Luís Delfino, o mais fecundo poeta brasileiro
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Tomás dos Santos era um português
nascido em Alcobaça, distrito de Leiria. Tinha gênio impulsivo e aventureiro,
capaz das maiores audácias sem que o temor do perigo lhe arrefecesse o ânimo
exaltado.
Órfão de pai muito cedo, algum tempo
depois sua mãe casou-se dando-lhe, assim, um padrasto com quem não simpatizou desde
os primeiros dias. Considerava-o, mesmo, como um intruso. Mas, forçado pela
menoridade, sem poder dispor de si mesmo, o rapazinho foi vivendo junto do novo
casal. Isso, contudo, não impediu que ele guardasse, em relação ao marido de
sua mãe, uma certa reserva. Mostrava-se silencioso e esse era um meio de
atestar a sua hostilidade.
O que decidiu, no entanto, Tomás dos
Santos a abandonar a casa aos dezoito anos foi o fato de ter, certo dia, o padrasto tentado agredir sua
mãe após violenta altercação por motivos íntimos. A cena passou-se na sala de
jantar na presença de Tomás. O amor filial, aliado à ojeriza que alimentava
pelo padrasto, despertou em Tomás aquele gênio impulsivo que a custo conseguira
dominar até então. E, segurando fortemente um garfo que estava sobre a mesa, na
ânsia incontida de proteger a fragilidade de sua mãe, atirou-o à guisa de
punhal contra o agressor. Com tanta força o fez e com tal perícia, que o cravou
fundo na porta, poucos centímetros acima da cabeça do padrasto.
Interpelado por sua progenitora por
que fizera aquilo, justificou-se como lhe ditou a consciência:
— Então havia eu de deixar que um
bruto batesse em minha mãe?
— Nada tens a ver com a minha vida.
Além de teres atentado contra a vida de meu marido, és uma criança e não entendes
dessas coisas.
Tomás dos Santos magoou-se com a
repreensão. E sentiu que estava sendo demais em casa.
Criança ainda, com o espírito de independência
em plena maturidade, embarcou para a China como ajudante em um cargueiro.
Iniciou a sua vida aventureira percorrendo mares e terras. Viajou muito, correu
atrás da vida procurando-a por toda a parte, inclusive no Indostão. Durante
algum tempo foi guardião de navio e mais tarde mudou-se para o Brasil onde
tomou conta de uma fazenda no Norte. Na época da Independência residia no Rio
Grande do Sul.
Cansado desse nomadismo que a vida lhe
impusera, Tomás dos Santos resolveu casar-se. No seu caminho surgiu uma mulher
que mexeu com a sua alma de lusitano errante. E Delfina não hesitou em ligar o
seu destino a esse homem que vinha de outras bandas, calejado pelas agruras do
mundo. Construíram um lar na cidade de Desterro (hoje Florianópolis), numa casinha
humilde da Rua Augusta, atualmente João Pinto. Pouco depois um pimpolho veio
encher de sorrisos a vida pacata e tranquila do casal. Era o dia 25 de agosto de
1834. Nascera Luís Delfino, aquele que mais tarde seria o grande poeta, o maior
lírico do Brasil e autor de 3.000 belíssimos sonetos.
A princípio franzino e doente, o garoto
vingou sob o desvelo materno. A sua vida de criança, pelo que pude apurar, nada
tem de extraordinário. Igual a de todas as crianças de seu tempo, sem desfrutar
de muitos recursos pecuniários, Luís cresceu sob os olhares austeros do pai e a
branda solicitude de dona Delfina.
Entrou para o colégio dos jesuítas
onde tirou o curso de humanidades. Aos dezessete anos já sentia os primeiros
influxos da poesia a borbulhar-se dentro d’alma e que mais tarde, num crescendo
vertiginoso, iriam explodir em jatos ferventes com a impetuosidade de um “gêiser”.
Aliás, por informação direta de parente seu, soube que Luís compôs a sua
primeira poesia aos oito anos. Não tive, no entanto a fortuna de a ler. Creio
que se perdeu.
