Era no Paraíso e Deus estava
contente. Tinha criado a luz, as estrelas, o ar, a água e por fim criou a Vida,
semeando-a sob milhares de formas por cima da terra fresquinha e nua. E
esfervilhou de viventes o orbe, aqui bactéria e mastodonte, ali musgo e baobá,
além craca e baleia a suma variedade de aspectos dentro da perfeita unidade de
plano.
E Deus, que achara aquilo bom,
deliberou consolidar sua obra de vida per
secula seculorum com o invento da Fome e do Amor, dois apetites tremendos
engastados no âmago das criaturas à guisa de moto-contínuo da Perpetuação. E
cofiando a imensa barba branca, velha como o Tempo, lançou a palavra mágica que
tudo move e tudo explica:
– Comei-vos uns aos outros e
nos intervalos amai!
Em seguida elaborou para
regência da animalidade o Código da Sabedoria Ingênita.
Não deu esse nome ao Código,
visto como, no começo, não existindo homem, não existiam nomes.
– Não existindo homens?...
Sim, o homem não estava nos
planos do Criador. Esta revelação mirífica, que ainda há de roer pelos
alicerces as caducas verdades oficiais (e talvez me conquiste o prêmio Nobel),
está ansiosinha por me fugir da pena. Que fuja, que se espoje no espírito do
leitor. Adeus, filha!...
Não era escrito esse Código.
Lei escrita vale por pura invenção humana – donde a rapidez com que envelhecem
os códigos humanos e as humanas leis. Escrever é fixar e fixar é matar.
Perpétuo movimento, a vida é infixa.
Entretanto, se o não escreveu,
foi além Jeová: impregnou com ele cada uma das criaturas recém-formadas, de
modo que ao nascer já viessem ricas da sabedoria infusa e agissem
automaticamente de acordo com os imutáveis preceitos da lei natural.
Este saber sem aprender
receberia do homem o nome de Intuição, assim como o Código Ingênito receberia o
nome de Instinto. Os futuros homens se caracterizariam pelo vezo de dar nome às
coisas, gozando-se da fama de sábios os que com maior entono e mais
pomposamente as nomeassem.
Grande doutor, o que tomasse o
pulso a um doente, lhe espiasse a língua e gravibundo dissesse, tirando do
nariz os óculos de ouro: “polinevrite metabólica”; e, grande mestre, o que
apontasse o dedo para um grupo de estrelas e declarasse com voz firme: “constelação
do Centauro”. Doença e estrelas, com ou sem nome, seguiriam o seu curso prefixo
– mas nada de louvores ao médico que apenas dissesse: “doença”, ou ao mestre
que humilde murmurasse: “astros”. Paga ou louvor não os teria o ignorante, isto
é, o homem que não sabe nomes. Viva o nome!
Assim, inoculou Deus em todos
os seres a sabedoria da vida e pô-los no orbe como notas cromáticas do pot-pourri sinfônico de cuja audição
integral somente os seus ouvidos gozariam o privilégio.
E Deus achou que estava ótimo.
Grandes coisas tinha feito. A
gravitação dos mundos era jogo de movimentos que mais tarde derrubaria o queixo
a Newton – mas não passava de mecânica pura.
A concepção do éter, da luz,
do calor, assombrosas invenções eram mas mecânica fria.
O bonito fora a criação da
Vida, porque, obra de arte das mais autênticas, só ela dava medida completa dos
imensos recursos do alto engenho de Deus.
Quanta afinação no tumulto
aparente! A bactéria às voltas com o mastodonte, o musgo em simbiose com o
baobá, a craca aparasitada à baleia... Vida em vida, vida devorando vida, vida sobrepondo-se
à vida, vida criando vida... O perpétuo ressoar dos uivos de cólera, berros de
dor, guinchos de alegria, gemidos de gozo sonorizando o perpétuo agitar-se das
formas – voo de ave, arranque de tigre,
coleio de serpe, rabanar de peixe, tocaiar de sáurio...
Tão pitoresca saiu a ópera
VIDA que o Sumo Esteta a elegeu para recreio de sua Eterna Displicência. E,
debruçado na amplidão, as longas barbas dispersas ao vento, o contemplativo Jeová antecipou a figura do
sábio que no fundo dos laboratórios cisma sobre o microscópio.
