Havia um rei que cegou. Por
mais que os médicos o tratassem com quanto remédio havia, não recobrava nem um
pingo de vista. Certa vez bateu no palácio uma mendiga, a pedir esmola; sabendo
da cegueira do rei, disse que desejava ensinar-lhe um bom remédio.
O rei a recebeu.
— Saiba S. Majestade que só
existe no mundo uma coisa capaz de curar a cegueira, e é banhar os olhos com
água da fonte das Três Comadres. Mas é muito difícil obter essa água. Quem for
buscá-la tem que entreter-se com uma velha que mora por lá; só essa velha pode
dizer se o dragão que toma conta da fonte está acordado ou dormindo.
E contou o caminho para chegar
à fonte. O rei agradeceu-lhe a informação e presenteou-a com um saco de moedas
de ouro. Em seguida ordenou que uma esquadra saísse com seu filho mais velho em
busca da tal água milagrosa, e recomendou ao príncipe que não se distraísse com
coisa nenhuma, e que estivesse de volta dentro de um ano.
O príncipe partiu. Depois de
muito navegar, chegou a um reino muito rico, onde saltou em terra e caiu na
folgança com as lindas moças que lá havia. Gastou todo o seu dinheiro, fez
dívidas e ao esgotar-se o prazo nem coragem teve de voltar para casa.
O rei, muito aborrecido,
mandou aprestar outra esquadra, que partiu levando o filho do meio. Esse moço
foi também .ao tal reino, onde igualmente se enfeitiçou pelas moças bonitas,
esquecendo o pai cego e a água milagrosa.
Mais um ano se passou sem que
ele voltasse. O rei quase morreu de desgosto.
Foi então que o filho mais
novo se apresentou dizendo:
— Meu pai, deixe-me ir, que
juro trazer a água maravilhosa.
— Como? Não vês que és uma
criança? Se teus irmãos, homens feitos, nada conseguiram, que esperas
conseguir, tu que ainda estás tão perto dos cueiros?
Mas tanto o principezinho
insistiu que o rei cedeu, pensando lá consigo que donde menos se espera é que
as coisas vêm. Deu-lhe uma esquadra e o menino partiu.
Também essa esquadra foi ter
ao reino das moças perigosas, onde os dois príncipes se achavam encarcerados
por dívidas. O principezinho pagou
as dívidas deles, único meio
de os restituir à liberdade. Esses maus príncipes, porém, deram-lhe maus
conselhos — que ficasse ali, que desistisse de achar a tal água, etc. Mas o
principezinho não cedeu. Tocou a esquadra para diante.
Chegou por fim ao reino onde
era a fonte, e tanto fez que descobriu a velha do dragão. Vendo aquele meninote
com uma garrafa vazia debaixo do braço, a velha espantou-se.
— Que vem fazer aqui, meu
netinho? Não sabe que o perigo é grande e ninguém escapa ao dragão? Esse
monstro não passa duma princesa encantada, que devora todas as criaturas que se
aproximam da fonte.
Mas o principezinho contou sua
história e insistiu para que a velha o ajudasse.
— Está bem — disse ela. —
Aproxime—se do dragão sem ser visto e espie se está de olhos abertos ou
fechados. Se estiver de olhos abertos é que está dormindo, e se estiver de
olhos fechados é que está acordado. Por não saber disto muita gente foi
devorada pelo monstro.
O principezinho agradeceu o
aviso e partiu. Aproximou-se cautelosamente do dragão. Espiou. Estava de olhos
abertos. "Bem — disse ele consigo — o dragão está dormindo" — e
avançou com a garrafa na direção da fonte para enchê-la. Mas o monstro fechou
os olhos e saltou sobre ele. O principezinho não teve medo. Puxou da espada e
enfrentou-o. Luta que luta, de repente conseguiu dar-lhe um golpe certeiro. O
sangue espirrou do dragão, que imediatamente se transformou na mais linda
princesa que se possa imaginar.
— Tu me desencantaste,
principezinho — disse ela — e minha sorte me manda casar contigo. Dou-te um ano
para voltares. Se não voltares irei em tua procura. Toma este lenço como sinal.
Adeus
O príncipe regressou, muito
alegre, para o reino de seu pai. Em caminho apanhou os irmãos no reino das
moças bonitas e levou-os também. Mas esses maus irmãos armaram-lhe uma boa peça.
Com o fim de roubarem a água milagrosa, que ele guardava num baú cuja chave
trazia num fio ao peito, prepararam um grande banquete a bordo, com muito
vinho. E tanto fizeram que o embebedaram, e lhe tiraram a chave, trocando lá no
baú a garrafa de água milagrosa por água à-toa do mar.
Quando a esquadra chegou ao
reino do rei cego, os príncipes foram recebidos com grandes festas. O
principezinho contou toda a sua viagem e entregou ao pai a garrafa de água
milagrosa. O efeito, porém, foi um desastre. Em vez de curar a cegueira,
deixou-a ainda pior. Os maus príncipes, então, adiantaram-se e disseram que o
principezinho não passava dum impostor, pois trouxera água do mar em vez de
água milagrosa. O rei que experimentasse a que eles haviam trazido — e mostraram
a garrafa de água da fonte. O rei experimentou-a e imediatamente sarou da
cegueira.
