História propriamente não é o que
vou contar, mas simples episódio — coisa de um aparte inocente que atrapalhou a
façanha narrada pelo meu saudoso amigo major Pedro Falaverdade, de Itaquaquecetuba.
Apesar de grande caçador o meu amigo
não mentia: atrapalhava-se às vezes, confundia uma caçada com outra: mas mentir
deliberadamente, como a maioria dos devotos de são Huberto, isso nunca! Para narrar
feitos venatórios não havia outro; imitava ao vivo os cães na acuação, os anseios
da espera, a corrida, o tiro, levando o naturalismo a ponto de reproduzir até o
estrebuchamento final da caça ferida, para o que se atirava ao chão e tremelicava
de pernas entre roncos e arquejos de animal agonizante.
É impossível reproduzir as suas histórias
com o encanto que lhes emprestava a mímica pitoresca e o seu maravilhoso estilo
técnico de caçador encanecido nas lides cinegéticas.
Além disso, confesso aqui à puridade,
não sou literato; não fiz versos aos vinte anos e nem sequer coloco decentemente
os pronomes.
Mas vamos ao caso.
Por uma tarde modorrenta de agosto
o major narrava-me em sua fazenda a mais bela proeza da sua vida:
— Caçada de que me orgulho — dizia
ele —, como Napoleão se orgulhava de Marengo.
Passou-se o feito nos sertões do Peripipeva,
Serra do Mar, às margens do Itaguaçu. Para encurtar caminho e não amolar os leitores,
começo do meio. Fale o major:
—... E aí soltei a cachorrada. O Vinagre,
como sempre, rompeu na dianteira. Cachorro fantasista, amigo de contemplações, pegou
logo de namoro com os tangarás, e moita — não correu. Olho Verde, Molho Pardo e
Tatuíra, esses afundaram firmes por uns carreiros velhos.
“Mozart partiu por último, depois
de um consciencioso farejo pela beira do rio.
“Mozart! Que cachorrão! Era o mestre
da matilha e único que fazia fé. Os outros às vezes negavam fogo, mentiam, perdiam
a caça ou mudavam de rasto. Mozart, nunca!
“Sóbrio, comedido, de poucas vozes,
mas certo como um relógio. Quando ele acuava, eu me punha a postos, que era caça,
na certeza matemática; e conforme o número de acuos, já de antemão eu sabia que
animal levantara. Um sinal, paca; dois, veado; três, porco; quatro, anta.
“Aos bichos vagabundos, irara, cutia,
coati, ouriço, ele magoava com o silêncio de um desprezo olímpico.
“Nesse dia, a primeira voz que me
chegou aos ouvidos foi a acuação do Olho Verde. Não fiz caso. Olho mentia como um
cachorro.
“Depois latiu a Tatuíra. Era mais
sério. Tatuíra, por Mozart e Minerva, herdara do pai as sólidas qualidades de mestre,
prejudicadas, porém, por umas excentricidades histéricas da mãe, que, coitada, morreu
hidrófoba. E assim, como chienne souvent varie,
eu que estava deitado de papo acima sob a copa de um ingazeiro marginal ergui-me,
mas só nos cotovelos.
“Nisto acuou Mozart — au, au, au, au: — anta! De um pulo pus-me
na espera, atento. Logo depois os latidos amiudaram e percebi que todos os cães,
exceto aquele tranca do Vinagre, corriam no calcanhar da anta.
“Como você sabe, corrida de anta no
mato é um castigo. Não há barulho igual. Anta acuada mete-se num trote rompente
por meio dos tramados, e vara caminho em linha reta, amassando o reino vegetal como
um tanque de carne.
“E por isso enche a floresta de uma
barulhada infernal, de fazer pequeno o coração do caçador novato.
“Vinha para meu lado a bicha, margeando
o rio. O estrépito das taquaras rachadas, e da galhaça feita em lascas, crescia
de vulto rapidamente. Eu postei-me em posição de fogo, no eixo de um valado, onde
forçosamente ela havia de entreparar, e engatilhei a Lafourché, bem encaroçada de
paula-sousa.
“Au! au! au! Estava a bicha a coisa de cem metros; mais minuto e rompia
na clareira onde a esperava o meu tiro. O barulho fez-se atroador! Parecia um furacão
do inferno em trabalhos de arrasar a floresta! Os taquaruçus rebentavam com estampidos
de bomba; e embaúvas de foice gemiam estaladas nas sapopembas. Vinte metros! O fragor
já ensurdecia os meus ouvidos. Dez passos! Só tinha o monstro de vencer um moitão
de taquaruçus para cair no limpo da espera. Bá,
bá, tá, tá — a moita estremeceu, rasgou-se, estrondeante, e uma anta cascuda,
que mais parecia um rinoceronte, rompeu da tranqueira verde e estacou apalermada
à beira do valo. — Eu — pum! pum! — tiro
de barragem no pé do ouvido. Ela moleou o corpo e sumiu o corpanzil para dentro
do buraco, estrebuchando, e lá desferiu um berro que parecia fim do mundo!”
Neste ponto eu interrompi o major
com um aparte inocente:
— Será que anta berra, major?
O homem vacilou um segundo, mas tomando
pé incontinenti disse:
— Ora, que diabo! Estou confundido.
Não era “propriamente” anta o que eu caçava nesse dia, era um veado! É isso mesmo,
um lindo veado-catingueiro...
Mas, como ia dizendo, o veado berrou
e eu...
O veado berrou e o major continuou
a história da maior façanha da sua vida com uma impavidez que é privilégio dos heróis.
E eu tive lado de verificar quanta razão assistia ao povo em tê-lo na conta do caçador
mais verídico da zona. O major positivamente não mentia, confundia apenas uma caçada
com outra, por defeito de memória, coisa aliás desculpável em quem já trazia sobre
si o peso de sessenta janeiros. Agora que o meu pobre amigo jaz a dormir o derradeiro
sono, presto aqui a homenagem desta confissão às altas qualidades do seu espírito
superiormente fidedigno.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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