***
Ora, pois, certo dia de
estuporante mormaço, um casal de chimpanzés dormitava beatificamente no esgalho
de enorme embaúba. Digeriam as bananas comidas e prelibavam, risonhos, as
bananas da manhã seguinte.
Eram chimpanzés como os demais,
sábios de sabedoria inculcada pelo Eterno, e bem-comportadinhas notas da ópera
paradisíaca.
Mas Eolo suspirou no seu antro
e um forte pé-de-vento deu, que vascolejou com frenesi a árvore e fez o
chimpanzé macho, perdido o equilíbrio, precipitar-se de ponta-cabeça ao chão.
Seria aquilo um tombo como
qualquer outro, sem consequências funestas, se a malícia da serpente não
houvesse colocado ao pé da embaúba uma grande laje, na qual se chocou o crânio
do infeliz desarvorado.
Perdeu os sentidos o macaco; e
a macaca, presa de grande aflição, pulou incontinenti a socorrê-lo. Rondou-lhe
em torno aos guinchos, soprou-lhe nos olhos, amimou-o, beliscou-lhe as carnes
insensíveis e, por fim, convencida de que estava bem morto, deu de ombros, já
com a ideia na escolha de quem lhe consolasse a viuvez.
Mas não morrera o raio do
chimpanzé. Minutos depois entreabria os olhos, piscava sete vezes e levava as
mãos à fronte, significando que lhe doía.
Neste comenos funga no juncal
próximo um tigre. Desde o Paraíso que os tigres "adoram" os macacos,
como desde o Paraíso que os macacos arrenegam dos tigres. Em virtude de tal
divergência, a fungadela felina valeu por frasco de amoníaco nas ventas do
contuso. Pôs-se de pé, inda tonto e, ajudado da companheira, marinhou embaúba
acima, rumo ao galho de pouso, onde, a bom recato, pudesse distrair a dor de
cabeça com a linda cena que é um tigre faminto à caça de bicho que não seja
chimpanzé.
Desde essa desastrada queda
nunca mais funcionou normalmente o cérebro do pobre macaco. Doíam-lhe os
miolos, e ele queixava-se de vágados e de estranho mal-estar.
É que sofrera seriíssima
lesão.
Digo isto porque sou homem e
sei dar nomes aos bois; homem ignorante, porém, não vou mais longe, nem ponho
nome grego à lesão. Afirmo apenas que era lesão, certo de que me entendem os
meus incontáveis colegas em ignorância nomenclativa.
Lesão grave, gravíssima, e de
resultados imprevisíveis à própria presciência de Jeová.
A Bíblia já tratou do assunto;
de modo simbólico, entretanto, fugindo de tomar a Queda ao pé da letra. Moisés,
redator do Gênesis, tinha veleidades poéticas – mas não previra Darwin, nem a
força do prêmio Nobel como áureo pai de grandes descobertas. Moisés poetizou...
Fez um Adão, uma Eva, uma serpente e um pomo, que certos exegetas declaram ser
a maçã e outros, a banana. Compôs assim uma peça com a mestria consciente de
Edgard Poe ao carpinteirar O Corvo,
mas sem deixar, como Poe, um estudo da psicologia da composição, onde
demonstrasse que fez aquilo por a + b e com bem estudada pontaria. E foi pena!
Quanto papel, tinta e sangue tal esclarecimento não pouparia à humanidade,
sempre rixenta na interpretação dos textos bíblicos!
Vem daí que é o Genesis uma
peça de fina psicologia, e por igual penetrante nas cabeças duras e nas dos
Pascais, permeabilíssimas; o que escasseia ao Genesis é acordo com a verdade
dos fatos. Essa verdade, mais preciosa que o diamante Cullinan, eu a achei sob
o montão de cascalho das hipóteses e sem nenhum alarde aqui a estampo de graça.
Já é ser generoso! Tenho nas unhas a verdade das verdades e não requeiro do
Congresso um prêmio de 50 contos! Contento-me com um apenas – com este pobre
conto...
