Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
O Primeiro Reinado
O Primeiro Reinado
I - A CONSTITUINTE E A REVOLUÇÃO DE 1824
1 - A grande tarefa é, agora, organizar a nação. Já não bastam para isso os impulsos que tinham agrupado, em torno do Príncipe entusiasta e ambicioso, todas as forças morais daquele grande momento: é preciso que a experiência, o tino, a capacidade de construção social e política, venham agora, salvar para a história, o que o patriotismo havia feito.
Sente-se logo que vai ser esse o trabalho mais
penoso. Os próprios homens que tinham feito a declaração da Independência estão
divididos; e cada grupo reclama o direito de orientar e dirigir toda a obra de
organização que é indispensável.
No meio das facções encontra-se D. Pedro, com todos
os seus vícios e as suas virtudes de herói fora do seu tempo, a acender em vez
de reprimir discórdias. E é preciso notar ainda que assim que viu a obra feita,
começou ele a desvanecer-se da sua fortuna.
O que aconteceu era, pois, muito natural: tanto os
prudentes e cautelosos, como os exaltados, começaram a desconfiar do Imperador.
José Bonifácio mesmo foi o último a desenganar-se: entre as duas correntes,
esquecera ele o maior perigo. Seguro do seu ascendente sobre o espírito do
soberano, cuidou só de conter os adversários. E, quando se apercebeu, já era
tarde: estava sem D. Pedro e sem partido.
2 - Não há dúvida: a convocação da Constituinte
vê-se agora que fora precipitada. Ainda se lutava em muitas províncias contra
as guarnições portuguesas, e já se cuidava de organizar uma nação cuja soberania
estava assim sujeita a contestações e protestos. Razão tinha, pois, José
Bonifácio, quando procurou diferir esse ato o mais que pôde.
As consequências da precipitação vamos ter agora.
No dia 3 de maio (1823), instalava-se a assembleia
com toda solenidade. D. Pedro ali se apresentou lendo a sua Fala. Antes não a
tivesse lido. Dir-se-ia que esse
discurso era feito muito de propósito para incompatibilizá-lo de uma vez com
aquela câmara. Basta saber-se que por mais de uma vez o Imperador prevenia os
representantes do povo de que "só no caso de merecer-lhe aprovação é que
S. M. aceitará a Constituição que se
votar".
Nada mais é preciso para explicar os sucessos que
vêm. Poucos acreditam que D. Pedro queira mesmo regime constitucional; e
começam as suspeitas de que a própria Independência está em perigo, quando se
viu o Imperador entregando-se ostentosamente ao partido português.
Enquanto D. Pedro parece intentado em levar os seus
planos misteriosos, vai a Assembleia dando os seus alarmas, intervindo em todos
os negócios, e convertendo-se quase em verdadeira Convenção.
Para acentuar a natureza daquele transe, José
Bonifácio, acabrunhado, retira-se do ministério, e o mesmo faz o irmão, Martins
Francisco. E vão ambos, com o outro irmão, Antônio Carlos, para a Constituinte.
Estava-se por meados de julho. Tudo prenuncia que se
aproxima o lance final de semelhante crise. Entre outros sintomas há este por
aqueles dias: o Diário do Governo
publica, na seção de notícias nacionais,
proclamações de D. João VI. Logo depois, o mesmo órgão oficial aplaude a
restauração do absolutismo lá no reino, e chama heróis aos que tinham derribado
a Constituição portuguesa!...
Não havia mais dúvida: alguma surpresa se prepara
contra a nação.
3 - Na tarde de 10 de novembro concentrava D. Pedro
as tropas da guarnição no campo de São
Cristóvão. No dia seguinte, a Assembleia declara-se em sessão permanente,
"enquanto durarem as inquietações da cidade".
Discutia-se uma interpelação ao governo, quando
chega à mesa um ofício do ministro do Império, no qual se comunicava à Câmara
que muitos oficiais da guarnição tinham ido queixar-se ao Imperador de insultos
que têm sofrido em sua honra por parte de alguns periódicos; e que "para
evitar qualquer desordem", resolvera Sua Majestade sair do centro da cidade
com as tropas. Concluía o ofício dizendo que o Imperador esperava
providências da Câmara. Resolve esta pedir ao governo informações precisas que
a esclareçam.
A uma hora daquela, que é desde então conhecida por noite de agonia, novo ofício se recebe do
ministro do Império, explicando agora que os periódicos de que se queixam os
militares são a Sentinela e o Tamoio, orientados pelos três irmãos
Andradas; e dizendo que Sua Majestade Imperial preferia que as providências
partissem da própria Assembleia. Insinuava-se claro a "destituição"
dos três representantes.
No dia seguinte (12 de novembro) votou-se uma
indicação para que se convidasse o ministro do Império a comparecer à Câmara.
