(Versão livre de Charles Epheyre)
Duas altas montanhas cortadas por
desfiladeiro profundo...
Dir-se-ia que um golpe colossal fendera
o largo maciço em dois pedaços cambaleantes.
Há neve nos cumes alcantilados.
Abrupto o declívio, erriçado de
extravagantes rochedos, debruçados sobre o abismo.
Pinheiros nodosos torcem as raízes, a
espaços, era roda de pedras que se deslocam.
No fundo, muito embaixo, o estridor de
uma torrente.
Eis, entretanto, uma senda na orla do
precipício. Tê-la-ia escavado humana mão?! Passagem escorregadia e estreita...
Que de vertigens em certos trechos... E
como ondula, formando ângulos e cotovelos estranhos, dependurada na escarpa!
É de tarde; mas o sol não se deitou
ainda. Em cima da garganta chameja um retalho rubro do firmamento. Começou, todavia,
a difusão da sombra.
Já menos precisas as formas; o ar mais
frio, enquanto ligeiro vapor se eleva lentamente, como que malgrado seu, dos
recessos das furnas.
Um viajante, na destra o bordão, segue
rapidamente a vereda esguia.
Apressa-se; não quer que a noite o
assalte.
Homem na força da idade, o viajante.
Cobre-o um capacete de cimeira branca. Traz, atadas solidamente, espessas sandálias
nos pés. Envolve-lhe escura clâmide as espáduas e cai como um manto até abaixo dos joelhos,
delineando sob as dobras o perfil de uma espada.
Mas a trova se adensa; e o viajante
acelera o passo, sem contudo trair inquietação.
De repente, numa volta da estrada,
suspende a marca surpreendido, porém não espantado.
Diante dele surdiu monstruosa aparição.
É enorme animal acocorado no meio do
caminho.
Rente e fulvo o pelo, corpo ágil,
ondeante como o do tigre ou o da serpente.
Dobram-se-lhe sob a anca as patas traseiras,
membrudas e munidas do aceradas garras, que escarvam impacientemente o solo, expelindo
para longe do si pó e pequenos seixos. Mostra, coladas ao dorso, duas asas
frementes, altas, como velas de navio, as quais se fecham e se desfraldam, em
movimento vagaroso e regular.
Entre as patas dianteiras, sobre o
peito, como em gigantesca estátua de mulher, dois seios robustos, hirtos, admiravelmente
esféricos, aprumam as pontas das mamas rijas.
Sobre o pescoço, no lugar da cabeça,
congloba-se-lhe uma nuvem. Nenhuma conformação, nenhum contorno. Simples fumo
ou bruma, de que ninguém determinaria princípio ou fim.
Nessa obscuridade fulguram dois olhos vivacíssimos,
cuja extraordinária mobilidade fatiga.
Derramam-se à direita, à esquerda, para
cima, para baixo, sem só querer ou se poder fixar.
Tamanha cintilação dardejam, que só eles,
esses olhos comburentes, se distinguem na massa confusa, que constitui a cabeça
do monstro.
Detém-se o viajante, não revelando
temor. Pensativo, arrimado ao bordão, tentando apanhar o olhar irrequieto que o
mira sem o fitar. E o monstro fala. Murmúrio surdo, a sua voz não se converte
em palavras. Admira-se o viajante de compreender tal rumor inarticulado.
A ESFINGE
Para, viajante. Bem ousado és tu
penetrando os meus domínios. Saberás acaso quem sou eu?!
O VIAJANTE (desdenhosamente)
És a Esfinge.
A ESFINGE
Disseste-o. Não ignoras então que estes
rochedos só eu os possuo. É meu o caminho que pisas. Minhas pedras estas pedras.
Aquela torrente a minha torrente. E por aqui ninguém pode passar sem responder
às interrogações que lhe eu dirigir.
O VIAJANTE
Fala, mas apressa-te.
A ESFINGE
Não careço apressar-me, pois o tempo semelha
à torrente que ali muge: renova-se sempre e sempre me pertence. Escuta. Único
entre os humanos, não estremeceste perante mim. Conjecturo, por isso, que
vingarás resolver o problema que me ocupa. A mim, filho detestado dos deuses,
escória da Natureza e do Olimpo, abandonado no meio de lapas selvagens, a mim não
me é dado perscrutar os desígnios dos imortais. Nem alcanço, tão pouco, até que
um ser da tua espécie me haja instruído, conhecer as molas secretas que agitam
os homens, os fracos homens. És homem tu, oh! viajante, e na tua fronte cismadora
eu leio que seriamente meditas as coisas humanas. Dize-me, assim: por que é tão
miserável o homem? Igual aos deuses se presume. Audácia e astúcia o insuflam.
