9/06/2018

História do Brasil: A Guerra da Cisplatina (Ensaio), de Rocha Pombo


Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

A Guerra da Cisplatina


1 - O que vai acontecer agora era inevitável. A Cisplatina era um fruto daquelas veleidades de D. João VI, de aproveitar alguma coisa daquilo que se julgava espólio da monarquia espanhola.

Mesmo no Brasil, nunca se acreditou que a antiga Banda Oriental viesse a ser uma província do império. A própria fictícia "incorporação" fizera-se contra o sentimento dos brasileiros. Só D. Pedro, cada vez mais dominado das suas impulsões, é que entendeu que devia manter pela força aquela absurda conquista.

Não é de estranhar, portanto, que o espírito público se mostrasse tão avesso a semelhante campanha, e até o extremo de chegarem os mais exaltados, no Rio principalmente, a fazer causa com os patriotas uruguaios. Não se tratava, aliás, de apenas proclamar a maioridade de um dos membros de uma família. Havia por ali, contra nós, a tradição de uma rivalidade secular a nutrir de fortes estímulos a alma de duas populações irmãs.

É bem conhecida a história da Banda Oriental do Uruguai, outrora província do vice-reino de Buenos Aires. Tinha sido, primeiro, fortemente disputada por espanhóis e portugueses; e ali, durante mais de um século, deram-se lutas tremendas, que geraram profundas incompatibilidades entre os dois povos. Com a revolução da independência nas províncias do Prata, a Banda Oriental separou-se de Buenos Aires. Tendo caído, porém, sob o domínio da caudilhagem que a flagelou, inclusive invadindo a nossa fronteira, disso se valeu D. João VI para conquistá-la.

2 - Mas essa conquista não se fez sem protestos. Grande número de patriotas insubmissos emigraram; enquanto os sentimentos gerais da população continuavam a ser infensos ao Brasil, sendo ilusórias umas aparências de paz com que se desvaneciam os agentes do Império.

Ia Lecór, com os seus 3.000 homens concentrados em Montevidéu, exercendo com segurança as suas funções de chefe militar e de governador,
mas desapercebido de quanto se preparava em Buenos Aires e nas províncias argentinas contíguas.

No dia 17 de abril (1825) partiram de Quilmes e de San Izidro, em dois lanchões, trinta e três conjurados; e subindo cautelosamente o estuário, entraram no Uruguai, e foram (pela manhã de 19) desembarcar em território oriental, no distrito da Agraciada. Assim que saltaram em terra, prestaram, aqueles heróis, o juramento de libertar a pátria, ou morrer combatendo.

Sob o comando de Juan Lavalleja, dirigiu-se o pequeno grupo de patriotas para o norte, e ocupou o povoado de Soriano, de onde se fez espalhar uma proclamação pela campanha. Começou a crescer aquele núcleo, e ainda mais rapidamente depois que Lavalleja estabeleceu o seu quartel-general em Florida. Os próprios chefes militares que estavam a serviço do Império, (como Julián Laguna e Rivera) juntaram-se aos revolucionários.

No dia 20 de agosto reúne-se em Florida um congresso oriental, composto de representantes dos departamentos já libertados. O primeiro ato desse congresso foi declarar desfeitos os pactos em virtude dos quais se anexara a antiga Banda Oriental ao território do Império. Alguns dias depois (a 25 de agosto) era solenemente proclamada a Independência do Uruguai "sob o protetorado da República das Províncias Unidas do Prata".

Transfere então, Lavalleja, o acampamento geral para Durazno.

3 - Tratou antes de tudo o governo imperial de impedir que os argentinos mantivessem aquela atitude de apoio à revolução. Surpreendido pela esquadrilha do vice-almirante Rodrigo Lobo, declarou o governo de Buenos Aires que ficaria inteiramente neutro "nas questões entre o Brasil e os orientais"...

E o vice-almirante satisfeito, voltou com os seus navios para Montevidéu... deixando que os argentinos se aparelhassem para a sua política. Tiveram eles, assim, muito tempo e sossego para reunir, em ponto excelente da fronteira, um exército de 8.000 homens.

Contra esse exército partiu imediatamente o comandante das armas do Rio Grande do Sul (general José de Abreu) com uma divisão de cavalaria (uns 1.200 homens); e foi estacionar à margem do rio Negro. Por ali começaram logo os brasileiros a encontrar-se com os revolucionários. No dia 4 de setembro é Frutuoso Rivera batido em Arbolito por Bento Manuel; e este varre a campanha, enquanto Abreu domina toda a linha do rio Negro. Estava, pois, em risco de arrefecer o ânimo dos patriotas.

