Barba Azul
Jantávamos no Hotel do Oeste, eu
e o Lucas, um amigo que sabe histórias. A tantas, tomo percebesse certo vulto
lá ao fundo do salão, o rapaz firmou a vista e murmurou em solilóquio:
— Será ele?...
— Ele, quem?
— Estás vendo aquele sujeito
gordo, na terceira mesinha à esquerda?
— O de luto?
— Sim... O patife anda sempre de
luto...
— Quem é?
— Um celerado que tem muito
dinheiro e teve muitas mulheres.
— Até aí nada vejo de mais.
— Tem muito dinheiro porque teve
muitas mulheres. Está poderoso. Ri-se do mundo e de sua justiça. Inventou um
crime inédito não previsto pelas leis e com isso enriqueceu. Se um de nós o
denunciasse, o patife nos processaria e nos meteria na cadeia. Note-lhe bem o
tipo; raras vezes terás ocasião de topar um celerado desse tamanho.
— Mas...
— Lá fora contarei tudo. Toca a
jantar.
Enquanto jantávamos examinei o
sujeito, sem que nada no seu físico me parecesse estranho. Deu-me a impressão
dum médico aposentado que vivesse de rendas.
Por que de médico? Não sei. As
criaturas dão-me ar disto ou daquilo por força duma aura que pressinto a
envolvê-las. Confesso, todavia, que minha adivinhação erra bastante. Sai-me
fazendeiro um que eu previa médico, e surge-me corretor de negócios outro que
eu jurava engenheiro. Creio que a falha do diagnóstico vem dos homens
desrespeitarem as vocações e adotarem na vida atitudes profissionais diversas
das que, por injunção natural, deviam eleger. Como no entrudo. As máscaras
nunca dizem das caras verdadeiras que escondem.
Terminado o jantar, saímos em
direção ao Triângulo, e lá nos abancamos num sórdido café. O meu amigo voltou
ao assunto.
— Caso notável o daquele homem!
Caso merecedor de novela ou conto, já que a Justiça não tem forças para metê-lo
na cadeia. Conheci-o no Oeste, prático de farmácia em Brotas. Um dia casou-se.
Lembro-me disso porque assisti ao casamento a convite dos pais da moça. Era a
Pequetita Mendes, filha dum sitiante arranjado.
Pequetita! Bem posto apelido, que
não era bem mulher aquela isca de gente. Miudinha, magrinha, sequinha, sem
cadeiras, sem ombros, sem seios, Pequetita não passava de um desses restolhos
enfermiços que aparecem ao lado das espigas viçosas — sabuguinho débil, um grão
aqui, outro ali. Apesar dos seus 25 anos, representava 13, e ao escolhê-la
Panfilo — chama-se Panfilo Novais o meu facínora — espantou a todos, a começar
pela moça. Como, porém, era ele pobre e ela arranjada, explicou-se
financeiramente a união.
Mas nada poderia resultar de bom
duma união dessa ordem, que repugnava aos homens e à natureza. Pequetita não
viera ao mundo para o matrimônio. O instinto da espécie fizera-a ponto final.
“Pararás aí.”
Ninguém pensou nisso, nem ela,
nem os pais, nem ele — nem ele, que depois só pensaria nisso...
— ?
— Ouve. Casaram-se e tudo correu
excelentemente até que...
—... se separaram...
—... até que os separou a morte.
Pequetita não resistiu ao primeiro parto; faleceu após cruel intervenção
cirúrgica.
Panfilo, dizem, chorou
amargamente a morte da esposa, embora viessem consolá-lo os trinta contos de um
seguro por ela constituído em seu favor.
A meu ver é daqui por diante que
surge o criminoso. O desastre do primeiro casamento criou-lhe no cérebro um
pensamento sinistro — pensamento que o iria nortear pela vida afora e que o
fez, como te disse, rico e poderoso. A morte de Pequetita ensinou-lhe um crime
inédito, não previsto pelas leis humanas.
— ?
— Espera. Compreenderás tudo
dentro em pouco.
Decorrido um ano, o nosso homem,
já dono da farmácia, apresentou-se novamente enliçado pelo amor. Aparecera por
lá uma família de fora, gente pobre, mãe viúva com quatro filhas casadeiras.
Três delas, lindas e viçosas, viram-se logo requestadas por todos os moços
desimpedidos do lugar. Já a quarta, restolho maninguera que fazia lembrar
Pequetita, só teve um par de olhos que a cobiçassem, os de Panfilo.
Pediu-a em casamento.
A mãe opôs-se — que era loucura
aquilo; que a menina lhe nascera enfezada; que se queria mulher, escolhesse uma
das três sadias.
Nada conseguiu. Panfilo fez pé
firme e afinal casou-se.
