Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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— Sua ama está em casa rapariga?
— Está, sim, senhor. Tenha a bondade de
dizer quem é.
— Diga-lhe que é a pessoa que ela espera
para jantar.
— Ah! Pode subir... Minha ama vem já.
Entrei e reconheci a saleta, onde eu
dantes fora recebido tantas vezes pela viuvinha do general.
Quanta recordação! Vira-a uma noite no
Club de Regatas; apresentou-ma um jornalista então em moda; dançamos e conversamos muito. Ao despedir-nos, ela, com
um sorriso prometedor, disse-me que costumava receber às terças-feiras os
amigos em sua casa e que eu lhe aparecesse.
Fui, e um mês depois éramos mais do que amigos,
éramos amantes.
Adorável criatura! simples, inteligente
e meiga. No entanto, o meu amor por ela fora sempre um tanto frouxo e
preguiçoso. Aceitava e desfrutava a sua ternura como quem aceita um obséquio de
cortesia. Teria eu porventura o direito a recusá-la?...
Mas, assim gomo nasceram, acabaram os
nossos amores; uma ocasião cheguei tarde demais à entrevista; de outra vez lá
não fui; depois esperei-a e ela não se apresentou; até que um dia, quando dei
por mim, reparei que já não era seu amante.
Seis meses já lá seriam depois disto, e
eis que uma bela manhã, ao levantar-me da cama, entregaram-me uma carta.
— Era dela.
“Meu amigo.
Sei que conserva as minhas cartas e
peço-lhe que mas restitua. Venha jantar comigo, mas não se apresente sem elas.
E um caso sério, acredite.
São vinte. Não me falte e conte com a
estima de quem espera merecer-lhe este último obséquio.
Afianço que será o último. — Sua amiga, Laura.
Para que diabo quereria ela as suas
cartas?...
Teria receio de que as mostrasse a
alguém?... Impossível!
Principiavam-me estas considerações, quando
se rasgou a cortina da saleta e a viuvinha do general surgiu defronte de mim.
— Com efeito! disse ela. Só assim o
tornaria a ter em minha casa! Bons olhos o vejam!
Beijei-lhe a mão.
— Trouxe?... perguntou.
— Suas cartas? Pois não! Bem sabe que a mim
as suas ordens são sagradas...
— Ainda bem. Sente-se.
Sentamo-nos ao lado um do outro. Ela rescindia
uma combinação agradável de kananga do Japão e sabonete inglês; tinha um
vestido de linho enfeitado de rendas; e na frescura aveludada do seu colo
destacava-se um medalhão de ônix.
— Então; que fantasia foi essa?...
Interroguei, depois de um silêncio em
que nos contemplamos com o mesmo sorriso.
E no íntimo já estava gostando de haver
lá ido. Achava-a mais galante; quase que me parecia mais moça e mais bonita.
— Que fantasia?...
— A de exigir as suas cartas.
Ela fez do seu meio sorriso um sorriso
inteiro.
— Tinha receio de que alguém as visse...
perguntei, tomando-lhe as mãos entre as
minhas.
— Não! Suponho-o incapaz de tal
baixeza...
— Então?...
— Mas para que deixá-las lá?... Está
tudo acabado entre nós...
E retirou a mão. Eu cheguei-me mais para
ela.
— Quem sabe?... disse.
Laura soltou uma risada.
— Você há de ser sempre o mesmo!... Não
se lembraria de mim se não recebesse o meu bilhete, e agora... Tipo!
— Não digas tal, que é uma injustiça!
— Espere! Tira a mão da cinta! Tenha juízo!
— Já não te mereço nada?...
— Deixe em paz o passado e tratemos do futuro.
Eu quero que você seja meu amigo...
Dizendo isto, erguera-se e fora abrir
uma janela que despejava sobre o jardim.
— Está então tudo acabado?... Tudo?
inqueri, erguendo-me também, e envolvendo-a no meu desejo, que ela fazia agora
reviver, maior do que nunca.