***
A partir da Queda, o nosso
macaco entrou a mudar de gênio. Sua cabeça perdeu o frescor da antiga
despreocupação e deu de elaborar uns mostrengozinhos, informes, aos quais, com
alguma licença, caberia o nome de ideias.
Vacilava, ele que nunca
vacilara e sempre agira com os soberbos impulsos do automatismo. Entre duas
bananas pateteava na escolha tomado de incompreensíveis indecisões – e por
vezes perdeu ambas, iludido por monos de bote pronto que não vacilavam nem
escolhiam.
Para galgar de um ramo a outro
calculava agora não só a distância como a força do salto – e errava, ele que
antes da lesão nunca errara pulo.
Até em suas relações
sentimentais com a velha companheira o chimpanzé variou. Ganho de malsãs
curiosidades, examinava as outras macacas do bando, comparava-as à sua e
cometia o pecado de desejar a macaca do próximo.
Como também claudicasse na
escolha das frutas, comeu diversas impróprias à alimentação símia, daí provindo
as primeiras perturbações gastrointestinais observadas na higidez do Paraíso – enterites,
colites, disenteria ou o que seja.
Quando iam águias pelo céu,
punha-se a contemplar os seus harmoniosos voos, com vagos anseios nas tripas e
muito desejo na alma de ser águia. Era a inveja a nascer, má cuscuta que
vicejaria luxuriantemente na execrável descendência desse mono. Invejou as aves
que dormiam em ninho fofo e os animais que moravam em boas tocas de pedra.
Abandonou o viver em árvore, prescrito para os da sua laia pelo Código
Ingênito, e deu de andar sobre a terra de pé sobre as patas traseiras, com as
dianteiras – futuras mãos – ocupadas em construir ninho, como os via fazer às
perdizes, ou toca, como as tem o tatu.
E sempre nervoso e inquieto, e
descontente com a ordem das coisas estabelecida no Éden, imaginava mudanças e
"melhoramentos". E variava e tresvariava, e malucava, arrastando
consigo a pobre companheira que, sem nada compreender de tudo aquilo, em tudo o
imitava passivamente, dócil e meiga.
Aconteceu o que tinha de
acontecer. A admirável disciplina reinante no Éden viu-se logo perturbada pelo
estranho proceder do macaco, advindo daí murmurações e por fim queixas a Jeová.
E tais e tantas foram as queixas, que o Sumo, zangado com a nota desafinadora
da sua música divina, ordenou ao anjo Gabriel que pusesse no olho da rua o
sustenido anárquico.
***
Até esse ponto vai certo
Moisés. Onde começa a fazer poesia é daí por diante. De fato, Jeová ordenou a
expulsão do rebelde e São Gabriel deu para executá-la os primeiros passos. A
curiosidade, porém, que dizem feminina mas aqui se vê que é divina, fez o
Criador reconsiderar.
– Suspende, Gabriel! Estou
curioso de ver até que extremos irá o desarranjo mental do meu macaco.
Era Gabriel o Sarrazani
daquele jardim zoológico e, graças ao convívio com o Eterno, adquirira alguma
coisa da divina presciência. Assim foi que objetou:
– Vossa Eternidade me perdoe,
mas se lá deixamos o trapalhão aquilo vira em "humanidade"...
– Sei disso – retorquiu o Soberano Senhor de todas as
coisas. – A lesão do cérebro do meu macaco põe-no à margem da minha Lei Natural
e fá-lo-á discrepar da harmonia estabelecida. Nascerá nele uma “doença”, que
seus descendentes, cheios de orgulho, chamarão inteligência – e que, ai deles!,
lhes será funestíssima. Esse mal, oriundo da Queda, transmitir-se-á de pais a
filhos – “mas só aos filhos machos”, note bem! – e crescerá sempre, e
terrivelmente influirá sobre a terra, modificando-lhe a superfície de maneira
muito curiosa. E, deslumbrados por ela, os homens ter-se-ão na conta de
criaturas privilegiadas, entes à parte no universo, e olharão com desprezo para
o restante da animalidade. E será assim até que um senhor Darwin surja e prove
a verdadeira origem do Homo sapiens...
-?!
- Sim. Eles nomear-se-ão Homo
sapiens apesar do teu sorriso, Gabriel, e ter-se-ão como feitos por mim de um
barro especial e à minha imagem e semelhança.