Trasborda orgulho de seu coração. No fundo, porém, que desgraçada entidade,
menos instigadora de cólera, que de misericórdia! Responde, viajante,
responde-me: —por que se pranteia o homem de sua sorte? Cautela, que se me não
comprazer a tua resposta, aniquilar-te-ei como aniquilado hei quantos se
arrojaram a perlustrar antes de ti esta vereda e deixaram insolúveis as minhas questões.
Vamos, fala. Qual a maior fraqueza do homem?!
O VIAJANTE
Posso responder-te, Esfinge; e,
descuidoso de te satisfazer ou de te enfadar, dir-te-ei que o homem é um ser
miserável por pequeno em meio da natureza imensa. Infinito o céu; mal
ultrapassa o homem ridícula extensão. Sabe, no entanto, que mundos inumeráveis
rolam em torno da terra e que, além desses mundos, há outros, o outros ainda,
mais vastos, mais belos, que jamais o olhar de mortal algum devassará. Nossa
miséria, oh! Esfinge, consiste em estarmos pregados a um grão de poeira sem nos
ser lícito sair. E mesmo — quo irrisão! — mesmo neste orbe minúsculo, ao qual os
seres todos são coagidos, como nós, a viver jugulados, vedado nos é debatermo-nos
em plena liberdade. Nem asas de águia, nem barbatanas de peixe. Rastejamos,
mesquinhos vermes, sobre a superfície do solo, sem nos entranharmos em suas
profundidades ou esquadrinharmos esse oceano que se nos afigura enorme e nos é
tão escasso, realmente. Nada abarcamos, nem terra, nem mar, nem estrelas, e nos
sentimos cruelmente esmagados pela grandeza do quanto nos rodeia!...
A ESFINGE
Oh! viajante, eu compreendo o teu
lamento. Mas me parece vão clamor. Almejas o espaço, o espaço sem raias. Mesmo
os deuses, porém, não abrangem o espaço. Quando a essência incoercível deles
transpõe milhões o milhões de mundos, novos mundos emergem após esses, e, por
ampla que seja a força daquela essência, não consegue atingi-los, — porque o espaço
não tem termo: — insuficientes os próprios deuses para o preencher. Não te
assiste motivo de queixa. Se em teu pensamento estua vigor que o alça ao
infinito, pouco importa que o teu corpo não logre acompanhar esse pensamento. A
um verme ou a um Deus impõem-se limites, e o espaço sem limites um Deus não o possui
mais do que ura verme.
O VIAJANTE
Não é a nossa impotência que nos torna
miserandos, mas o nosso desejo insaciado. Ser fraco, nada é; por que, porém, aspirar
a ser forte e conceber que tal força é possível?! Pungente contradição! Quão
mais feliz o ser ínfimo, incapaz de cobiça, inconsciente de sua debilidade...
Se ama, apetece o homem incluir nos braços um mundo e apenas se lhe depara uma forma
frágil e imperfeita como ele. Quando age, ambiciona exercer a sua energia sobre
o universo domado, insculpindo imperecíveis traços de seu esforço. Ai! dele!
Todos os seus alentos e confianças se esvaecem no nada. Sonhando, anela o coitado
pesquisar todos os mistérios, todos os abismos do ser e do não ser; mas mistérios
e abismos encontra-os fechados, e uma cortina escura, como tormentosa noite, se
desdobra ante os seus olhos. Para que, então, sonhar, amar, agir?
A ESFINGE
Oh! insensato! Quem me dera parecer-me
contigo! Que maior benefício dos deuses do que poder sonhar sem nunca tocar a
meta do seu sonho!...
O VIAJANTE
Oh! Esfinge! Desconheces então o que vai
nesses sonhos de agonia e tortura. Agitação estéril nos devora. Exaure-se-nos o
pensamento tentando captar-se a si próprio, sem nunca o obter. Sabemos que se pode
ser generoso, valente, casto, e habitam-nos o coração instintos ferozes que nos
constrangem à avareza, à covardia, à libertinagem. Felicidade sem mescla, quem
a fruiu jamais, mesmo permitindo livre curso àqueles instintos?! Deveres
contrários travam renhido conflito em nossa consciência. Asseguram sábios que a
verdadeira volúpia reside no sacrifico. Que volúpia amarga, essa... A cada
sacrifício corresponde ferida sangrenta. Se nos curvamos à soberania incontrastável
de nossas paixões, breve o remorso e a dor nos vêm inquinar estupidamente as
alegrias. Dos dois lados o sofrimento. Inacessível o repouso ignoramos até se a
morte nos trará paz. A morte nos apavora, o com razão. Nenhuma segurança existe
do que outros martírios não nos assaltem, emboscados atrás dela.
A ESFINGE
Viajante, eu compreendo o teu lamento.
Querias o descanso. Mas o descanso, reconhecê-lo-ás um dia, à própria
morte falece a faculdade de conferi-lo, ou, pelo menos, se o confere, não proporciona
o gozo de elo oriundo. Observa em torno de ti: tudo palpita, tudo freme, tudo
vivo. Viver ó ser ansioso; viver é experimentar a inquietação e o temor. Mas é
tudo?!... Por que passas a mão pela fronte como se acerbas preocupações te
acabrunhassem?
