Iniciação na dor
Pesquisa, transcrição a adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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CAPÍTULO
1
Nascera de sete meses o Carlinhos. Incômodos
graves sofridos pela mãe durante a gestação faziam acreditar que a criança não
viria ao mundo com vida. Sábios doutores consultados o haviam predito. Nenhuma
esperança restava. Aguardava- se parto perigoso ou difícil.
Imagine-se a alegria dos progenitores
quando, após inesperado, rápido o felicíssimo sucesso, verificou-se que o pequerrucho
respirava, em perfeitas condições de viabilidade!
E saíra um primorzinho... Pouco mais de
palmo, feições acentuadas, traços finamente corretos, um verdadeiro mimo, deliciosa
miniatura, sem as tumescências e rubores que de ordinário desfiguram os
recém-nascidos.
— Genuína obra de arte, — comentavam
todos, mirando-o embevecidos.
— Bem se vê que veio de Paris, —
galhofeava o pai, aludindo ao fato de datar realmente da capital francesa, onde
a família permanecera dois anos, a procriação.
Mas, que melindroso alento, que frágil
vitalidade a do Carlinhos! Apagá-la-ia o mais tênue sopro. Mister se faziam cuidados
incessantes, meticulosas precauções para entreter a flama sutil, prestes a sucumbir!
Três dias consecutivos conservou-se frio
e quase imóvel o mísero corpinho.
Tão diminuto que lhe não serviram, por
demasiado longas, as roupas do enxoval. Envolveram-no em pastas de algodão. Para
o aquecer, parentas carinhosas metiam-no no seio. Gota a gota, delicadamente,
pingava-se-lhe o leite nos lábios. Microscópico o seu vulto no berço, — como
que visto pelo reverso de um binóculo.
Em breve, porém, adquiriu forças.
Ambicionava viver aquele escorço de gente! Entrou a receber avidamente a
alimentação. Se tardavam a trazer-lha, protestava com enérgicos resmungos.
Logo que se mostrou apto para mamar, ocupou-se
toda a família em lhe procurar ama idônea, pois persistiam os achaques da mãe.
Depois de várias experiências malogradas,
admitiu-se robusta rapariga, encomendada de Minas, — negra retinta, alta, nova,
— de cujos brônzeos seios porejava alvo e espesso líquido, apetitosamente
sadio.
O Carlinhos grudou a boquinha às providas
pomas. Só à força o desprendiam. E pôs-se a engordar e a crescer de miraculoso
feitio.
Ao cabo de um mês, não parecia o mesmo.
Dir-se-ia que se dilatava um bocadinho em cada vez que sugava o nutriente
licor.
Mas a ama, desaclimada no Rio de janeiro,
caiu inopinadamente vítima da febre amarela. Secaram-se-lhe em poucas horas as secreções
mamárias. Foi preciso separá-la de seu
pequetito, designação que ela dava ao Carlinhos.
Sofreu este imensamente. Como que
retrocedeu ao primitivo estado, minguando com assustadora rapidez. Inspirava intenso
dó.
Tentou-se tudo para reparar o golpe:
leite de vaca, de cabra, condensado, mingaus, peptonas, — nada! A criança se extinguia.
O seu choro súplice cortava o coração.
— Outra ama e depressa, — prescreviam os
médicos.
Outra ama. Mas onde encontrá-la nas
condições requeridas?
Como se sabe, o serviço de amas de leite acha-se pessimamente organizado no Rio. Não se submetem à menor regulamentação policial ou higiênica, conforme o observado em todos os grandes centros populosos, as mulheres que a tal tarefa se dedicam.
Quem delas necessita vai às cegas, por
vagos anúncios, baldo de informações ou garantias. Raro se lhe depara de
momento alguma em boas circunstâncias. Exageradíssimos os salários pedidos.
São, no geral, sujeitas inábeis, mal-educadas, exigentes, débeis, frequentemente
com moléstias e vícios ocultos.
E exercem absoluta tirania nos lares
onde pisam, caprichosas e insolentes, despedindo-se de súbito, abandonando os pobrezinhos
que lhes foram confiados, sob fúteis pretextos, sem remorsos nem contemplação.
Um horror! Ai! das mães fluminenses a quem a natureza privou do sublime encargo
de criarem a prole.
Ei-lo, o pai do Carlinhos, guiado apenas
pelos aluga-se dos jornais, à caça de
quem lhe salvasse o filhinho. Manhãs e manhãs de peregrinações improfícuas... Visitou
imundos cortiços. Viu tuberculosas e sifilíticas repugnantes propondo-se ao
nobre mister. Dolorosa via-sacra! Nenhuma servia. E o Carlinhos depauperando-se
a cada minuto... Urgia descobrir-lhe uma
ama qualquer, custasse o que custasse, sob pena de matá-lo.