Às 11 horas apresentou-se o ministro (Vilela Barbosa); e interpelado, declarou
com todo desassombro que os militares exigiam: 1° que se coibisse imediatamente
a liberdade da imprensa; 2° que fossem expulsos da Assembleia os senhores
Andradas. Para tornar bem explícitos os intentos do Imperador, chegou o
ministro a declarar, em tom de ameaça, que a Assembleia tivesse cautela, por
isso que — disse — "receio que haja aqui o que houve em Portugal..."
De fato, o ministro falava de cadeira, pois havia lá assistido àqueles heroicos
lances da vila-francada... E não
falta quem diga que viera de lá especialmente para o papel que estava
exercendo. Só agora parece que a Câmara se convence do que está vendo.
Logo depois que se retirou o ministro, correu no
recinto que se ouviam sinais de tropa em marcha.
4 - O anúncio era exato. Enquanto na Assembleia
ocorriam aqueles sucessos, em São
Cristóvão chegava o momento decisivo. Apareceu o Imperador, a cavalo, no
acampamento; chamou os oficiais a um círculo, e disse-lhes, em tom forte e
solene, que a Assembleia Constituinte "acabava de o depor e degredar as
tropas para os confins do Brasil". E comentou: Se as tropas se sujeitam a
isso, ele também se sujeitará, metendo a espada na bainha e partindo para a
Europa. Se as tropas, porém, querem desafrontar-
se a si e ao trono, então estaria desde já à sua
frente para dissolver aquela Câmara facciosa.
Os oficiais, que nada sabiam dos planos do
Imperador, não hesitaram, à vista daquelas razões, em declarar que estavam
prontos para tudo... Seguro do apoio dos oficiais, ornou D. Pedro o seu chapéu
de um frondoso ramo de cafeeiro, e ufano e heroico, deu ordem de marcha para a
cidade.
Fez alto no Campo de Sant'Ana; e dali destacou uma
brigada sob o comando do general Morais, "a qual desfilou a passo
acelerado sobre a Assembleia. Ali, cercou o edifício, e carregando as suas
peças, apontou-as para as portas e janelas do palacete, enquanto ele próprio,
seguido de alguns oficiais e soldados, punha sentinelas na porta principal, e
fazia fechar todas as outras, depois de evacuadas as galerias".
O povo enchia as imediações, mais em pasmo que
indignado diante de toda aquela insânia.
Tudo preparado, entrou o general Morais por entre o
assombro e a consternação reinante naquele recinto, e apresentou ao presidente
o decreto da dissolução.
Lido o decreto, concluiu o presidente declarando que
à vista dele estava a sessão levantada. Pôs o chapéu na cabeça e saiu do
recinto.
Ao saírem da Câmara, tiveram muitos deputados ordem
de prisão pelo próprio Morais.
E então, para coroar a vitória da jornada, saiu do
Campo de Sant'Ana o Imperador à frente das tropas, a percorrer algumas ruas da
cidade, e a provocar aplausos à sua coragem.
5 - O que se pode assegurar, no entanto, é que
naquele mesmo dia se sentiu ele desenganado de seus intentos. Devia tê-lo mesmo
assustado naquele passeio triunfal o aspecto das ruas e quanto se passou bem
perto, em torno dos próprios paços em gala. A cidade caíra em consternação. As
próprias tropas, que tinham sido iludidas, não dissimularam a sua surpresa e
desgosto quando souberam de tudo. Por mais temerário que fosse aquele homem,
vacila agora, sentindo-se como apavorado de toda a sua estúrdia.
Quando, em 1826, instalou a Assembleia Legislativa,
fez ainda ostentação do seu constitucionalismo, lançando em rosto aos liberais
aquela prova de sinceridade que oferecia à nação.
Mas a verdade, impossível de escurecer, é que a
dissolução fora um ensaio. Como voltara Portugal ao regime absoluto, entenderam
o pai e o filho, que seria fácil agora, reunir aos dois reinos sob a mesma
coroa e mantendo as tradições da velha monarquia. Dos próprios termos do ato da
dissolução adivinham-se os intuitos que as palavras traem. A frase do decreto
relativa à convocação de outra Assembleia foi, visivelmente, um enxerto que no
último instante aí se fez por prudência, deixando saídas abertas para casos
imprevistos. E por isso mesmo é que se deixou tudo muito vago; e tão vago que o
ato de convocação dali a dias apareceu, mas a nova Constituinte prometida nunca
se reuniu... nem chegou a ser eleita...
Só a surpresa e o desengano é que explicam tudo
daqui em diante. Provara mal o ensaio, e D. Pedro não pôde ficar no seu
desplante. Logo no outro dia começou a dar decretos explicando o que fizera; e
quanto mais explica menos se concilia com a nação alarmada. Leva uma semana inteira
a nomear e despedir ministros. No intuito de tranquilizar o espírito geral,
cria um Conselho de Estado, que se incumba de redigir um projeto de
Constituição para a futura Assembleia. Esquecido de quanto fizera nas vésperas,
decreta, agora, a liberdade de imprensa. Executando lei promulgada pela
assembleia dissolvida, nomeia presidentes e comandantes de armas para todas as
províncias.