Foi um assombro. Arranja-dote que
já era, coisa nenhuma justificava tal preferência. Ele defendia-se
hipocritamente, lamecha e sentimental:
— “É o meu gênero. Gosto dos
bibelôs e esta me lembra a minha amada Pequetita...”
Resumindo: dez meses depois o
patife enviuvava de novo nas mesmas circunstâncias da primeira vez.
Morreu-lhe
de parto a mulher.
— Novo seguro?
— E grande. Desta feita a bolada
subiu a cem contos. Mudou-se de terra, então. Vendeu a farmácia e perdi-o de
vista.
Anos depois fui encontrá-lo no
Rio, numa casa de chá. Estava outro, elegantemente vestido, denunciando
prosperidade por todos os poros. Viu-me, reconheceu-me e chamou-me para sua
mesa. Conversa vai, conversa vem, contou-me que se casara pela quarta vez,
havia coisa de um ano.
Assombrei-me.
— “Pela quarta?"
— “É verdade. Depois que saí
daquela abençoada terrinha onde o destino me fez enviuvar duas vezes, casei-me
em Uberaba com a filha do Coronel Tolosa. Mas continuei perseguido pelo
destino: faleceu-me essa também...”
— “Gripe?”
— “Parto...”
— “Como a primeira, então? Mas,
doutor, perdoe-me a liberdade: o senhor escolhe mal as mulheres! Vai ver que
essa terceira era miudinha como as anteriores”, disse eu irrefletidamente.
O homem franziu os sobrolhos e
encarou-me dum modo estranho, como se lhe batera a pacuera ante a ironia dum
Sherlock disfarçado. Voltou logo ao natural, porém, e prosseguiu com
serenidade:
— “Que quer? E o meu gênero. Não
suporto mulheraças...”
E mudou de assunto.
Ao deixá-lo fiquei apreensivo,
com a suspeita a gerar-se-me no cérebro. Liguei a estranheza dos seus modos
ante a minha observação ao olhar perscrutador com que devassara meu íntimo e
deixei escapar em voz alta um — Hum! que chamou a atenção de dois ou três
passantes. E o caso do doutor Panfilo ficou a verrumar-me os miolos dias e
dias.
— Doutor, dizes tu?
— Está claro. O diploma veio logo
atrás dos seguros, como consequência lógica. Quem nesta terra, com algumas
centenas de contos no banco, permanece senhor?
Por curiosidade, no intuito
exclusivo de esclarecer-me, tomei informações relativas à sua quarta esposa.
Soube que era de Cachoeira e fisicamente do mesmo naipe das outras.
Fui além. Tratei de indagar nas
companhias de seguros que negócios trazia nelas o doutor Panfilo e soube que a
vida da quarta mulher estava garantida em mais de duzentos contos. Com os 350
já embolsados, arredondaria ele, pela morte desta, um pecúlio de alto bordo
para quem começara humildemente como prático de farmácia.
Tudo isso me consolidou em
convicção a suspeita de que Panfilo era de fato um grande criminoso. Segurava
as esposas e matava-as...
— Como, se morriam de parto?
— Está aí o maquiavelismo do
celerado. O Barba Azul aproveitou singularmente bem a lição do primeiro
matrimônio. Viu que perdera a Pequetita no primeiro parto em virtude da sua má
conformação, da sua inaptidão procriativa. Franzina em excesso, muito estreita
de bacia...
— Hum!
— Foi um hum! assim que deixei
escapar em plena rua do Ouvidor...
O miserável, que tinha olho
médico, só se casou daí por diante com mulheres de vício orgânico semelhante ao
da primeira. Cuidadosamente escolhia as esposas entre as predestinadas. E foi
amontoando a sua fortuna.
Imagina tu agora a vida desse
miserável, sempre alternando a fase de tocaia da viuvez com um ano de casamento
criminoso. Escolhia a vítima, representava a comédia do amor, sagrava a união
e... seguro de vida! Depois, imagina o sadismo dessa alma ao ver desenvolver-se
no ventre da vítima, não o filho que ela docemente esperava, mas a bolada gorda
que viria acrescentar os seus cabedais! Afez-se a tal caçada e nela
aperfeiçoou-se de maneira a nunca errar o bote.
A quarta, soube-o logo depois,
fora pelo mesmo caminho das outras em seguida a uma nova intervenção cirúrgica.
E entraram os duzentos contos. Vês tu que monstro?...
No outro dia lá estava na mesma
mesa o doutor Panfilo. Entraram na sala várias moças, e pela força do hábito o
seu olhar mortiço mediu num relance as ancas de cada uma. Bem-feitas de corpo
que eram, nenhuma o interessou — e seu olhar desceu calmamente para o jornal
que lia.
Está viúvo, pensei comigo. Anda
evidentemente tocaiando a quinta mal-conformada...
---Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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