Bastou porém, uma estrondosa façanha de Servando Gomes no Rincão de Haedo para reerguer a coragem do exército libertador (a 24 de setembro).

Dali a alguns dias (a 12 de outubro) como para reacender o entusiasmo geral entre os aliados, dava-se o encontro de Bento Manuel com o exército de Lavalleja, em magnífica posição junto ao riacho Sarandi. Ao primeiro choque, pareceu que os revolucionários estremeceram de terror sentindo a temeridade da investida. Mas os imperiais, quando viram o precipício em que os metera a audácia do seu comandante, foram esmorecendo, principalmente desde que correu entre eles a notícia de que a infantaria guarani debandava. E não demorou que começasse a dispersão geral dos nossos.

Foi imenso o efeito moral deste novo sucesso das armas republicanas. Senhores agora de toda a campanha, cresceram enormemente os elementos de ação para os revolucionários.

No Brasil a impressão foi extensa e profunda, menos pelo que valiam os desastres como infortúnios, do que pelo que dizem de uma causa que a provas tão duras expõe o patriotismo dos brasileiros.

4 - Enquanto no Brasil se lamenta a guerra, o congresso argentino, sem discutir, decreta, em sessão tumultuária, que a antiga Banda Oriental era incorporada na República das Províncias Unidas.

Era a declaração oficial de uma guerra que desde muito andava aberta. No Rio de Janeiro, esses acontecimentos alarmam muito mais o governo que o espírito público propriamente. A situação interna é tão escura e dolorosa que não há mais alma senão para lastimar os novos males que sobrevêm. O Imperador cada vez mais se incompatibiliza com os sentimentos do povo brasileiro. Perante a opinião mais culta, a figura daquele homem se acentua em tudo que tem de incompreensível. Presididas por ele, as instituições que se ensaiam são apenas decorativas. O sistema constitucional está "só de nome adotado".

O governo imperial, desapercebido de tudo, rebate com extrema energia ao desplante dos argentinos. E põe-se em grande movimento todos os recursos militares do Império. Nomeiam-se novas autoridades, tanto para o governo do Rio Grande, como para o exército em operações no Sul.

Leva-se todo o ano de 1826 a concentrar forçar de terra em Sant'Ana do Livramento.

Enquanto isso, estabelecia Rodrigo Lobo o bloqueio de Buenos Aires. Por sua parte, decidiu-se o governo argentino a operar desassombradamente. Investe outra vez do comando das suas forças navais ao velho e temerário Brown; e a guerra marítima se acende em todo o estuário platino. Assim transcorre, como se disse, quase todo o ano de 1826.

Tinham tido, pois, os aliados, muito tempo de refazer-se em terra. Pelos fins do referido ano estavam prontos para tomar ofensiva contra o inimigo. O exército imperial em Livramento parecia "fatigado de tão longa inação", e dando mostras de grande desânimo.

O governo de D. Pedro atribuía à incapacidade dos generais o que não era senão devido à infelicidade da causa. Chegou logo um momento em que não foi mais possível que, sem risco de irremediáveis desastres, se permanecesse naquela situação de angústia.

5 - Procurou-se, então, uma grande figura capaz de assumir as responsabilidades daquela ímproba campanha: e foi nomeado para o comando geral o Visconde (logo depois Marquês de Barbacena). Conquanto alta patente militar, não era este propriamente um homem de guerra, senão grande político e diplomata, a quem a Independência e o Império deviam os maiores serviços. Dir-se-ia que só vai ele operar, pois, com o seu imenso prestígio.

Acompanhado do seu estado-maior, foi Barbacena chegar a Porto Alegre no dia 23 de novembro (1826).

Mal saíra para o Sul o Marquês de Barbacena, quando tem D. Pedro a ideia de aproveitar aquele ensejo para refazer a sua popularidade por um lance teatral: resolve ir ele próprio ao campo da luta, para decidir o conflito.
Indo por mar até Santa Catarina, dali seguiu por terra, e foi chegar a Porto Alegre no dia 8 de dezembro.

Com a presença do Imperador, que, em pessoa, ia dirigir a nova campanha, exaltou-se com efeito o entusiasmo dos rio-grandenses. Mas exaltou-se apenas para recair depressa no seu desalento. Uns dez ou doze dias depois, e sem ter saído de Porto Alegre, já se punha o Imperador a caminho, muito em silêncio, de volta para a corte.