Mas, nem assim conseguia desfazer as apreensões e os
receios que dominam o ânimo público.
6 - Fora do Rio, não foi menos penosa a impressão
causada pelos acontecimentos de novembro, e principalmente nas províncias do
Norte, onde era menos viva a superstição da legenda imperial. — Na Bahia, uma
Junta Geral (17 de dezembro) delibera fazer sentir ao Imperador a "profunda
mágoa dos baianos vendo quebrado o mais forte vínculo que unia a família
brasileira"... No Pará, mesmo no meio das discórdias em que se debatia a
província, assanhou-se a facção portuguesa assim que soube "como D. Pedro fizera
no Rio o que D. João tinha feito em Lisboa"... e foi necessário deportar
os mais exaltados da "causa imperial"... — Ao ter notícia dos
sucessos do Rio, tão funda foi a impressão sentida em São Luís entre os defensores
da Independência, que se pensou logo em tomar precauções contra os portugueses,
acusados de concerto com os reacionários do Sul, para anular a obra feita... E
mais grave se tornou a situação quando ali chegou, como governador das armas, o
destemperado Pereira de Burgos, suspeito ao sentimento nacional. E em toda a
província se levanta o espírito público "em guarda contra o
despotismo"... No Piauí, no Ceará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, em
Alagoas, foram os presidentes nomeados pelo Imperador recebidos "com
visíveis demonstrações de descontentamento" e com mal contidos ímpetos de
repulsa. No Ceará, algumas vilas levantaram o grito de rebelião
"declarando D. Pedro e sua dinastia decaídos do trono do Brasil, e
proclamando o governo republicano"; e dirigiu-se a própria Junta ao
Imperador exprobrando-lhe a violência cometida contra a Constituinte, e
dizendo-lhe que o povo brasileiro prefere "o massacre e a morte a recair
no antigo e abominável jugo"...
7 - Se é certo que o sentimento liberal, desde muito
desconfiado de D. Pedro, com a dissolução da Constituinte se alarmou em todas
as províncias mais ou menos desabrido — em Pernambuco, onde eram mais vivas as tradições
de protesto contra o despotismo, assumiu atitude de resistência formal pelas
armas.
Assim que se recebeu ali notícia do que se passara
no Rio, resignou a Junta o seu mandato perante um grande conselho, e elegeu-se
novo governo, do qual foi chefe Manuel de Carvalho Pais de Andrade. O próprio colégio
eleitoral, que ratificara essa escolha, dirigiu-se ao Imperador dando conta de
tudo, e prevenindo logo a Sua Majestade Imperial que os pernambucanos não
receberiam o presidente que se dizia nomeado para a província (Francisco Pais
Barreto). Comunicava ainda o colégio ao Imperador (palavras textuais) — "a
desconfiança não pequena em que se acham todos os habitantes desta província
pelo extraordinário acontecimento que teve lugar nessa corte no dia 12 de
novembro... receando com grande inquietação o restabelecimento do antigo e
sempre detestável despotismo, a que estão dispostos a resistir
corajosamente"...
Alguns representantes de municipalidades, convocados
por Pais de Andrade, reunidos no Recife, a 21 de fevereiro, decidem a
continuação deste na presidência, visto ter sido submetida à decisão do
Imperador a manutenção de outro nomeado. Pais Barreto, com os seus partidários,
tenta reagir contra isso, mas inutilmente; e retira-se da cidade. Chega por
aqueles dias a Recife o capitão Taylor com duas fragatas de guerra, incumbido de
forçar a posse de Pais Barreto. Reúne-se de novo um grande conselho, e
delibera-se não alterar a situação, enquanto se enviava uma deputação ao
Imperador, encarregada de pedir-lhe que "revogasse a nomeação de Pais
Barreto".
D. Pedro acedeu nomeando para presidente a José
Carlos Mayrink da Silva Ferrão. Mas este próprio já estava, pelo que parece, de
concerto com Pais de Andrade; e recusou-se a assumir o governo.
Tendo tudo preparado, com apoio em outras províncias
do Norte, deu Pais de Andrade, no dia 2 de julho (1824) o seu famoso manifesto,
que concluía proclamando a Confederação
do Equador.
É ainda o almirante Cochrane quem vai chamar à ordem
as províncias levantadas. Enquanto a esquadrilha imperial bloqueia Recife, o
coronel Francisco de Lima e Silva investia a praça por terra. O fracasso era
inevitável. Dois meses e meio depois do rompimento, estava inteiramente vencido
aquele protesto, que parecia mais efeito de impulsão momentânea que de plano
refletido e preparado.
Em todas as outras províncias, ainda foi mais fácil
a restauração da legalidade.
A vitória das forças imperiais seguem-se as
execuções com que a majestade ainda se desafrontava.
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