-?!!
Os demais chimpanzés
permanecerão como eu os criei; só o ramo agora a iniciar-se com a prole do
lesado é que se destina a sofrer a diferenciação mórbida, cuja resultante será
cair o governo da terra nas unhas de um bicho que não previ.
-?!!!
– Essa inteligência se
caracterizará pela ânsia de ver-me através das coisas, e para que bem a
compreendas, Gabriel, te direi que será como asas sem ave, luz sem sol, dedos
sem pés...
Gabriel não compreendeu coisa
nenhuma da longa definição de Jeová – e como sucederia o mesmo com os meus
leitores, interrompo-a nos dedos sem pés. Até aí ainda a percepção é possível;
mas no ponto em que Jeová lhe assinalou a essência última, nem Einstein
pescaria um x...
Vendo o ar aparvalhado de
Gabriel, o Criador pulou da metagênese abaixo e falou fisicamente.
– Essa inteligência apurará
aos extremos a crueldade, a astúcia e a estupidez. Por meio da astúcia se farão
eles engenhosos, porque o engenho não passa da astúcia aplicada à mecânica. E à
força de engenho submeterão todos os outros animais, e edificarão cidades, e
esfuracarão montanhas, e rasgarão istmos, destruirão florestas, captarão
fluidos ambientes, domesticarão as ondas hertzianas, descobrirão os raios
cósmicos, devassarão o fundo dos mares, roerão as entranhas da terra...
Gabriel estremeceu. Apavorou-o
a força futura da inteligência nascente; mas Jeová sorriu, e quando Jeová
sorria Gabriel serenava.
– Nada receies. Essa
inteligência terá alguns atributos da minha, como o carvão os tem do diamante,
mas estará para a minha como o carvão está para o diamante. A fraqueza dela
provirá da sua jaça de origem. Inteligência sem memória, inteligência de
chimpanzé, o homem esquecerá sempre. Esquecerá o que ensinei aos seus
precursores peludos e esquecerá de colher a boa lição da experiência nova.
Seu engenho criará
engenhosíssimas armas de alto poder destrutivo – e empolgados pelo ódio se
estraçalharão uns aos outros em nome de pátrias, por meio de lutas tremendas a
que chamarão guerras, vestidos macacalmente, ao som de músicas, tambores e
cornetas – esquecidos de que não criei nem ódio, nem corneta, nem pátria.
E transporão mares, e
perfurarão montes, e voarão pelo espaço, e rodarão sobre trilhos na vertigem
louca de vencer as distâncias e chegar depressa – esquecidos de que eu não
criei a pressa nem o trilho.
E viverão em guerra aberta com
os animais, escravizandos e matando-os pelo puro prazer de matar – esquecidos
de que eu não criei o prazer de matar por matar.
E inventarão alfabetos e
línguas numerosas, e disputarão sem tréguas sobre gramática, e quanto mais
gramáticas possuírem menos se entenderão. E se entenderão de tal modo
imperfeito que aclamarão o messias do entendimento geral, um doutor
Zamenhoff...
– Já sei! Um que proporá a
supressão das línguas.
Jeová sorriu.
– Não! Apenas o criador de
mais uma. E eles elaborarão ciências e excogitarão toda a mecânica das coisas,
adivinhando o átomo e o planeta invisível, e saberão tudo menos o segredo da
vida.
E um Pascal, muito cotado
entre eles, dará murros na cabeça, na tortura de compreender os xx supremos – e os homens admirarão
grandemente esses murros.
E criarão artes numerosas, e
terão sumos artistas e jamais alcançarão a única arte que implantei no Éden – a
arte de ser biologicamente feliz.
E organizarão o parasitismo na
própria espécie, e enfeitar-se-ão de vícios e virtudes igualmente antinaturais.
E inventarão o Orgulho, a Avareza, a Má-fé, a Hipocrisia, a Gula, a Luxúria, o
Patriotismo, o Sentimentalismo, o Filantropismo, a Colocação dos Pronomes – esquecidos
de que eu não criei nada disso e só o que eu criei é.
