Extraído do livro "História do Brasil", publicado no início do século XX. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
A Abdicação de D. Pedro I
1 - D. Pedro "mudara desde que se viu Imperador"; mas principalmente depois do golpe de força de 12 de novembro pusera-se ele, com o sentimento nacional, numa colisão tão brusca que não se sabe como é que se manteve ainda no trono por mais de sete anos. Isso realmente só se explicaria talvez pelo grande número de sucessos e questões, cada qual mais grave, com que se andava distraindo a consciência pública. Foi primeiro a revolução pernambucana. Depois, as guerras mal-aventuradas do Sul, pondo em angústia toda a nação. E juntamente com tudo isso, as estranhas desordens políticas que se davam em Portugal, mais ingentes ainda, depois que o rei falecera.
Não obstante o que se havia passado no Brasil,
conservara D. João os direitos dinásticos do seu filho querido. Chegou D. Pedro
a exercer atos de soberania como rei de Portugal, dando decretos em que se
assinava Pedro IV de lá. Entre esses decretos figura o da outorga de uma Carta Constitucional
à nação portuguesa; e também o que formava a Câmara dos Pares, nomeando para
ela, gente sua, muito fiel. Deu ainda um decreto confirmando os poderes da
Regência que D. João nomeara.
Tudo isto queria dizer que o Imperador do Brasil
aceitara a herança paterna, fazendo-se Rei de Portugal...
É fácil imaginar o que estes sinais produziriam no
espírito dos brasileiros, que andavam já desconfiados e prevenidos contra D.
Pedro.
Sentindo o alarma que se levanta em todo o país,
teve ele que abdicar a coroa de lá na filha ainda menor, D. Maria da Glória.
Nesse documento, porém, não dissimulou como o assinara: fez uma abdicação
condicional, deixando bem claro que a falta de qualquer das condições que
estipulava tornaria sem efeito a abdicação...
E mesmo depois de haver abdicado assim,
"continuou ele a proceder como se nas mesmas mãos estivesse o governo do
reino europeu e o do Brasil".
2 - Mas D. Pedro se enganava; e tanto em relação ao
Império como em relação a Portugal, desconhecendo a situação, tanto de um como
de outro, dos países que intentava reduzir ao seu absoluto domínio. Lá não lhe aceitaram
a Carta senão depois de muitos protestos. Aparece o partido de D. Miguel e D.
Carlota; e reacendem-se as velhas discórdias que tinham dado cabo do pobre D.
João VI. Aquele trêfego e desabusado D. Miguel, nomeado Regente em nome de D.
Maria da Glória, entra em Lisboa aclamado "como D. Miguel I, rei absoluto
de Portugal"... E o moço, instigado
pela mãe, não fez nenhum luxo: despede os ministros
que tinham servido até ali; chama gente de sua confiança pessoal; e não demorou
que dissolvesse a Câmara dos Deputados. Alguns dias depois, é a municipalidade de
Lisboa que pede a Sua Alteza., em nome dos habitantes, que assuma de uma vez o
título de rei de Portugal... Reúne-se uma "assembleia dos três
estados", e declara, pelo voto unânime de cada uma das ordens, "que D.
Miguel de Bragança era o rei legítimo de Portugal e Algarves, conforme as leis
fundamentais da monarquia"...
Tinha, pois, agora D. Pedro, mais aquela grave
questão a enchê-lo de aflições no meio dos embaraços, já de si penosos, com que
vai lutando.
Cuida ele de sustentar lá, a causa da filha, como se
fosse uma legítima causa do Império. Notava-se mesmo, lá por 1829, que, por
aqueles negócios, ia ele revelando uma solicitude de "quem põe a sua
esperança em criar, lá na Europa, uma situação do refúgio para alguma
emergência que lhe possa sobrevir na América".
3 - Nem há dúvida alguma que foi a situação de
Portugal (que, aliás, ele próprio criara) o maior dos óbices que D. Pedro
encontrou naquele caminho escuso por onde enveredara depois da Independência.
Entre aqueles sucessos e os desastres da Cisplatina, ficou o seu espírito num estado
de irritação contínua, que os negócios internos cada vez mais agravavam.
Quando se reuniram as Câmaras em 1826, começou-se a
ter mais confiança na situação do Império: já se sentia ali um elemento de
ordem, uma autoridade assentada e sábia, a contrabalançar o poder ilimitado que
se arrogava o Imperador.
É principalmente a Câmara temporária que vai
orientar a nação dali por diante.
Não demoraria, por isso mesmo, que a representação
se pusesse em contraste com o arbítrio imperial; pois só D. Pedro não se
apercebia de que os tempos vão mudando. Ainda na sua Fala de abertura da sessão
de 1827, usava ele de frases como esta: "Eu exijo desta Assembleia"
que se não descuide do que lhe recomendo...
