Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Havia nada menos de trinta e cinco anos
que eu deixara minha cidade natal quando lá tornei pela primeira vez.
Trinta e cinco anos! Quantas voltas não
dera o mundo durante essa larga ausência! De lá saíra levando por única bagagem
— pobre órfão desamparado! —um leve saco cheio de ilusões, e voltava agora triunfante,
de novo sozinho é verdade, mas com o meu saco cheio de ouro até à boca.
Como é de calcular, tão brilhante foi a
volta quão mesquinha e triste tinha sido a partida; receberam-me com música,
vivas e foguetes, numa estrondosa manifestação de entusiasmo; e desde logo por diante
começaram a ferver em volta do meu nome ou do meu título os melhores e mais
carinhosos adjetivos, como em volta de mim ferveram as festas, os bailes e os
regalos.
Tomaram-me por tal modo que me não deixaram
tempo sequer para lembrar-me da única pessoa talvez que tivesse tido uma lágrima
sincera quando de lá parti desamparado e pobre.
Foi essa gentil pessoa a dona dos meus
primeiros amores. Um romancete dos dezoito anos. — Ah! como nesse tempo meu
coração era puro! — Vi-a uma vez numa festa de arraial e logo ficamos
namorados. Chamava-se Alice. Consegui relacionar-me com a família dela; depois
tivemos entrevistas ao fundo do quintal de sua casa, debaixo de um caramanchão
de jasmins. Fiz-lhe trêmulo, com as suas pequeninas mãos entre as minhas, a
confissão do meu amor; ela abaixou os olhos enrubescendo e, toda confusa, toda
medrosa, jurou, balbuciando como num sonho, que só a mim queria por toda a vida
e só a mim aceitaria por esposo.
E parti, no entanto, para o Rio de
Janeiro sem ao menos lhe dizer adeus, porque nessa ocasião estava Alice fora da
cidade. Mas, por muitas vezes, nos meus primeiros desenganos e na febre das minhas
lutas pela vida e principalmente depois na ressaca das minhas vitórias sem
mérito, a sua singela imagem, graciosa e casta, vinha alegrar a sombria aridez
dos castelos da minha ambição com a brancura das suas asas, como alva pomba vai
às vezes pousar na enegrecida torre de uma velha igreja abandonada e vazia.
Amigo desmemoriado e ingrato que és tu,
meu pobre coração! só três meses depois da minha estada na província — três meses!
te demoraste de Alice! E achaste-la de novo, perjuro! achaste-la, de memória,
na amargura da tua velha saudade, como no fundo de um venturoso sonho extinto! achaste-la, a fitar-me ainda do passado, com
os seus grandes olhos inocentes e amorosos. Achaste-la, sim, que meus lábios
ainda sentiram a doce impressão da inocente boca de donzela que os beijou
noutro tempo! Achaste-la, que em minha alma cansada respirou ainda o delicado
aroma que eu nela adivinhava dantes, como se adivinha no botão de rosa o
perfume que há de ter a flor desabrochando.
Ah! muito e muito me impressionaram
semelhantes recordações! impressionaram-me tanto que, quando depois me achava
em sociedade, instintivamente iam sempre meus olhos procurar no grupo das damas
alguma que me desse ideia da formosa criatura por quem meu coração gemeu a
primeira nota de amor. Mas qual! estavam todas bem longe de lembrar sequer aquela
graça meiga e despretensiosa, aquele doce agrado, humilde, quase infantil, que
em Alice me cativaram. Em nenhum daqueles olhos de mulher que agora me cobiçavam,
em nenhum daqueles sorrisos que nas salas me seguiam atados numa esperança de casamento
rico, encontrava eu o mais ligeiro vislumbre do amor passado, daquele amor que
eu vira outrora nos olhos dela, tão natural e sincero!
Mas uma noite, no palácio do presidente,
por ocasião de um baile que me era oferecido, ruminava a minha incoercível
saudade ao fundo de uma janela, quando notei que viera colocar-se ao meu lado
uma senhora gorda, idosa e respeitável. Aprumei-me logo, vergando-me
galantemente, de claque em punho, e, antes de achar tempo para dizer qualquer
banalidade de cortesia, reparei que ela me fitava com estranha insistência.
Tive um sobressalto! O coração bateu-me
com mais força. Entre nós dois cavou-se um profundo silêncio, frio e
desconsolado como a velhice.
Encaramo-nos ainda um instante, sem dar palavra;
depois, voltando pouco a pouco do meu abalo, senti ir acordando a minha memória
defronte daquela triste e cansada fisionomia, que ali me fitava obstinadamente,
como se por detrás dela uma alma oculta me estivesse espiando do passado.
E reunindo, como depois de um naufrágio,
os miseráveis destroços de uma querida formosura que já não existia senão na
memória do meu coração e na poesia da minha saudade, balbuciei com os lábios
trêmulos e os olhos úmidos:
— Alice!
Ela sorriu tristemente e conservou-se
muda. No fim de algum tempo suspirou e disse-me que estava a espera de ver se
eu ainda a reconheceria.
Aproximamo-nos então um do outro e
conversamos. Contou-me que já tinha netos. Enviuvara com seis filhos e sofrera
muito desde o primeiro parto.