É que incontestavelmente o demônio da
viuvinha estava muito mais apetitosa. Nunca tivera aqueles ombros, aquele
sorriso tão sanguíneo e aqueles dentes tão brancos! Seus olhos ganharam muito
durante a minha ausência, estavam mais úmidos e misteriosos, quase brejeiros! o
seu cabelo parecia-me mais preto e mais lustroso; a sua pele mais pálida, com
uma cheirosa frescura de magnólia. Todos os seus movimentos adquiriram inesperada
sedução; o seu quadril havia enrijado de um modo surpreendente; o seu colo tomara
irresistíveis proeminências que meus olhos cobiçosos não se fartavam de beijar.
— Então, tudo acabado, hein?...
— Tudo!
— Tudo? tudo?...
— Absolutamente!
— Para sempre?
— Você assim o quis, meu amigo!
Queixe-se de si!
Ia lançar-lhe as mãos e fechá-la num
abraço; ela, porém desviou-se, ordenando-me comum gesto muito sério que me
contivesse, puxou duas cadeiras para junto da janela e pediu-me que a ouvisse
com toda a atenção.
— Sabe por que lhe exigi as minhas
cartas?...
— Por quê?
— Porque vou casar...
— Como? A senhora disse que ia casar?!
— Dentro de dois meses.
— Com quem, Laura?
E fiquei também eu muito sério.
— Com um negociante de madeiras.
— Um madeireiro?
Ela meneou afirmativamente a cabeça; eu
fiz um trejeito de bico com os lábios e pus-me a sacudir a perna.
— Está bom!
— Que quer você?... Uma senhora nas
minhas condições precisa casar!...
— Ora esta! Um madeireiro!
— Que me ama muito mais do que você me amou,
tanto assim que está disposto a fazer o que você nunca teve a coragem de
imaginar sequer! E juro-lhe, meu amigo, que saberei merecer a confiança de meu
marido! Serei em virtude o modelo das esposas!...
Olhei-a de certo modo.
— Não seja tolo! disse ela em resposta
ao meu olhar.
E fugiu lá para dentro, sem consentir
que eu a acompanhasse.
Só nos tornamos a ver meia hora depois,
já à mesa do jantar.
— E às cartas? reclamou ela.
Tirei o maço do bolso, desatei-lhe a
fitinha cor de rosa que o atava; contei as cartas, estavam todas as vinte metodicamente
numeradas, com as competentes datas em cima escritas em letra boa.
Mas não tive ânimo de entregá-las.
— Olhe! disse, trago-as noutro dia... Se
as restituir agora, que pretexto posso ter para voltar cá?...
— Hein? Como? Isso não é de
cavalheiro!...
— Não sei! Quem lhe mandou ficar mais sedutora
do que era?
— Está então disposto a não entregar as
minhas cartas?...
— E até a servir-me delas como arma de vingança!
Laura franziu a sobrancelha e mordeu os
beiços.
Tínhamos já cruzado o talher da
sobremesa e bebíamos, calados ambos, a nossa taça de champanhe.
O silêncio durou ainda bastante tempo. Ela
só o quebrou para perguntar, muito seca, se eu queria mais açúcar no café.
E continuamos mudos.
Afinal, acendi um charuto e arrastei
minha cadeira para junto da sua.
— É melhor ser minha amiga... segredei passando-lhe
o braço na cintura.
— Não desejo outra coisa, balbuciou ressentida
e magoada. Peço-lhe juntamente que me proteja como amigo, em vez de por
obstáculos ao meu futuro. Que diabo! eu preciso casar!...
— Eu lhe entrego as cartas... Descanse.
— Então dê-mas!
— Com a condição de prolongar a minha visita
até mais tarde...
— Mas...
— E fazermos um pouco de música ao piano
como dantes. Está dito?
— Jura que me entrega depois as
cartas?...
— Dou-lhe a minha palavra de honra.
— Pois então fique.