Afinal, sempre se obteve uma mulata, não
muito moça, mas de aspecto simpático, maneiras agradáveis, — aceitável, em suma,
provisoriamente ao menos, dada a pressão do caso.
O leite dela, examinado por um facultativo, foi
declarado assaz fraco. Com tratamento adequado havia de melhorar. Convinha, por
isso mesmo, ao menino quase moribundo.
A Marcolina (era esse o seu nome) entrou
imediatamente em funções.
O Carlinhos jazia inerte e exangue, as
extremidades gélidas, no colo da mãe desolada.
A nova ama tomou-o, e encostou-lhe à boca
lívida o bico do peito.
Ele descerrou surpreendido os olhos azuis,
embaciados de névoa letal.
Hesitou um segundo; e, como a Marcolina
espremesse o seio, decidiu-se a mamar, a princípio devagarinho, depois, a pouco
e pouco, sofregamente, gulosamente.
A família inteira assistia ansiosa ao espetáculo.
As maxilas do pequenino cessaram de mover-se. Supuseram-no adormecido de
fartura e quiseram colocá-lo no berço.
Esperneou então furioso, disparando meia
dúzia de valentes berros, como de há muito não soltava.
Perpassou pela casa um clarão de
alegria. Lágrimas de júbilo assomaram aos olhos dos circunstantes, alguns dos quais
bateram palmas.
O Carlinhos ressuscitava.
CAPÍTULO
2
Não era má rapariga a Marcolina, embora
apresentasse em subido grau a negligência e a volubilidade dos mestiços.
Tinha uma filha quase moça, empregada numa
fábrica de tecidos, e um filho de dez anos, para o qual foi forçoso arranjar colocação.
Morrera o terceiro, colaço do Carlinhos.
Supinamente nervosa, sofrendo até, de
quando em quando, ataques histéricos, a Marcolina revelava a sua baixa
educação, mal a contrariavam na menor coisa, ou quando ingeria qualquer licor
espirituoso.
Dava então para brigar, sendo penoso
contê-la.
Sem embargo, os patrões a aturavam
pacientemente, pois mostrava-se muito carinhosa com o menino, a quem o leite dela
aproveitava em extremo.
Tonificada por abundante e saudável
passadio, cercada de cuidados, a Marcolina engordara, em plena prosperidade física,
e o Carlinhos a acompanhava. As dimensões deste haviam quase triplicado.
Medrava de fazer gosto. Aos oito meses, entrou a engatinhar. Aos onze, sem incômodo
notável, surgiu-lhe o primeiro dente.
E a sua figurinha loira e rosada, nédia
como a dos arcanjos que se pintam aos pés da Virgem Santíssima, constituía, rolando sob os móveis à guisa de raro
animalzinho, o encanto, o júbilo, a ufania do lar.
Que infinitos beijos pregavam-lhe a cada
hora! Ninguém o avistava que não corresse a abraçá-lo, afagar-lhe os cabelos, suspendê-lo
no ar, dizendo-lhe coisas agradáveis e caridosas com adocicada voz.
O pequeno já ia compreendendo uma ou
outra palavra. A ama, essa, pronunciava frases que ele manifestamente entendia.
Constituía grande divertimento da
família, — reproduzido várias vezes ao dia, sempre com efeito hilariante igual,
— mandar a Marcolina chamá-lo de longe:
— Vem cá, meu filho... olha o mamá!
Ouvindo este convite, o Carlinhos
desfechava gostosa risada e partia celeremente, apoiado nas mãos, arrastando
uma das pernas, arrebitando impudicamente as polpudas regiões posteriores. Adoravelmente
cômico, na verdade.
Íntima solidariedade fisiológica unia a
ama ao amamentado. O modo de nutrição da primeira influía eficazmente sobre o
segundo. Se aquela adoecia, este patenteava logo análoga indisposição. A Marcolina
transmitia fielmente no leite ao Carlinhos todas as impressões de seu espírito:
— regozijo, abatimento, mau-humor.
E a Marcolina curtia a espaços amargos
desgostos.
Leviana e foliona a filha dela,
empregada na fábrica. Inquietadoras as suas disposições precoces para
perder-se.
Vivia a exigir dinheiro da mãe, azoinando-a
de intrigas, determinando contendas na estalagem onde morava.
Já se sabia: — em recebendo notícias desta,
passava a ama horas e horas amuada, recusando comer, chorando em muitas ocasiões.