Este imprevisto desfecho de comédia, quando todos esperavam a epopeia anunciada, causou a mais vasta sensação, e "diminuiu ainda mais o prestígio do Imperador". O que não impediu que ele aqui chegasse (a 15 de janeiro) ostentando ainda aquela arrogância heroica com que afrontava a opinião geral, os sentimentos e o próprio decoro da nação. Não há dúvida que se tem, refletindo em tanto capricho e aturdimento, vontade de crer que ele voltou do Sul desiludido, de si mesmo e de tudo, mais ainda disposto a arcar com as injunções do destino; pois afinal, o que é admirável — e sempre diz, dele e do seu tempo alguma coisa que deixa em pasmo a história — é que lhe tardasse tanto aquele tão disputado 7 de abril...

6 - Enquanto o Imperador voltava para o Rio, partia para Sant'Ana do Livramento o Marquês de Barbacena.

Ali sentiu logo, o novo chefe do exército imperial, a troada de guerra que andava pelos contornos.

Os aliados, sob o comando do próprio ministro da guerra argentino, D. Carlos de Alvear, estavam fortes, contando com mais de 10.000 homens, a maior parte de cavalaria, que é a arma decisiva na campanha.

Do Arroio Grande partira agora Alvear, em marcha para o nordeste, no intuito de surpreender o exército imperial ainda no Livramento. Por meados de janeiro (1827) penetrava ele no Rio Grande. No dia 13 havia já Barbacena saído para as margens do Cunhã-peru, onde acampara. Ouve-se em torno o tropel do inimigo. Os dois exércitos espreitam-se. Está iminente o encontro das hostes. A 4 de fevereiro sai Barbacena do Cunhã-peru, e vai tomar posição à margem do arroio das Palmas (afluente do Camacuã), onde se esperava o primeiro encontro com o inimigo.

Não ousando atacar o exército imperial em Palmas, marchou Alvear para o norte, à procura de campo de combate que lhe fosse favorável. Persuadido de que os inimigos disfarçam uma retirada, põe-se Barbacena no encalço deles. O que é estranho é que o próprio chefe brasileiro percebe a astúcia do general contrário, e "vai no seu seguimento"...

Pela manhã de 20 de fevereiro, a nossa vanguarda descortinava as posições inimigas, no alto de umas colinas, junto ao Passo do Rosário. Trava-se a batalha, experimentando logo de começo o exército imperial as vantagens da tática inimiga. Ao cabo de seis horas de luta, iam os nossos executar manobra que se julgava decisiva, quando começa a lavrar incêndio na macega ressequida do campo, ficando os imperiais a sotavento da fumaça e das chamas. A confusão foi horrível, e não houve mais meio de por a nossa gente em ordem. Este desastre põe o Marquês de Barbacena em grande aflição; e para aumentá-la, recebe aviso de que o trem de guerra e a bagagem do exército acabavam de cair em poder do inimigo.

A retirada era inevitável. Se aquilo não foi propriamente uma vitória dos aliados, foi, pelo menos, um grande revés para as armas imperiais.

7 - Mais feliz não era no mar a causa que o Imperador teimara em sustentar, apesar de várias vitórias de nossos navios. Ainda por aqueles dias sofria a nossa esquadra no estuário, principalmente a divisão do comandante Sena Pereira, desastres irreparáveis. Logo depois, para os fins de fevereiro, dava-se o completo malogro daquela mal inspirada expedição à Patagônia.

Não era possível continuar a guerra. Em todo o país clamava-se contra ela como intento sacrílego.

Mediante os bons ofícios do ministro inglês (Lorde Ponsonby) é o próprio governo argentino que inicia as negociações da paz. D. Pedro e o seu gabinete fizeram ainda questão de conservar a Cisplatina como província brasileira. O negociador argentino chegou a admitir essa exigência, e assinou um convênio. O povo de Buenos Aires, porém, quase o assassinou ao chegar ele ali com o pacto afrontoso. Houve protesto geral na República, votando-se pela continuação da guerra. Reencetam-se mesmo as hostilidades na Banda Oriental.

No Rio de Janeiro, o Imperador, em grande exaltação apela para o país.

Mas a nação não se exalta. O Imperador não contou nem com as Câmaras.

É ainda o ministro Ponsonby que vem afinal interpor-se entre os dois governos. Vêm ao Rio, pelo governo argentino, os generais Balcarce e Guido. Aqui, o residente Gordon, por sua vez, atua na corte imperial.

Até que no dia 28 de agosto de 1828 concluíam as duas partes o tratado preliminar da paz, segundo o qual passava a Província Cisplatina a constituir um Estado soberano.

Burlavam-se, assim, as pretensões do Império e as da República das Províncias Unidas do Rio da Prata.

Só agora se dirimia o mais que secular litígio que começara com a fundação da colônia do Sacramento em 1680.

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