As onze e meia, Laura apresentou-me o
chapéu e a bengala.
Repeli-os e declarei positivamente que não
lhe entregaria as cartas, se ela não me concedesse por aquela noite, aquela
noite só, gozar ainda uma vez dos direitos que dantes o seu amor me conferia
tão solicitamente.
Ela a princípio não quis, mostrou-se
zangada; mas eu insisti, supliquei, jurei que seria a última vez, a última!
E não saí.
Pela manhã, depois do almoço, Laura
exigiu de novo as suas cartas.
Tirei o pacotinho da algibeira, abri-o,
contei dez.
— É a metade. Aí ficam!
— Como a metade?...
— Pois, Laura, você me acha tão tolo que
te entregasse logo todas as tuas cartas?... E depois, em troca do, que te
pediria que prologasses um outro jantar como o de ontem?...
— Isso é uma velhacada!
— Que seja!
— Estou quase não aceitando nenhuma!
— Daqui a urna semana ver-te-ei trazer
as outras dez. Está dito?
— Tratante!
Daí a uma semana, com efeito, lá ia eu,
com as dez cartinhas na algibeira, em caminho da casa de Laura. E nunca em
minha vida esperei com tanta ânsia a hora de uma entrevista de amor. Os dias
que a precederam afiguraram-se-me intermináveis e tristes. A viuvinha também se
mostrava ansiosa, quando menos por apanhar as suas cartas.
Mas, coitada! não recebeu as dez,
recebeu cinco.
Pois se a achei ainda mais arrebatadora
nesta segunda concessão que na primeira!...
E na seguinte semana recebeu apenas duas
cartas, e nas outras que se seguiram recebeu uma de cada vez.
Ah! mas também ninguém poderá imaginar a
minha aflição ao desfazer-me da última! um jogador não estaria mais comovido ao
jogar o derradeiro tento! Eu ia ficar completamente arruinado; ia ficar
perdido; ia ficar sem Laura, o que agora se me afigurava a maior desgraça deste
mundo!
Arrependi-me de lhe ter dado dez logo de
uma vez e cinco da outra. Que grande estúpido fora eu! Esbanjara o meu belo
capital, quando o podia ter feito render por muito tempo!...
Então o espectro do madeireiro surgiu-me
à fantasia, como eu o imaginava: bruto, vermelho, gordo e suarento. E Laura, ao
meu lado, no abandono tépido da sua alcova sorria triunfante, porque tinha
resgatado o único laço que a prendia a outro homem. Estava livre!
Rasguei a carta ao meio.
— Aqui tem, disse passando-lhe metade da
folha de papel. Ainda me fica direito a um almoço e metade de uma noite em sua
companhia... Peço-lhe que me deixe voltar...
Ela riu-se, e só então reparei que meus
olhos estavam cheios d'água.
— Queres que te passe de novo o
baralho?... perguntou-me enternecida, cingindo-se ao meu peito.
— Se quero!... Isso nem se pergunta!
— Mas agora é a minha vez de pôr a
condição...
— Qual é?
— Só tornaremos a jogá-lo depois de
casados, serve-te?
— E o madeireiro? Ele não tem cartas
tuas?
— Tranquiliza-te que, além de meu
marido, eu só amei e escrevi a um homem, que és tu!
— Pois aceito com todos os diabos! E,
como ainda tenho jus a um almoço, não preciso sair já!
Uma semana depois, Laura dizia-me à volta
da igreja:
— Mas, meu querido, como queres tu que
eu te mostre uma pessoa que não existe?...
— Como não existe?... Então o teu
ex-noivo, o célebre madeireiro, cujo retrato trazias no medalhão de ônix...
— Qual noivo! Aquela fotografia de um jardineiro
que tive há muitos anos e que morreu aqui em casa.
— Então tudo aquilo foi?...
— Foi o meio de arrastar-te para junto
de mim, tolo! e reconquistar o teu amor, que era tudo o que ambicionava nesta
vida!
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