Essas crises repercutiam na criança, que acusava de pronto sinais de
padecimento.
De uma feita, havendo obtido permissão
para visitar a prole, demorou-se tanto a Marcolina que, aflitíssima, a família do
Carlinhos supôs que ela não regressasse mais.
Durante a sua ausência, o menino levou a
soluçar o tempo todo, sem que nada o distraísse ou consolasse.
A mãe dele ponderava prudentemente:
— É preciso ir habituando este
sujeitinho a tomar alguma coisa além do leite, pois a ama pode faltar quando
menos se esperar. E seria agora grave perigo, porque não tardam as presas, a fase
mais melindrosa da dentição.
Mas, qual! Não havia meio de obrigar o
Carlinhos a variar o seu regime alimentício. Repugnavam-lhe os mais engenhosos
acepipes, para ele adrede elaborados. Só entreabria as intransigentes gengivas
perante o bico do peito da Marcolina.
A muito custo, sorvia, a longos intervalos, alguns golos d'água. E água era também a única palavra que balbuciava, a seu jeito.
— Auá...
auá proferia.
Todos achavam estupenda graça no
vocábulo dessa maneira articulado.
Forçavam o Carlinhos, por meio de mil
insinuações ardilosas, a solicitar frequentemente o líquido, no exclusivo
intuito de escutar a engraçada assonância emitida pela vozinha infantil.
Diante de visitas, sobretudo, exigiam
que repetisse amiúde: auá... auá...
Nem sempre ele a isso se prestava. Mas,
quando o fazia, que ares de triunfo! Acolhiam a coisa como irrecusável manifestação
de excepcionais habilidades.
CAPÍTULO
3
O Carlinhos completara um ano. Viçoso e
lindo, persistia na relutância a qualquer outra espécie nutritiva que não o leite
da Marcolina. Cada vez mais agarrado a esta. Abria em temível berreiro apenas ela
se afastava.
A família passava então a quadra calmosa
em aprazível cidade de Minas, distante do Rio de Janeiro.
Uma tarde a ama recebeu carta dos
filhos. Como de ordinário, tornou-se taciturna e agitada ao lê-la. Não quis
jantar. Levou a suspirar a noite inteira.
Pela manhã, participou resolutamente aos donos da casa que se retirava para o Rio e não mais tornaria. Tomaria o primeiro trem, daí a poucas horas.
— Como assim?! — retrucaram eles surpreendidos.
— Pois você abandona o Carlinhos?
— Que remédio... respondeu. Deus sabe
quanto sinto, mas sou obrigada a isso. Os meus filhos precisam de mim e me
chamam. Não posso deixar de ir...
— E o Carlinhos?!
— Está criado e forte. Os senhores dispõem
de recursos. Hão de arranjar as coisas muito bem. Os meus filhos, coitados, não
possuem senão a minha pessoa no mundo... Preciso estar ao lado deles. Tenham paciência.
— Mas isto não se faz... é uma crueldade
— Coloquem-se em meu lugar. Se um filho desgraçado dos senhores os chamasse para o socorrer, haveria pretexto que os prendesse? Iriam logo, sem hesitar, houvesse o que houvesse, como eu vou.
Percebia-se que a Marcolina padecia no
conflito entre o afeto pelos filhos verdadeiros e a responsabilidade por assim deixar
abruptamente o de adoção. Inabalável, porém, a sua deliberação de partir.
Promessas, súplicas, ameaças, argumentos insistentes de toda casta, — nada a
demoveu. Aprontou a viagem, a despeito dos desesperados esforços para a reter.
Meia hora antes do trem, tomou o
Carlinhos, que brincava, descuidoso da desgraça iminente, obrigando-o a esvaziar-lhe
os seios túmidos. O menino mamou copiosamente; e, enquanto sugava, lágrimas
silenciosas da ama, molhavam-lhe o cabelo e as faces.
Quando o viu saciado e adormecido, colocou-o
ligeiramente no berço, deu-lhe um beijo, e saiu a correr, mal se despedindo da
família indignada.
Pouco depois, a locomotiva a arrastava
vertiginosamente na direção da capital.
O Carlinhos dormia tranquilo. Que sucederia
quando despertasse?... Tão rápido e
inesperado ocorrera o caso que desorientara os pais e parentes da criança, não
se lhes antolhando providência alguma para obviar ao contratempo. Acreditavam,
até ao derradeiro instante, que a Marcolina se arrependeria.
Mas agora a desagradável realidade se
impunha. A frágil vítima não tardaria a acordar... Que desespero o do
pobrezinho não vendo a ama a seu lado, como costumava! E se adoecesse de
sentimento, — ele cujos primeiros meses haviam sido assinalados por custosas
disputas contra a morte! Como forçá-lo a comer? Não arruinaria o seu delicado
estômago tão brusca e radical mudança de sistema?