Acanhado ao extremo, com um buço a
despontar sob as narinas largas e sensuais, o pescoço metido dentro de um
colarinho alto e uma gravata de borboleta, Luís Delfino aportou ao Rio em 1851
para estudar medicina.
Como acadêmico fez um curso brilhante
e como poeta salientou-se entre os colegas. Temperamento talvez um tanto
recalcado por influência de sua formação jesuítica e nos ardores da mocidade, Luís
fazia versos de sabor bocagiano então em voga entre a juventude acadêmica. Não
os publicou, porém. Estão ainda hoje trancados em um cofre em casa de seu
filho, o Sr. Tomás Delfino, que com tanto carinho vem divulgando a sua obra.
O feitio moral de seu pai ele traçou
com mestria e delicadeza num célebre soneto — Ubis natus sum:
....................................................................
Meu pai foi sempre a honra em forma humana,
Tinha a virtude máscula e romana
Não era austero só, era feroz.
Meu pai foi sempre a honra em forma humana,
Tinha a virtude máscula e romana
Não era austero só, era feroz.
Trabalhava incessante,
noite e dia.
Como um leão seu antro defendia,
E era uma pomba para todos nós...
Como um leão seu antro defendia,
E era uma pomba para todos nós...
Delfino não escolhia momentos nem
precisava de excitantes para poetar. As musas assaltavam-no, mesmo, durante o
trabalho clínico, no seu consultório. E ele escrevia sonetos no bloco de receituário,
às vezes, com o cliente ali perto, que o julgava formulando alguma droga para
seus males... Outras vezes escrevia versos nas costas dos envelopes e das
cartas que recebia. E em versos passava repreensão nos filhos. A maioria dessas
produções, feita assim “sobre a perna”, perdeu-se de mistura com papéis inúteis
no seu consultório. Perdas lastimáveis essas que poderiam nos contar muita coisa,
num estudo mais aprofundado da personalidade do vate.
Poeta de opulenta o perene inspiração,
Luís Delfino na palavra de Leôncio Correa, “lembra as águas escachoantes dos
grandes rios que, fertilizando terras, anunciam fartura.”
Embora com uma indiscutível predestinação
poética, Luís Delfino não era um apegado à poesia, desses que vivem alinhavando
versos dia e noite. Pelo contrário. Só poetava quando era assaltado pela inspiração
que o envolvia todo, tolhia-lhe os movimentos num emaranhado de fios de ouro,
numa rede tecida de brumas e auroras. Só então ele sentia aquela necessidade
interior e imperiosa de fazer versos, para se livrar dessa peia que lhe anulava
a vontade e lhe desviava o espírito de outros objetivos.
Durante muito tempo, num período de
mais de vinte anos que se estende de 1856 a 1880, Delfino foi uma figura
apagada devido às múltiplas preocupações e os encargos que a medicina lhe impunha.
Médico de grande projeção, ele atendia às vezes, cerca de oitenta clientes por
dia. A medicina era o seu sacerdócio. Tanto que jamais se preocupou com escolas
literárias e afastou-se o quanto pôde, das “rodas” dos maiores intelectuais da
época.
Convidado por Machado de Assis para
fazer parte da Academia Brasileira de Letras que ora se fundava, não respondeu
ao apelo daquele que seria o maior romancista do Brasil. Passou à noite em
claro, à cabeceira de seu filho que lutava contra a morte. Perdeu o filho e não
entrou para a Academia.
Os seus versos desse tempo caracterizam-se
pelo semicondoreirismo e poucos eram os que mandava publicar. Em 1879 terminou
essa fase de obscurantismo. Daí em diante o público começou a tomar contato com
as joias que, do seu escrínio, o
poeta espalhava profusamente pela imprensa. Firmou assim a uma qualidade de
lirista notável. Já agora a sua poesia tinham toques de parnasianismo.