O VIAJANTE
É que te não desvendei ainda, oh! Esfinge,
das nossas misérias a mais impiedosa. Para tal miséria não se aponta remédio; contraímo-la,
nascendo. Cada dia, cada hora, cada minuto nos aproxima dessa morte que tanto
receamos o tudo nos arremessa a ela pelos horrores da enfermidade o da velhice.
Diante de nós se alevanta o hediondo fantasma gigantesco. Irresistível força
nos impele ao seu encontro e nos projeta em seus braços. Avançamos
incessantemente para ele, de modo lento mas seguro, por mais asqueroso que se
nos antolhe. Cada passo dado para a frente no-lo patenteia mais terrífico e
mais repugnante. Se ao menos nos fora concedido estacionar, colher flores na
romagem, escutar o canto dos pássaros, adormecer ao pó da fonte murmurante, à sombra
das árvores copadas... Mas qual! Cumpre caminhar, caminhar sempre, pois o
monstro inexorável não tolera demoras. Extrema penúria! Não discernir o momento
presente. Apreender apenas passado e futuro, — o passado destilando saudades
impotentes, o futuro sugerindo mentirosas esperanças. Reduz-se a isto, oh! Esfinge,
a vida do homem. Oprimirá analogamente os deuses esta incerteza perpétua?!...
Vertiginosa passagem, a existência. Ei-la à nossa espreita a decrepitude
ameaçadora... Como moteja do adolescente que sorri ufano à robustez do seus
músculos e às claridades de sua alma... Nauta errante a contemplar as plagas
quo recuam, cônscio de que em nenhuma plantará a sua tenda; ave que atravessa
com impetuoso voo os oceanos, onde em vão tentaria repousar o frágil corpo
quebrado pela excursão inútil; aragem acariciadora de vergéis floridos, a
passear o sopro fugaz por sobre os cálices perfumados, nos quais lhe é recusada
a restauradora pausa de um segundo... que deplorável fadário! Confessa, oh! Esfinge,
tu que deslindas a substância das coisas, e os arcanos da natureza, confessa
que nenhum ser sobrepuja em desgraças o homem, cuja condição merece a piedade
suprema...
A ESFINGE
Compreendo o teu lamento, viajante.
Pretendes dispor do tempo. Mas da
mesma maneira que o espaço e o repouso, o tempo não existe. Consola-te.
O tempo de que falas e que almejaras ter entre as mãos não passa de uma criação
do teu espírito enfermo. Alheias à Natureza essas fórmulas vazias. Ante a
Natureza se estendem o infinito do espaço e o infinito do tempo. Que lhe
importam átomos, como tu, a se estorcerem e se esgotarem em ridículas
concepções?!
O VIAJANTE
A que é que aludes, Esfinge?! Conheço eu
por ventura a Natureza?!... Vejo astros, mares, montanhas, selvas, animais cobrindo
a terra fecunda. Tudo isto desfila perante os meus olhos, arrebatado, como eu,
em voraginoso turbilhão. Sei isto simplesmente e saber isto equivale a nada
saber. Mas, — ensina-me, — todas estas aparências tendem a um objetivo? Para onde
vão? Desaparecerão, como eu? Inquiriste, respondi. Por meu turno te interrogo:
— que fim me está assinalado? Por que me fabricaram, sombra rasteira e
impotente, associando largas cobiças à minha fraqueza desoladora?! Por que me
haver outorgado uma inteligência que quase nada entende, e, todavia, entende assaz
para padecer do seu nada?! Posto que informe, descendes dos deuses e desfrutas
a imortalidade. Vamos; fala; não temas assustar-me. Que é o homem? Por que o puseram
no mundo? Para que abismo se encaminha?... Instrumento do poderio maléfico ou
do demônio generoso?... Excede do túmulo o seu destino? Ou foi condenado a
arrastar por curtos instantes a sua fragilidade ineficaz e estéril, denegando-se-lhe
aguardar o porvir a que sofregamente aspira a sua alma insofrida?!
Mas eis que se somem de súbito os olhos
buliçosos da Esfinge. Fere os ouvidos do viajante vago ruflar de asas que se
afasta. Não vislumbra, porém, imagem alguma. Inteira calma em derredor,
presentemente. Continua a ecoar no coração do precipício o estridor monótono da
torrente. Assoma a lua no céu, recamado de estrelas, alumiando a vereda do desfiladeiro
que nenhum monstro guardava. Tudo, pois, sonho o ilusão!...
O viajante soltou profundo suspiro. Conchegou
cuidadosamente a si as dobras da clâmide para se proteger contra o frio úmido
da noite, e, empunhando com força o bordão, prosseguiu o caminho do Argos.
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