Seguramente não resistiria. Pelo menos
que angustiosos trances, durante algum tempo, para ele e os pais...
Consternados e aflitos, agruparam-se
todos de casa em torno do berço, vigiando o sono do abandonado.
Confabulava-se em voz baixa, combinando
planos para amortecer o golpe.
Cada qual sugeria um alvitre. Se o
dormente se movia, aproximavam-se solícitos, sustendo a respiração para lhe não
interromper o repouso.
Respirava-se atmosfera pesada de
infortúnio e apreensões.
E era uma chuva de invectivas contra a
Marcolina.
— Ingrata, desalmada, perversa... Havia de pagar murmuravam.
— Eu não dizia... eu não dizia...
exclamava, entre comovida e triunfante, certa matrona que sempre antipatizara com
a ama.
A mãe do Carlinhos acendera velas bentas
no oratório, fazendo uma promessa à milagrosa Nossa Senhora da Penha para que o
filhinho atravessasse incólume aquela conjuntura.
CAPÍTULO
4
Quando, depois de demorado descanso, o
Carlinhos abriu os olhos, de tal maneira o distraíram e amimaram que ele, a princípio,
não pareceu dar tento na ausência da ama.
No meio dos brinquedos com que o
aturdiam, choramingava a espaços, derramando olhares desconfiados em derredor. Mas
logo o chamavam e iludiam, conseguindo por astuciosos processos ilaquear-lhe a
atenção.
Ganharam-se assim duas horas, cheias de
sobressaltos e ansiedades.
Longo tempo havia que ele não mamava.
Devia sentir fome. Próxima estava a explosão.
De súbito, o menino atirou-se para traz,
inteiriçado, soltando gritos estrídulos.
Rompeu a tormenta. O Carlinhos
debatia-se possesso, estrebuchando, em alucinadas contorções. Difícil o segurá-lo
para não cair. Atordoavam a casa inteira os seus brados contínuos e agudíssimos,
reboando no frenesi supremo da desesperação.
Acorreram o pai, a mãe, os parentes, os criados,
que, debalde, em roda dele exortavam e suplicavam:
— Carlinhos... Carlinhos... seu Carlinhos... Sossega... olha isto...
olha aquilo... Quer ver o gato? Quer passear comigo?! Vem cá. Não chore... Que
feio!... Deseja Fulano?... Sicrano?!
E cantavam, assobiavam, pulavam,
dançavam, punham-se de cócoras, apresentando-lhe com momices as teteias de que ele
gostava.
Qual! A criança não se acalmava.
Recorreram à intimidação. O pai cominou
palmadas e teve de retirar-se irritado diante das revoltadas repulsas que a cruel
lembrança suscitou. Houve troca de palavras azedas e recriminações entre os
presentes.
Falou-se em velhas horrendas, tutus, bichos maus que devoram os
pequenos manhosos. Uma criada foi bater às escondidas na porta da entrada, a
pronunciar o nome do gritador, engrossando ameaçadoramente a voz.
Igual resultado, negativo em todas as
tentativas amansadoras.
A exasperação do Carlinhos atingiu o
auge no momento em que lhe achegaram aos lábios o bico de borracha de uma mamadeira.
Repeliu-o violentamente, elevando de
modo tão descomunal a intensidade dos bramidos que enrouqueceu de todo.
Mesmo assim não serenou. Do peito
arquejante, saía-lhe uma soada áspera, análoga ao estertor dos moribundos, que abalava
as fibras mais doridas da compaixão. Os circunstantes choravam.
Por fim, fatigadíssimo e exausto, o
coitado adormeceu. Sono, porém, agitado, — antes mórbida letargia, sacudida de estremeções
veementes e compridos soluços.
— Está passado o pior, — consolavam algumas pessoas. Acordando, a fome apertará e há de tomar leite. Mais um pouco de paciência e fica-se livre da infame Marcolina.
Ei-lo que desperta, pedindo auá. Oferecem-lhe imediatamente um copo.
Rejeita-o colérico e recomeça a gritar.
Mas presentemente às frementes vibrações
raivosas sucederam lamentações tristíssimas. O vigoroso protesto transformou-se
em imploração angustiosa e humilde. Lamúria em lugar de energia. Miserando
queixume de desanimado que renúncia a lutar.
Repetia baixinho: — auá... auá... Mostravam-lhe o líquido e ele o refusava
magoadamente.
— É auá...
explicavam. É auá, meu anjo...