E em virtude de tais e tais
macacalidades, a inteligência do homem não conseguirá nunca resolver nenhum dos
problemas elementares da vida, em contraste com os outros seres, que os terão a
todos solvidos de maneira felicíssima.
Não saberá comer; e ao lado
das minhas abelhas, de tão – sábio regime alimentar sábio porque por mim
prescrito –, o homem morrerá de fome ou indigestão, ou definhará achacoso em consequência
de erros ou vícios dietéticos.
Não saberá morar – e ao lado
das minhas aranhas, tão felizes na casa que lhes ensinei, habitarão ascorosas
espeluncas sem luz, ou palácios.
Não resolverá o problema da
vida em sociedade, e experimentará mil soluções, errando em todas. E revoluções
tremendas agitarão de espaço em espaço os homens no desespero de destruir o
parasitismo criado pela inteligência – e as novas formas de equilíbrio surgidas
afirmar-se-ão com os mesmos vícios das velhas formas destruídas. E o homem
olhará com inveja para os meus animaizinhos gregários, que são felizes porque
seguem a minha lei sapientíssima.
E não solverá o problema do
governo; e mais formas de governo invente, mais sofrerá sob elas –esquecido de
que não criei governo. E criará o Estado, monstro de maxilas leoninas, por meio
do qual a minoria astuta parasitará cruelmente a maioria estúpida. E a fim de
manter nédio e forte esse monstro, os sábios escreverão livros, os matemáticos
organizarão estatísticas, os generais armarão exércitos, os juízes erguerão
cadafalsos, os estadistas estabelecerão fronteiras, os pedagogos atiçarão
patriotismos, os reis deflagrarão guerras tremendas e os poetas cantarão os
heróis da chacina para que jamais a guerra cesse de ser uma permanente.
– Queres ver ao vivo, Gabriel,
o que vai ser a chimpanzeização do mundo? Corre essa cortina do futuro e espia
por um momento a humanidade.
Gabriel correu a cortina do
futuro e espiou. E viu sobre a crosta da terra uma certa poeira movediça. Mas,
ansioso de detalhes, Gabriel microscopou e distinguiu uma dolorosa caravana de
chimpanzés pelados, em atropelada marcha para o desconhecido.
Miserável rebanho! Uns
grandes, outros pequenos; estes louros, aqueles negríssimos – nada que
recordasse a perfeição somática dos outros viventes, tão iguaizinhos dentro do
tipo de cada espécie. Que feia variedade! Ao lado do Apolo, o torto, o capenga,
o cambaio, o corcovado, o corcunda, o raquítico, o trôpego, o careteante, o
zanaga, o zarolho, o careca, o manco, o cego, o tonto, o surdo, o espingolado,
o nanico... Caricaturas móveis, com os mais grotescos disparates nas feições,
era impossível apanhar-lhes de pronto o tipo-padrão. E Gabriel evocou
mentalmente a linda coisa que é um desfile de abelhas ou pinguins, no qual não
há um só indivíduo que destoe do padrão comum.
Da manada humana subia um
rumor confuso. Gabriel desencerrou os ouvidos e pôde distinguir sons para ele
inéditos: tosse, espirros, escarradelas, fungos, borborigmos, ronqueira
asmática, gemidos nevrálgicos, ralhos, palavrões de insulto, blasfêmias, gargalhadas,
guinchos de inveja, rilhar de dentes, bufos de cólera, gritos histéricos...
Depois observou que à frente
das multidões caminhavam seres de escol, semideuses lantejoulantes, vestidos
fantasiosamente, pingentados de cristaizinhos embutidos em engastes
metálicos, com penas de aves
na cabeça, cordões e fitas, crachás e miçangas...
– Quem são?
– Os chefes, os magnatas, os
reis: os condutores de povos. Conduzem-nos... não sabem para onde.