Dotado de uma memória invulgar, prova-o
o tato de ter reconstituído quase 500 sonetos, dos quais não possuía cópia, quando
o incêndio da Livraria Lammer destruiu-lhe todos os originais que iriam
constituir o volume Imortalidades. Depois disso não se atreveu a
publicar livro nenhum.
Poeta de riquíssimo vocabulário, às
vezes de linguagem tocada de orientalismo como se pode observar em Levantinas,
e de imaginação inexcedível, mostrou-se além de lirista um parnasiano quase perfeito.
Abrangendo em seus versos todas as fases da poesia, do romantismo ao
simbolismo, Luís Delfino firmou-se vate de grandes recursos. Essa
particularidade ao invés de lhe diminuir o valor, como querem alguns, tornam,
ao meu ver, o seu vulto inconfundível, atestando o poder e amplitude do seu
estro. Foi, por isso, um grande poeta. Mas, apesar de não se limitar a
determinadas correntes, a sua poesia é, sobretudo, romântica. Nela a emoção, muita
vez superando a eloquência, extravasa em abundância, quente e cheia de vida,
como o sangue de artéria seccionada.
Mesmo não se vinculando a ninguém, o
maravilhoso vate de Leito de Beijos, e Depois do Banho, versos críticos
onde há explosões de desejos latentes, nos traz à memória, em toda sua obra, os
expoentes máximos da poesia. Luís Delfino evoca a poesia universal nas suas
mais lídimas expressões: Homero, Hesíodo, o lírico Píndaro e o patriótico Tirteu;
Theodore Banville, o majestoso Leconte de Lisle, José Heredia, Victor de
Laprade; François Coppé, Paul Dérouléde e George Rodenbch. Tantos e tantos outros,
sem citar o recalcado Lamartine, Victor Hugo, Alfredo de Vigni, o autor amoroso
de Les Nuits, Alfred de Musset e o mestre do colorido Théophile Gauthler
em Emaux ct Carnées.
Apreciando a sua obra, Luís Delfino
nos aparece como um freudiano e a natureza psicossexual de uma emotividade
estética é flagrante em Íntimas e Apásias.
Num ligeiro estudo sobre o poeta, Américo
Valério mostra que a psiconeurose de Luís Delfino advém de uma repressão dos
instintos sexuais ou, seja, dos complexos inconscientes, como se pode observar
em vários dos seus versos onde se agrupam ideias sexualistas.
Em artigo na Gazeta de Notícias,
o Sr. Leôncio Correa afirma que “a prioridade do condoreirismo no Brasil pertence
de fato e de direito a Luís Delfino que, com Filha d’África, condenou em versos candentes e hiperbólicos a instituição
do cativeiro, da qual seria libelo eterno a lira messiânica de Castro Alves,
muitos anos antes da declaração da guerra do Paraguai.”
É mais um que vem disputar a Tobias
Barreto e Castro Alves os louros de introdutor do condoreirismo na poesia
brasileira. Agora são três... Todos acham que foi Castro Alves o inovador. Sílvio
Romero teima em dizer que a glória cabe ao
seu grande amigo Tobias Barreto. E agora o poeta Leôncio Correa vem
reivindicar a prioridade para Luís Delfino.
Manuel Bandeira, na sua Antologia
dos Poetas Brasileiros da Fase Parnasiana,
inseriu um soneto de Raimundo Correia publicado em A Vespa, onde se
descobre a influência de Luís Delfino sobre o célebre autor de Mal Secreto.
Esse soneto foi oferecido ao vate catarinense pelo próprio Raimundo. El-lo:
Abandonas às
vezes a alta crista
Do pujante Himalaia onde te entonas...
O estrondar do Niágara para, e as verdes zonas,
Que, de tão verdes, fazem mal à vista;
Do pujante Himalaia onde te entonas...
O estrondar do Niágara para, e as verdes zonas,
Que, de tão verdes, fazem mal à vista;
Os amplos céus e os largos Amazonas
Selvas rasgando em triunfal conquista,
E, por Anacreonte, Ésquilo artista
Do ar baixando, em que pairas, abandonas...