Bebe...
E provavam para que ele se convencesse.
— Auá...
auá... continuava a clamar, cada vez mais pungitivamente, arredando a
cabeça.
Valeram-se de novo de jogos e micagens.
Trouxeram os objetos de sua predileção. Confiaram-lhe relógios, bibelôs preciosos,
livros de estampas, nos quais de comum lhe era proibido tocar, outorgando-lhe ilimitadas
concessões.
Mas, insensível, repisando a solicitação
de auá, numa melopeia confrangedora,
o martirzinho não cessava de carpir-se. Um suplício!
Achavam-lho febre.
— Convém mandar chamar um médico, — opinava
uma tia.
Recordaram-se de que residia na
vizinhança uma preta recentemente partejada. Acedeu esta em comparecer sem detença
logo que lhe expuseram o fato, mas a angústia do Carlinhos redobrou
avistando-lhe o seio luzidio.
Que fazer?!
O pranto da mãe já corria em proporções
equivalentes ao do filhinho.
O pai propunha soluções decisivas: —
agarrá-lo à força e despejar-lhe o leite às colheres pela goela. Impetrava, contudo,
adiamento ou fugia penalizado só a ideia merecia aprovação ou ensaiavam executá-la.
Anoitecera. O jantar esfriava na mesa
posta. Absorvidos pela aflição do Carlinhos, não se lembravam de comer.
Fúnebres as fisionomias; raras o desalentadas as falas.
Ao se acenderem as primeiras luzes, o
pequeno, sempre a interceder água, a sou modo, e acusando inalterável grau do
sofrimento, desprendeu-se do colo onde o agasalhavam e revelou desejos de
andar. Deixaram-no solto no assoalho. E foi uma cena tocantíssima.
Descalço, os cabelos loiros empastados
de lágrimas, a fina camisola dilacerada, as mãozinhas trêmulas, o Carlinhos,
com seu passo mal seguro, cambaleando, levando tombos constantes e não permitindo
que o ajudassem a levantar-se, pôs-se a percorrer o prédio todo, do salão à cozinha,
olhando debaixo das camas, pesquisando os cantos, exigindo que lhe
escancarassem gavetas, portas e armários.
E, num apelo desvairado, apostrofava:
— Auá...
auá... auá...
Compreendeu-se então o que ele intentava
significar. O seu vocabulário resumia-se naquela única expressão. Concretizava-se
nela a sua imensa dor. Auá era o
chamamento pela Marcolina fugitiva; era o leite dela que lhe haviam
desapiedadamente roubado. Ele agora procurava a ama por si próprio, esperançado
de a descobrir pessoalmente, já que os mais velhos, inflexíveis e desumanos,
não lha queriam trazer.
Verdadeiramente trágica a busca improfícua
do inocentinho, com a sua invocação lancinante, que pouco e pouco se foi debilitando
até mudar-se em murmúrio imperceptível e crudelíssimo.
Afinar, prostrou-se exânime junto à cadeira
de balanço, em que a Marcolina costumava acalentá-lo.
Introduziram-lhe entre as gengivas a
ponta da mamadeira. Vencido, inconsciente, os olhos fechados, ele submeteu-se
ao irremediável, e entrou a chupar, parando de momento a momento para expelir retardatários
soluços.
CAPÍTULO
5
No dia seguinte, após uma noite regular,
o Carlinhos abatido, mas consolado, aceitou sem esforço a mamadeira e estreou-se
mesmo, mais tarde, na ingestão de uma ligeira sopa.
Depressa esqueceu a ama, por quem
nenhuma saudade manifestou.
Estava subjugado. Recebera o batismo do
sofrimento; iniciara-se na dor.
Desenvolveu-se, cresceu sem maior incômodo.
Conta hoje três anos florescentes.
Que de angústias, surpresas, traições, perfídias,
abandonos não lhe estarão reservados na senda encetada pela maneira descrita?
Quantas mulheres ainda o farão padecer,
aliás por justificado motivo, como a Marcolina?!
Nesses transes inevitáveis reside a
essência da vida E oxalá, meu filho (pois o Carlinhos é meu filho como o leitor
decerto adivinhou pela comoção desordenada que palpita nestas confidências) —
oxalá, meu filho, sejam-te todas as provações vindouras semelhantes àquela
primeira.
Permita Deus que as experimentes no seio
de solícita família que tas minore, compartindo-as, e depressa se apaguem sem
deixar vestígios e consequências.
Pois algumas há (oh! nunca as conheças),
algumas há, meu filho, que jamais passam, envenenando para sempre de infinita amargura
os nossos míseros corações...
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