Em seguida vieram as recordações, e tudo
lembrado por ela, com uma voz em que faltavam dentes e uma comoção que lhe
fazia os olhos menores e mais empapuçados.
E eu, enquanto a ouvia, examinava-a
disfarçadamente, procurando descobrir e colher uma lembrança da encantadora
companheira dos meus primeiros sonhos por entre aqueles fúnebres restos
insepultos.
Que terrível desilusão, meu Deus!
Oh! por que aquela desumana criatura
consentiu que eu a visse assim, indecorosamente descomposta de beleza? Por que
aquela insensata não fugiu para dentro do mundo, não se escondeu na terra,
antes que a senilidade lhe viesse daquele modo ultrajar tão miseravelmente o
corpo que eu até esse instante divinizava na minha saudade?
Ela, coitada! como se percebera o meu íntimo
juízo, fez-me notar, jovialmente, que também eu pelo meu lado estava bem longe
de lembrar o que fui. E de novo entristecida, malgrado o esforço que fazia para
alegrar o rosto, recordou-me, com um inquietante sorriso, os meus belos cabelos
de moço, quando eu os tinha negros, abundantes e anelados; e referiu-se,
meneando a cabeça desconsoladamente, à extinta alvura dos meus dentes e à rosada
frescura primitiva de meus lábios, outrora tão bonitos e tão senhores dos seus
últimos beijos de criança e dos seus primeiros beijos de mulher. E, fitando
meus olhos, parecia procurar neles uns olhos que não eram os meus, mas ia com
os dela entrando por eles familiarmente, para vir cá dentro, de mim buscar os
outros, os seus íntimos, os seus alegres companheiros de mocidade, que deviam
lá estar ainda nesse passado feliz que cada um de pós carinhosamente continuava
a guardar no fundo d'alma.
Acordei-a desse devaneio com uma facécia
desenxabida, falando do meu bigode branco e da minha calva.
Rimo-nos ambos e continuei a rir durante
o resto da nossa conversa. Mas, enquanto eu ria e gracejava, ia-me entrando
traiçoeiramente no coração um hóspede sombrio, uma sinistra amargura, que
principiava a instalar-se nele, varrendo para fora os últimos farrapos de ilusão
que o intruso ainda encontraria lá dentro, esquecidos pelo chão e pelas paredes
frias.
Não pude demorar-me ali. Dei-me por
indisposto e retirei-me em meio da festa, sem levar na deserção outro
companheiro além de um charuto acendido no momento de tomar o carro.
Ao entrar em casa dispensei o criado,
recolhi-me sozinho aos meus aposentos e, ao passar pelo espelho do
guarda-roupa, mirei-me longa e silenciosamente, como se só então e de surpresa
me visse tão velho e acabrunhado, estranhando por tal modo a minha própria
imagem como se naquele instante desse cara a cara com um desconhecido, que eu
não sabia donde vinha, nem o que de mim queria, para estar ali a fixar-me com tamanha
impertinência.
Maldita sombra importuna! Maldito
despojo de mim mesmo!
Traço por traço examinei-me da cabeça
aos pés; todo eu, como Alice, tinha já desaparecido na melhor parte, e os meus
restos eram cabelos sem cor, olhos sem luz, boca sem beijos e alma sem dono.
Como eu estava retardado neste mundo!
Despi-me. Não pude ler, nem pensar, nem fazer
nada. Pus-me a fumar, estirado no divã, perdido numa infinidade de tolices
aborrecidas. De vez em quando observava com tédio as minhas mãos engelhadas, o
meu ventre disforme, as minhas pernas trôpegas e os meus pés deformados.
Oh! definitivamente esta vida era uma mistificação
e não valia a pena viver! isto é, trabalhar tanto, desejar tanto, e para quê?
para ir morrendo e apodrecendo a pouco e pouco, de momento a momento, até nos
estalar afinal a última fibra e rolar dentro da terra indiferente mais um pouco
de lama.
E senti um doloroso e vago desejo de não
continuar a existir, mas sem morrer; uma insaciável vontade de desertar do
presente para o passado extinto; volver-me de novo o que eu fora, desprotegido e
pobre, mas rico de inexperiência, com a minha mocidade inteira e inteiro o meu
tesouro de ilusões; e que eu pudesse ir pelo passado a dentro, correndo, até
chegar de novo aos dezoito anos, e atravessar então o muro do quintal daquela
Alice, que não morrera e que já vivia, e catar-lhe aos pés, debaixo do cheiroso
caramanchão de jasmins, e beijar-lhe os dedos brancos e mimosos, e dizer-lhe
com a minha boca de moço mil coisas de amor e ouvir em resposta: “Eu te amo! Eu
te amo!” e poder acreditar nestas
palavras sem a mais ligeira sombra de desconfiança, como outrora, quando elas saíam
quentes do coração de Alice para estalarem à superfície da boca num beijo
contra meus lábios.
E depois, abraçado com ela, eternamente
jovens como os amantes que os poetas celebram nos seus poemas de amor, queria
fugir para um outro mundo bem longe deste, ideal e puro, onde não houvesse
dinheiro nem honrarias, e onde se não fosse apodrecendo em vida, aos poucos,
como nesta miserável terra em que nos arrastamos sem asas.
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