E em vez dos
grandes rios buscas, poeta,
O arroio, em cujas plácidas e amenas
Balsas soluça, à noite, o rouxinol;
O arroio, em cujas plácidas e amenas
Balsas soluça, à noite, o rouxinol;
Cujas margens
setembro, em flor marcheta;
E em cujas águas molha o cisne as penas,
E as onças usem beber, ao pôr do sol.
E em cujas águas molha o cisne as penas,
E as onças usem beber, ao pôr do sol.
Em Algas Musgos e Rosas
Negras, livros que a dedicação filial do ilustre Sr. Tomás Delfino deu
à publicidade, encontram-se nada menos
de 423 sonetos belíssimos que do um atestado da grande inspiração e da musa
maravilhosa do poeta.
Com a publicação do Arcos do
Triunfo — 1940, Luís Delfino, embora morto materialmente, alcança mais uma
estrondosa vitória na poesia nacional, reafirmando o conceito em que é tido de um
dos maiores poetas, senão o
maior dos que nasceram em terra brasileira.
Brevemente sairá o volume Imortalidades
contendo aqueles quinhentos sonetos que foram destruídos pelo fogo, mas que a
memória prodigiosa do autor reconstruiu. E ainda: O Cristo e a Adúltera,
Os Mais Belos Sonetos, Várias (traduções e críticas literária) e Vida
Política, tudo coligido pelo senhor Tomás Delfino no afã de divulgar o
espólio espiritual do autor de Solemnia Verba.
A obra de Luís Delfino, muito mais
vasta do que se julga, abrange ainda mais vinte volumes de versos que
serão publicados paulatinamente, segundo a mesma norma dos outros.
Delfino é, com justa razão, o mais fecundo
poeta brasileiro. Como sonetista a sua produção
ultrapassa a três mil! E todos eles são joias riquíssimas, verdadeiras obras
primas da nossa literatura.
Não sei o que poderia dizer mais desse
privilegiado das Musas. E, como fecho desse artigo, transcrevo um soneto inédito
— O Monstro — que nos foi gentilmente cedido pelo filho do poeta:
O rosicler da aurora peregrina,
Manhã sem nuvens, pálida e serena,
Ar puro, veiga de boninas plena,
E, entre elas tu, a mais gentil bonina;
Tu, que és a branca aparição divina,
E essas iguais a ti, querida Helena,
São as que põem um monstro estranho tem cena,
Que começa em prazer e em dor termina.
Manhã sem nuvens, pálida e serena,
Ar puro, veiga de boninas plena,
E, entre elas tu, a mais gentil bonina;
Tu, que és a branca aparição divina,
E essas iguais a ti, querida Helena,
São as que põem um monstro estranho tem cena,
Que começa em prazer e em dor termina.
E esse é leva,
é sutil, é transparente,
Vem, arrasta-se, sobe, e de repente
Entrou em nós, com ele entrando o (horror;
E em nós vive e se nutre dia a dia,
Com pedaços de carne e de alegria...
Não conheces o monstro? o monstro é o amor...
Vem, arrasta-se, sobe, e de repente
Entrou em nós, com ele entrando o (horror;
E em nós vive e se nutre dia a dia,
Com pedaços de carne e de alegria...
Não conheces o monstro? o monstro é o amor...
Morreu em 1910 aos 75 anos de idade,
no Rio de Janeiro.
Ele é o lapidário insuperável de “Jesus
ao colo de Madalena”, e o maior poeta do lirismo brasileiro. Cadáver de
Virgem e As Três Irmãs, aí estão para atestar-lhe o valor e
o talento. Grande poeta esse Luís Delfino, cujo estro prolífico, na plenitude
das embreagens e do delírio, em
meio as vertiginosas metáforas,
atinge o sublime e cria ritmos
estranhos, rimas de sonoridade cristalina a se difundirem em nosso espírito,
como ondulações de mágicas orquestrações, a nos parecerem catadupas de luz!
Revista
"Vamos Ler!",
18 de agosto de 1943.
18 de agosto de 1943.
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