Houve grandes festas em todo o
reino, mas o principezinho foi condenado à morte pela sua impostura. Os
carrascos, entretanto, tiveram dó dele, e em vez de matá-lo, como ordenara o
rei, apenas lhe cortaram um dedo como prova, soltando-o em seguida na floresta.
O pobre moço foi ter à casa de
um lenhador, a quem pediu emprego. Foi ajustado como escravo e muito judiado. E
o prazo de um ano concedido pela princesa chegou ao fim sem que o coitadinho
pudesse pensar em ir procurá-la tão longe. Vendo que o seu desencantador não
vinha, a princesa mandou aparelhar uma esquadra e partiu em sua procura,
conforme prometera.
Quando a esquadra chegou ao
reino, a princesa mandou um emissário, ricamente vestido, dizer ao rei que
tinha combinado casamento com o príncipe que a desencantara, e agora estava ali
para dar cumprimento à promessa. E que mandasse a bordo o príncipe, sob pena de
seus navios abrirem fogo contra a cidade, incendiando-a.
O rei, muito agoniado, teve de
ceder, e o príncipe mais velho apresentou-se a bordo como sendo o desencantador
da princesa.
— Homem atrevido! — gritou
esta — como ousa fingir ser quem não é? Onde está o lenço que dei ao meu
desencantador?
O príncipe voltou para terra,
muito triste. O rei então mandou o do meio. O resultado não foi melhor, e a
princesa, furiosa, fez outra intimação ao rei. Ou mandava o príncipe verdadeiro
ou os seus canhões bombardeavam a cidade, destruindo tudo.
O rei ficou aflitíssimo,
porque o príncipe mais novo havia sido executado por sua ordem. Estava a
arrancar as barbas no maior desespero, quando os carrascos vieram dizer que não
o tinham matado, mas apenas se limitado a cortar-lhe um dedo. Suspirando de
alívio, o rei deu ordem para que procurassem o principezinho, com grandes
recompensas a quem o descobrisse.
O lenhador que conservava o
príncipe como escravo ficou mais morto do que vivo quando soube de tudo.
Botou-o às costas e lá se foi ao palácio do rei, chorando de alegria e medo.
Estava o pobre príncipe em
miserável estado de sujeira, vestido de andrajos. Tiveram de lavá-lo e vesti-lo
com as suas roupas deixadas no palácio, por sinal que curtas e apertadíssimas.
Enquanto faziam esses preparativos, o prazo dado pela princesa, de bombardear a
cidade, ia chegando ao fim. Os canhões já estavam apontados. Mas tudo correu
bem. O principezinho entrou no navio da princesa e mostrou-lhe o lenço.
— Agora sim — disse ela —
reconheço em ti o meu desencantador — e seguiu com ele para o seu reino, onde
se casaram e foram muito felizes. Os príncipes maus, esses tiveram o castigo
merecido. Foram amarrados à cauda de cavalos bravos para morrerem despedaçados.
***
— Continua o negócio do número
três — disse Emília. — Tudo tem que ser três! O povo não passa sem um rei e
três príncipes, dois maus e um bom. E o bom é sempre o mais criança.
— E o castigo dos maus —
ajuntou Narizinho — também é sempre o mesmo: amarração em cauda de cavalo ou
burro bravo. Acho muito bárbaras essas histórias.
— É que vêm de muito longe —
disse dona Benta. — Se fossem histórias de hoje, teríamos automóveis em vez de
forcas, e não veríamos nunca esse horrendo castigo do despedaçamento por burros
bravos. O povo, muito conservador, repete hoje as mesmas histórias contadas na
Idade Média, tempo em que enforcar gente correspondia a um divertimento
público, como hoje ir ver fitas.
— Mas se os contadores vão
alterando as histórias — disse Pedrinho — por que conservam essas barbaridades?
— As alterações são só na cor local,
em detalhes superficiais. Na essência, no fundo, as histórias não são
alteradas. Por isso aparecem tantos príncipes, tantos reis, tanta forca e tanto
burro bravo — explicou dona Benta.
— E os dragões e
encantamentos?
— Também coisas da Idade Média.
Naquele tempo a imaginação popular andava povoada de monstros. Um dia havemos
de ler o poema de Ariosto, Orlando Furioso, no qual vocês verão que delírio de
pesadelo era a cabeça da gente medieval. As histórias que correm entre o nosso
povo são reflexos da era mais barbaresca da Europa. Os colonizadores
portugueses trouxeram essas histórias e soltaram-nas por aqui — e o povo as vai
repetindo, sobretudo na roça. A mentalidade da nossa gente roceira está ainda
muito próxima da dos primeiros colonizadores.
— Por que, vovó?
— Por causa do analfabetismo.
Como não sabem ler, só entra na cabeça dos homens do povo o que os outros
contam — e os outros só contam o que ouviram. A coisa vem assim num rosário de
pais a filhos. Só quem sabe ler, e lê os bons livros, é que se põe de acordo
com os progressos que as ciências trouxeram ao mundo.
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Notas:
Extraído da obra: Histórias de Tia Nastácia.
Transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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