Mas a Câmara já se ia desassombrando, e começava a
falar alto. Ali já se discutiam casos de natureza muito curiosa, como, por
exemplo, tentativas, em algumas províncias, de "'proclamação do
absolutismo", e fatos, muito comuns por aqueles dias, de adesão e protesto
pessoal a D. Pedro, e que este via com prazer, mas fingia repelir... Fingia,
porém, muito mal, porque ao mesmo tempo galardoava ostentosamente todas aquelas
fidelidades desassombradas, tão gratas ao seu coração.
Houve até, numa das sessões daquele ano, um deputado
que se declarou pela república! e produziu um vasto sussurro de pânico
indescritível em todo o recinto. Era o grande susto que não tinha morrido bem
no fundo daquelas almas. O deputado, porém, desdenhou aqueles terrores, e disse
ainda bem alto: "...As circunstâncias são críticas; não é a primeira vez
que se abusa do poder: é, sim, se não antes, desde que se dissolveu a
Constituinte!"
4 - O que fica evidente é que o cuidado de todos
está em disfarçar o estado do ânimo geral no seio da própria Câmara. Continuava
o processo, que se julgava mais patriótico, de ir, mesmo à custa de algum
sacrifício e de contemporizações, evitando qualquer desfecho violento daquela
situação de crises em que está vivendo o país.
Dir-se-ia que o povo brasileiro, naquele momento excepcional,
se divide, quanto à sua orientação histórica, em duas correntes: uma, legítima
e normal — a que não separa da existência do Estado as aspirações que fizeram a
independência; outra — a que renuncia os ideais inerentes ao papel das gerações
e à própria função das raças, para tudo ceder à tradição. Os que formam a
primeira corrente retomam o pensamento dos que fizeram a nação, e constituem o
Brasil americano, o verdadeiro Brasil. Os outros preferem continuar a vida da
colônia, acomodando-se aos antigos moldes, dentro dos quais esquecem que na
América não se pode mais ficar. Todo o país está, pois, assim diferenciado: em nação
oficial e povo que se encaminha na sua história; Império no coração de muitos,
e Brasil no coração da imensa maioria; partido do governo, e partido popular;
fiéis do Imperador, e fiéis da Pátria.
É do embate destas duas correntes que vai sair
vigoroso o espírito da nacionalidade. Por isso mesmo, aquela fase tem a
gravidade dos grandes momentos: porque ali se elabora a afirmação decisiva do
sentimento nacional acima de todas as contingências das próprias formas
políticas.
Já sabemos, portanto, que o conflito entre os
brasileiros e D. Pedro está perfeitamente caracterizado.
5 - O ano de 1828 abre-se sob os auspícios do mesmo
espírito novo que se vem revigorescendo. É agora que floresce de novo a
imprensa, como em 1823, arrostando todos os perigos, só confiante na excelência
da sua função, cônscia e segura do seu valor. Surge naqueles dias Evaristo da Veiga,
fazendo-se logo, pela firmeza e serenidade com que representa o sentimento
geral, uma figura de nítido relevo naqueles tempos. A Aurora Fluminense, que em fins de 1827 começa a publicar-se, foi
como a própria voz daquela geração, orientada na história, e resoluta no seu
caminho.
Na terceira sessão da Assembleia Geral sente-se que
vai cada vez mais afoito o ânimo dominante na representação. Bastaria notar que
no voto de graças houve frases como esta: "...A Câmara não cessará de
vigiar para que a hidra do despotismo não
torne a erguer o colo... Foi ainda nesta sessão que a Câmara não quis dar
assento a um suplente de deputado, por ser indigno dela. É que o eleito havia
aplaudido a dissolução da Constituinte; e até em 1825 promovera representações
ao Imperador pedindo-Ihe que assumisse a
autoridade absoluta.
E encerrou-se a penúltima sessão da legislatura sob
a impressão de uns disparates com que se saíra o ministro da guerra, a
propósito de um crédito para a sua pasta.
Por sua vez, na fala de encerramento, limitou-se o
Imperador a lamentar que a Assembleia "não tivesse aproveitado o seu tempo
tão sabiamente como ele esperava"...
Findou o ano com o alarma geral produzido em todo o
país pela notícia de que estava a partir da Inglaterra uma expedição de tropas
portuguesas, e que se dizia para o Brasil. Tão formais e enérgicas foram as
manifestações contra isso, que o Imperador teve de mandar contraordem para a
Europa.
6 - A sessão de 1829, após um mês em que funcionara
a Assembleia extraordinariamente, inicia-se tormentosa; e toda ela correu
assim, no meio de uma atmosfera de discórdia. É esta sessão, que era a última
da primeira legislatura, que D. Pedro, fulo de cóleras, encerra com todo este discurso:
"Augustos e digníssimos senhores representantes da Nação Brasileira: está
fechada a sessão". E saiu ostentoso.
