas a terra...
Espezinhado pela fria
indiferença das coisas, fechou-se na clausura de si próprio, torvo e dolorido,
sentindo-se amarfanhar pela pata cega do destino.
Correram horas. Noite alta,
acudiu-lhe a ideia de ir ao cemiterinho beijar num último adeus o túmulo da
noiva.
Por sobre a vegetação
adormecida coava-se o palor cinéreo da minguante. Raras estrelas no céu, e na
terra nenhum rumorejo além do remoto uivar de um cão — Merimbico talvez — a
escandir o concerto das untanhas que coaxavam glu-glus nas aguadas.
Eduardo alcançou o cemitério.
Estava encadeado o portão. Apoiou a testa nos frios varões ferrugentos e
mergulhou os olhos queimados de lágrimas por entre os carneiros humildes, em
busca do que recebera Cristina.
No ar, um silêncio de
eternidade.
Brisas intermitentes carreavam
o olor acre dos cravos-de-defunto floridos na tristeza daquele cemitério da
roça.
Seu olhar pervagava de cruz em
cruz na tentativa de atinar com o sítio onde Cristina dormia o grande sono,
quando um rumor suspeito lhe feriu os ouvidos. Direis um arranhar de chão em
raspões cautelosos, ao qual se casava o resfôlego duma criatura viva.
Pulsou-lhe violento o sangue.
Os cabelos cresceram-lhe na cabeça. Alucinação? Apurou os ouvidos: o rumor
estranho lá continuava, vindo de um ponto sombreado de ciprestes. Firmou a
vista: qualquer coisa agachava-se na terra.
Súbito, num relâmpago,
fulgurou em sua memória a cena do jantar, o caso de Luisinha, as palavras de
Cristina.
Eduardo sentiu
arrepiarem-se-lhe os cabelos e, ganho dum pânico desvairado, deitou a correr
como um louco rumo à fazenda, em cujo casarão penetrou de pancada, sem fôlego,
lavado em suor frio, despertando de sobressalto a família.
Com gritos de espanto, que o
cansaço e o bater dos dentes entrecortavam, exclamou entre arquejos: — Estão
desenterrando Cristina... Eu vi uma coisa desenterrando Cristina...
— Que loucura é essa, moço? — Eu
vi... — continuava Eduardo com os olhos desmesuradamente abertos. — Eu vi uma
coisa desenterrando Cristina...
O major apertou entre as mãos
a testa. Esteve assim imóvel uns instantes. Depois sacudiu a cabeça num gesto
de decisão e, horrivelmente calmo, murmurou entre dentes, como em resposta a si
próprio: — Será possível, meu Deus? Vestiu-se de golpe, meteu no bolso o
revólver e atirando três palavras enigmáticas à estarrecida Don'Ana, gritou
para Eduardo com inflexão de aço na voz: — Vamos! Magnetizado pela energia do
velho, o moço acompanhou-o qual sonâmbulo.
No terreiro apareceu-lhes o
capataz.
— Venha conosco. A
"coisa" está no cemitério.
Vargas passou mão de uma
foice.
— Vai ver que é ele, patrão,
até juro! O major não respondeu — e os três homens partiram a correr pelos
campos em fora.
A meio caminho, Eduardo,
exausto de tantas emoções, atrasou-se. Seus músculos recusaram-lhe obediência.
Ao defrontar com o atoleiro, as pernas lhe fraquearam de vez e ele caiu,
ofegante.
Entrementes, o major e o
feitor alcançavam o cemitério, galgavam o muro e aproximavam-se como gatos do
túmulo de Cristina.
Um quadro hediondo
antolhou-se-lhes de golpe: um corpo branco jazia fora do túmulo — abraçado por
um vulto vivo, negro e coleante como o polvo.
O pai de Cristina desferiu um
rugido de fera, e qual fera mal ferida arrojou-se para cima do monstro. A
hiena, mau grado a surpresa, escapou ao bote e fugiu. E, coxeando, cambaio,
seminu, de tropeços nas cruzes, a galgar túmulos com agilidade inconcebível em
semelhante criatura, Bocatorta saltou o muro e fugiu, seguido de perto pela
sombra esganiçante de Merimbico.
Eduardo, que concentrara todas
as forças para seguir de longe o desfecho do drama, viu passar rente de si o
vulto asqueroso do necrófilo, para em seguida desaparecer mergulhando na massa
escura dos guaiambés.
Voando-lhe no encalço, viu
passar em seguida o vulto dos perseguidores.
Houve uma pausa, em que só lhe
feriu o ouvido o rumor da correria. Depois, gritos de cólera, de envolta a um
grunhir de queixada caído em mundéu — e tudo se misturou ao barulho da luta que
o uivo de Merimbico dominava lugubremente.
O moço correu a mão pela testa
gelada: estaria nas unhas dum pesadelo? Não; não era sonho. Disse-lho a voz
alterada do feitor, esboçando o epílogo da tragédia: — Não atire, major, ele
não merece bala. P'ra que serve o atoleiro? E logo após Eduardo sentiu
recrudescer a luta, entre imprecações de cólera e os grunhidos cada vez mais
lamentosos do monstro. E ouviu farfalhar o mato, como se por ele arrastassem um
corpo manietado, a debater-se em convulsões violentas. E ouviu um rugido cavo
de supremo desespero. E após, o baque fofo de um fardo que se atufa na lama.
Uma vertigem escureceu-lhe a
vista; seus ouvidos cessaram de ouvir; seu pensamento adormeceu...
Quando voltou a si, dois
homens borrifavam-lhe o rosto com água gelada. Encarou-os, marasmado.
Ergueu-se, mal firme, apoiado a um deles. E reconheceu a voz do major, que
entre arquejos de cansaço lhe dizia: — Seja homem, moço. Cristina já está
enterrada, e o negro...
— ... está beijando o barro,
concluiu sinistramente o Vargas.
Ao raiar do dia, Merimbico
ainda lá estava, sentado nas patas traseiras, a uivar saudosamente com os olhos
postos no sítio onde sumira o seu companheiro.
Nada mais lembrava a tragédia
noturna nem denunciava o túmulo de lodo açaimador da boca hedionda que babujara
nos lábios de Cristina o beijo único de sua vida.
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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