E viu, entremeio à multidão,
homens armados, tangendo o triste rebanho a golpes de espada ou vergalho. E viu
uns homens de toga negra que liam papéis e davam sentenças, fazendo pendurar de
forcas miseráveis criaturas, e a outras cortar a cabeça, e a outras lançar em
ergástulos para o apodrecimento em vida. E viu homens a cavalo,
carnavalescamente vestidos, empenachados de plumas, que arregimentavam as
massas, armavam-nas e atiravam-nas umas contra as outras. E viu que depois de
tremenda carnificina um grupo abandonava o campo em desordem, e outro, atolado
em sangue e em carne gemebunda, cantava o triunfo num delírio orgíaco, ao som
de músicas marciais. E viu que os homens de penacho organizadores das chacinas
eram tidos em elevadíssima conta. Todos os aplaudiam, delirantes, e os
carregavam em charolas de apoteose. E viu que a multidão caminhava sempre
inquieta e em guarda, porque o irmão roubava o irmão, e o filho matava o pai, e
o amigo enganava o amigo, e todos se maldiziam e se caluniavam, e se detestavam
e jamais se compreendiam...
Horrorizado, Gabriel cerrou a
cortina do futuro e disse ao Criador:
– Se vai ser assim, cortemos
pela raiz tanto mal vindouro. Um chimpanzé a menos no Paraíso e estará evitado
o desastre.
– Não! – respondeu o Criador. –
Tenho um rival: o Acaso. Ele criou o homem, provocando a lesão desse macaco, e
quero agora ver até a que extremos se desenvolverá essa criatura aberrante e
alheia aos meus planos.
Gabriel piscou por uns
momentos (quatorze vezes ao certo), desnorteado pela expressão "quero
ver", jamais caída dos lábios do Senhor. Haveria porventura algo fechado,
ou obscuro, à presciência divina?
E Gabriel ousou interpelar
Jeová.
– Não sois, então, Senhor, a
Presciência Absoluta?
Jeová franziu os sobrolhos
terríveis e murmurou apenas:
– Eu Sou, e se Sou, Sou também
O que se não interpela.
Gabriel encolheu-se como
fulminado pelo raio e sumiu-se da presença do Eterno com pretexto de uma vista
de olhos pelo Éden.
***
Linda tarde! O sol moribundo
chapeava debruns de cobre nos gigantescos samambaiaçus, a cuja sombra
dormitavam megatérios de focinhos metidos entre as patorras.
As arqueopterix desajeitadonas chocavam na areia seus grandes ovos.
Um urso das cavernas catava as
pulgas da companheira com a minuciosa atenção dum entomologista apaixonado, e
de longe vinham urros de estegossauros perseguidos por mutucões venenosos.
Ao fundo dum vale de avencas
viçosas como bambus, dois labirintodontes amavam-se em silencioso e pacato
idílio, não longe de um leão fulvo que comia a carne fumegante da gazela recém
abatida.
Aves gorjeavam amores nos
ramos; serpes monstruosas magnetizavam monstruosas rãs; flores carnívoras
abriam a goela das corolas para a apanha de animaizinhos incautos.
Paz. Paz absoluta. Felicidade
absoluta. A Vida comia a Vida e a Vida amava para que não se extinguisse a Vida
– tudo rigorosamente de acordo com a
senha divina.
Só Adão, o macaco lesado,
discrepava, piscando os olhinhos vivos, como a ruminar certa ideia. Gabriel
parou perto dele e deixou-se ficar a observá-lo. Viu que Adão, de olhos
ferrados numa toca de onça, “raciocinava”: Ela sai e eu entro, e fecho a porta
com uma pedra, e a casa fica sendo minha...
Eva, a macaca ilesa,
permanecia muda ao lado, embevecida no macho pensante. Não o compreendia – não
o compreenderia nunca! –, mas admirava-o, imitava-o e obedecia-lhe
passivamente.
Nisto, a onça deixou o antro e
foi tocaiar uma veadinha.
– "Acompanhe-me!" –
disse Adão à companheira, e ambos precipitaram-se para a toca da onça, cuja
entrada fecharam por dentro com uma grande pedra roliça. E ficaram donos.
Gabriel, que acompanhara toda
aquela maromba, acendeu um cigarro de papiro, baforou para o céu três fumaças e
murmurou:
– Ele já é inteligência. Ela
não passa de imitação. É lógico: só ele foi lesado no cérebro; mas vão ver que
Eva, a instintiva, ainda acabará fingindo-se lesada...
E o primeiro difamador da
mulher foi jogar sua partida de gamão com o Todo-Poderoso.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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