Enquanto o Imperador tomava, de agora em diante, sem
mais reservas, o partido português, acentuava-se na segunda legislatura,
principalmente na Câmara temporária, aquele espírito liberal, que se pusera de
guarda à nação desde a primeira.
Numa das sessões de maio, discutindo a moção de
graças, dizia um deputado: "Pois não foi o próprio governo que deu causa àquela revolução (de 1824 em
Pernambuco) dissolvendo a Constituinte?... Queria-se estabelecer, já naquele tempo, o despotismo; queria-se acabar com a Independência; queria-se
finalmente destruir a Constituição aqui, como se destruíra em Portugal"...
Sente-se que a colisão entra na sua fase violenta.
Não há mais meio de disfarçar a incompatibilidade do Imperador com os brasileiros.
E o que parece muito claro é que D. Pedro está mesmo
deliberado a liquidar a sua situação no Brasil.
Pelos fins de dezembro (1830) resolve ele ir a
Minas, onde reinavam dissenções. Vai tirar uma prova de que está perdida aquela
popularidade de 1822 - Os mineiros desenganaram-no cruelmente.
De volta de Minas, apenas o seu partido quis
consolá-lo das decepções que sofrera. Viram nisso os brasileiros um acinte, e
cuidam de perturbar as festas dos portugueses em honra do Imperador.
Incendem-se os fiéis de D. Pedro, e saem para as ruas a afrontar os patriotas,
obrigando-os a por luminárias e cometendo toda sorte de violências.
Travam-se, então, verdadeiras batalhas. Toca ao auge
da acuidade aquela crise. No dia 17 de março é apresentada ao Imperador uma
representação, em termos categóricos, acerca dos acontecimentos, e subscrita
por vinte e quatro membros da Assembleia Legislativa. No dia seguinte respondeu
o ministro do Império, dizendo que tinham sido tomadas as convenientes providências...
Desiludidos de toda prudência, tratam agora, os
patriotas, de organizar abertamente a revolução. Contaram logo com o apoio das
tropas.
Quis D. Pedro, então, recuar. Mas era tarde. Ninguém
mais acredita nas suas veleidades calculadas.
7 - Todo aquele resto de mês escoa-se no meio de
imensa agitação. Até que nos dias 5 e 6 de abril como se quisesse afrontar de
uma vez a nação, entendeu o Imperador que devia despedir os ministros que tinha
recentemente nomeado, e que pareciam simpáticos à opinião, e chamar para o governo
só gente sua.
Quando se teve notícia dessa mudança, a cidade
estremeceu. Grupos em verdadeira alucinação, começaram a percorrer as ruas. Do
meio-dia em diante foram afluindo para o Campo de Sant'Ana, e ali
aglomerando-se, em grande desatino.
Ao cair da tarde, enviou-se a São Cristóvão uma
comissão de juízes de paz, a pedir ao Imperador a reintegração do ministério
demitido, ou a nomeação de um ministério novo.
D. Pedro despediu os juízes com a sentença
conhecida: "Estou pronto a fazer tudo para o povo — nada porém, pelo
povo".
Vai então, a São Cristóvão, o próprio comandante das
armas, Francisco de Lima e Silva. Nada. O Imperador estava brusco e inabalável.
Quando chegou Lima e Silva de volta ao Campo, já
encontrou ali, confraternizados com o povo, quase todos os corpos da guarnição,
inclusive o próprio Batalhão do Imperador.
Não era mais possível contemporizar. De acordo com
os outros generais, que se achavam presentes, tomou o comandante das armas a
deliberação de mandar outra vez à Boa Vista o major Miguel de Frias,
encarregado de expor a Sua Majestade o extremo de aflição em que se estava.
Mais ou menos pela meia-noite chegava Miguel de Frias ao paço.
Encontrou agora, D. Pedro abatido, e como abismado
em apreensões que o amarguram.
Era sem dúvida o terror do desfecho. É possível que
ele quisesse mesmo sair do Brasil: mas a hora suprema da catástrofe, agora o
espanta e faz tremer.
Procurou evitá-la. Dizendo a Miguel de Frias que
esperasse, mandou ao intendente de polícia que fosse a toda pressa à cidade
procurar o senador Vergueiro, e dizer-lhe que o Imperador o autorizava a
organizar um novo ministério, com o qual devia quanto antes apresentar-se em
São Cristóvão.
Pelas duas e meia entrava no paço o intendente de
polícia, prostrado de fadiga, declarando que não lhe fora possível encontrar o
senador Vergueiro.
Estava desfeita a última esperança. Dentro de uns
dez minutos entregava D. Pedro a Miguel de Frias uma folha de papel aberta: era
o ato de abdicação.
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