— Entre , quem é.
— O Feroz não está solto?
— Viva, compadre! Suba!...
Um barbaças de óculos e cachenê de
lã ringiu o portão de ferro e galgou a passos trôpegos a escadinha que levava ao
alpendre de ipomeias. Lá o aguardava, de cara amável, um segundo barbaças, o coronel
Liberato, vestido duma farda consentânea com a sua belicosidade: chambre de palha
de seda, chinelo cara de gato e gorro de veludo negro com cercadura de ponto russo.
O que subia também era coronel. Coronel
Antônio Leão Carneiro Lobo de Souza Guerra, ou simplesmente Nhô Gué. Chegaram ambos
àquele alto posto militar pela razão estratégica de colherem para mais de dez mil
arrobas de café. Se em vez de dez colhessem apenas cinco mil, seriam majores ou
capitães. Este inteligentíssimo critério econômico do nosso militarismo é garantia
de paz muito mais segura do que a Liga das Nações.
— Que milagre foi esse? — disse o
de cima, abraçando o velho amigo.
— Quem é vivo sempre aparece e eu
ainda não morri, apesar desta sufocação que me escangalha o peito.
— Você é o peito, eu a enxaqueca.
Não valemos mais nada, compadre. Mas como vão todos? A comadre?
— Boa, todos bons, isto é, a Chiquinha...
Ui!
— A cutucada?
— Não, este ventinho encanado...
— Pois vamos entrar.
E os dois urumbevas penetraram na
sala de fora.
A sala de fora do coronel Liberato
merece relatório para que a posteridade se deleite em conhecer como era uma sala
de visitas de coronel brasileiro no século XX. Cadeiras austríacas, sofá e cadeiras
de balanço, tudo enfeitado com os crochezinhos das filhas. Mesinha central de cipó
com embrechados, obra de um “curioso” do lugar. Duas almofadas no sofá, uma tendo
um gato estufado, de lã, com olhos de vidro; outra, um papagaio de miçanga verde
— maravilhas feitas por certa afilhada prendadíssima. Dois aparadores com vasos
para flores artificiais, figurinhas de louça — “bibelotes”, como lá dizia o dono,
e várias curiosidades naturais — caramujos, conchas, um ninho de joão-de-barro,
um mico seco e duas famílias de içás vestidos. Nas paredes, espelho oval, dois retratos
grandes a carvão e fotografias em porta-cartões de talagarça, bordados pelas meninas.
Pendurado do lampião belga suspenso ao teto, grande abacaxi de papel de seda. Piano
de armário. Tapete com grande onça. Que mais? Iam-me esquecendo as duas “escarradeiras
de sobrado”, com caraças de leões... Viva o naturalismo!
Entrados que foram, os dois coronéis
refestelaram-se nas cadeiras de balanço, o do “ui!” com cautelas, gemidos e caretas
ao dobrar as juntas. Liberato puxou o cigarro de palha e, enquanto afrouxava o fumo
na palma da mão, reatou a conversa.
— Ahn! Com que então a dona Chiquinha...
— Compadre, entre nós não há segredos;
a doença dela são amores. Quer casar, ora aí tem.
— Não vejo mal nisso. Está na idade.
Só se...
— Mas adivinhe lá com quem a tolinha
emberrinchou de casar?
— ?
— Com o José de Paula!
— O filho da Nhá Vé?
— Esse mesmo. Um moço sem vintém de
seu, gente do Chicão de Paula...
Sair do nicho de filha única, onde
vive como uma Nossa Senhorinha, para ligar-se a um lorpa de marido, ser criada,
escrava dele! Se pudéssemos, nós que temos experiência da vida, abrir os olhos dessas
mariposinhas tontas... Mas é inútil. Encasqueta-se-lhes na cabeça que o amor, o
amoor, o amooor é tudo na vida, e adeus. O que nos vale é que o rapaz é pobre mas
direitinho — quanto ao moral.
Liberato interveio com cara purgativa.
— Homem, não sei. Não é por falar,
mas não me cheira bem aquele sujeitinho. Você o acha moralizado. Será. Mas a família
dele é droga e a prudência manda atentar não só nas qualidades do galho como também
nas do tronco. Olhe o que sucedeu outro dia com o primo dele, o Chiquinho...
— Não soube de nada, compadre. Que
foi?
— Você anda no mundo da lua, homem!
Refiro-me ao escândalo da Recreativa.
À palavra “escândalo” Nhô Gué esqueceu
o reumatismo e arrastou a cadeira para mais perto.
— Escândalo?
O coronel Liberato, gozoso de contar
uma novidade, limpou o pigarro e disse:
— Foi no último domingo, na festa
anual da Recreativa. Discursos, recitativos e uma peça — aquela endrômina de sempre.
A sociedade mandou convite a toda gente, aos jornais, aos grêmios e dentre estes
à Camélia Branca, da qual é secretário
o Chiquinho de Paula, primo lá do teu. Por sinal que para a Camélia foi um camarote, o 7, justamente
aquele donde assistimos ao Poder do ouro,
lembra-se?
— Se me lembro! Pois uma representação
daquela é lá de esquecer? Montepin! e inda mais pelo Furtado Coelho! Noitão! Hoje
é que não há mais disso. São umas comediazinhas indecentes, e cinemas, e drogas.
— A Lucinda Simões, hein? Mulherão!
Este “mulherão” foi dito com um arregalar
de olho em que toda a concupiscência retrospectiva se espojava arreitada.
— Nem fale! — disse o outro num tom
de inexprimível saudade.
— Pois muito bem: o teatro encheu-se.
Estava lá o coronel Totó Fernandes com a família; a família do doutor Isidoro; o
major Gonçalves com a mulher — e por falar, como está acabada a dona Elisa!
— É verdade! Quem a viu e quem a vê!
A Elisinha do Rincão, como lhe chamávamos, menina sapeca, da pá-virada, semostradeira
até ali... Os anos, compadre, os anos...
— Só não vi lá a gente da oposição.
Isso, nenhum, nem o Zé Penetra, aquele caradura.
Riram ambos, gostosamente, à lembrança
da ausência dos adversários. (Esqueceu-me dizer que estes coronéis faziam parte
do diretório situacionista, colunas fortíssimas que eram da força governamental
no distrito.)
— Era ali entre nove e dez — continuou
Liberato —, quando, de repente, adivinhe, se for capaz, compadre, quem surge pelo
camarote número 7 adentro.
Nhô Gué aparvalhou a cara com ar de
quem não é capaz.
— A “Cruz de Ouro”! — concluiu o Liberato,
de pé, chupando uma, duas, três baforadas do cigarro apagado, num triunfo.
Nhô Gué pasmou.
— Não me diga!...
— Pois é o que digo: a “Cruz de Ouro”.
— O rebuliço foi grande. Toda gente
se pôs a murmurar, olhando uns para os outros. A família do Totó quis retirar-se.
A mulher do Gonçalves virou bicha, abanava-se com frenesi, indignada com a pouca-vergonha.
O doutor Isidoro, presidente da Recreativa, que no palco já se preparava para deitar
o verbo, espia pelo buraco do pano, percebe o negócio, fica possesso e berra lá
dentro, de ouvir-se cá na plateia, que processava, que partia a cara, que mais isto
e mais aquilo — um fim do mundo! Houve pedidos de informação à bilheteria. Era preciso
desagravar a moralidade pública ofendida com a execrável presença da “coisa à toa”
em festa puramente familiar. Afinal a polícia interveio. O delegado foi com a descarada
e com muito bons modos fê-la sair. Só então, onze horas, começou o espetáculo. No
primeiro intervalo, porém, soube-se tudo: o Chiquinho de Paula, secretário da Camélia, recebera o convite para a festa,
mas em vez de organizar uma comissão que dignamente representasse o grêmio, pega
do camarote e o dá à “jereba”, de quem é...
Aqui o coronel Liberato, para remate
da frase, fez uma cara de supremo nojo:
—... o queridinho!
Voltando em seguida à cara anterior,
disse, grave e pundonorosamente, bamboleando a cabeça:
— Veja você que refinadíssimo tranca!
E concluiu com desalentada severidade:
— E é com o primo de semelhante crápula
que dona Chiquinha quer casar-se!
Na noite desse dia, altas horas, Liberato
deixou em casa a enxaqueca e foi sorrateiramente bater à porta da “Cruz de Ouro”.
Apareceu a criada. Confabularam baixinho.
— Não pode ser — disse a Libéria —,
está cá seu coronel Nhô Gué. Liberato fez uma careta.
— E amanhã? — perguntou.
— Amanhã é a vez do doutor Isidoro.
— E depois de amanhã?
— Quarta-feira? Deixe ver — fez cálculos
nos dedos e disse: — Quarta-feira é o dia de seu Gonçalves.
— E quinta?
— Pois não sabe que as quintas são
de seu Totó?
Liberato não desanimou.
— E domingo?
A Libéria despejou uma gargalhada
sonorosa.
— Os “home”! Pois então sinhazinha
não há de ter um descansinho na “somana”?
E fechou-lhe a porta na cara.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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