Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Eu tinha dez meses de viúva e havia seis
que Paulo me fazia a corte. Por esse tempo propôs-me ele um passeio ao campo e eu aceitei.
A manhã era esplêndida; uma bela manhã
de setembro, cheia de luz e temperada por um calor comunicativo e doce. Às
quatro horas matemo-nos num carrinho de vime, leve como uma cesta, rasteiro
como um divã, e cômodo como um leito. Paulo deu rédeas ao animal e o carro conduziu-nos
para fora da cidade.
Eu sentia um bom humor extraordinário; o
ar puro e consolador daquela madrugada, pulverizado no espaço em vapores cor de
rosa, enchia-me toda como de uma grande alma nova, feita de coisas alegres e benfazejas.
Tive vontade de rir e de cantar.
O sol principiava a destacar o contorno
irregular das árvores e derramava sobre as montanhas uma luz sanguínea e
transparente. Achei-me expansiva, travessa, com repentes de criança; e, não sei
porque, Paulo nessa ocasião se me afigurou muito melhor do que nas outras.
Cheguei a descobrir-lhe espírito e a desfazer-me em risadas com algumas
pilhérias suas que, fora dali, me fariam bocejar.
Em certa altura, paramos. Ele ajudou-me
a descer, prendeu o cavalo, abriu a minha sombrinha, e começamos os dois a
andar de braço dado por debaixo das árvores.
Que delicioso passeio! Ninguém pode
calcular quanto me sentia feliz. Mais alguns passos e tínhamos chegado a um
caramanchão, ou melhor, alpendre de verdura, misterioso, morno, impregnado de
perfumes resinosos e embebido de azul sombrio. Ao lado, uma cascata corria em
sussurros; e as suas águas esfarelavam-se nas pedras, irradiando na fulguração
do sol.
Paulo deixou-me por um instante, para ir
buscou o carro. E, nesse momento de inteira liberdade, quando senti que não era
observada por ninguém, levantei-me, bati palmas e pus-me a dançar como uma
doida; depois galguei aos saltos o lado da cascata e recebi no rosto o pó úmido
das águas, donde o sol tirava cambiantes multicores e dourados. Abaixei-me,
colhi água na concha das mãos e bebi. Afinal, assentei-me no chão e abri a
cantar uma coisa alegre que aprendera ainda no tempo do colégio.
Paulo voltou com o carro e recolheu ao
pavilhão o cesto do almoço. Estendeu a toalha sobre uma mesinha de pedra que
havia; pousou uma máquina de café, duas garrafas de bordeaux, uma champanhe, uma botija de coração, uma empada, um assado,
queijo, frutas e pão.
Sentia apetite e confesso que estava
encantada com tudo aquilo. Era a primeira vez que me animava a fazer uma folia
desse gênero — um almoço ao ar livre, ao lado de um rapaz.
E Paulo não me parecia o mesmo homem: descobria-lhe
maneiras e qualidades, para as quais jamais atentara em quanto o vira somente
nas frias altitudes circunspectas da vida; notava-lhe agora a distinta
estroinice dos pândegos de boa família, criados e amimados entre senhoras finas
orgulhosas; um certo pouco caso fidalgo e elegante pelas virtudes comuns e pelos
vícios vulgares; um ar altivo e másculo de quem está habituado a gastar forte
com os seus prazeres; uma linha moderna, libertina e gentil a um tempo, feita
de extravagâncias de bom gosto, e um pouco de viagens, alguns conhecimentos de música,
um nada de política, anedotas francesas, algum dinheiro, charutos caros, um monóculo,
o uso de várias línguas, duas gotas de mel inglês no lenço, um fato bem feito
de casimira cambraia, um chapéu de palha, luvas amarelas, polainas e uma
bengala.
E o grande caso é que estava um rapagão cheio
de gestos largos, de atiramentos de perna e de grandes exclamações em inglês.
Assentei-me no banco que circulava a
mesa e ele fez o mesmo defronte de mim. Informou-se se eu estava satisfeita com
o passeio; falou em repeti-lo. Era preciso aproveitar o verão. Mas, nos
domingos — nada! Havia muita gente!
E abria garrafas, dava lume à máquina de
café, servia-me de mariscos e falava-me do seu amor. Eu contei-lhe francamente
as impressões que recebera aquela manhã e mostrei-me contente.
— Se soubesse, minha amiga, disse-me ele,
quanto me sinto bem a seu lado!... Nem mesmo me reconheço, creia! Fico tolo só
a pensar em nossa futura felicidade, em nossa casa e em nossos...
Ia falar nos filhos, mas deteve-se e
ficou a olhar-me em silêncio, com os olhos afogados numa grande insistência
humilde. Parecia haver um pranto escondido por detrás das suas pupilas verdes.
— Descanse, falta pouco!... respondi,
possuída de alguma coisa que não sei bem se era compaixão.
— Falta um século!... emendou ele com um
suspiro.
E chegou-se mais para mim. Tinha o ar
tão respeitoso que não fugi.
— Por que não fica mais à vontade?
aconselhou-me, ajudando-me, muito solícito, a tirar o chapéu e desfazer-me do
mantelete.
Houve um silêncio. Ele queixou-se da
falta de gelo, abriu uma nova garrafa de bordeaux
e encheu as taças. Depois, leu-me uns versos que a mim fizera no meu tempo de
solteira. Vieram recordações. — O nosso namoro! Quanta criancice!
— E o bofetão?...
Esta lembrança trouxe-me uma risada que
me fez engasgar. Sobreveio-me tosse; fiquei um pouco sufocada...
Ele levantou-se logo, começou a bater-me
delicadamente nas costas. E, a pretexto de auxiliar-me, afagava-me os cabelos e
a fronte.
— Não é nada! não é nada! dizia. Um gole
de champanhe!
— Não! antes água...
Correu à cascata e voltou com um copo d'água.
Tornamos à palestra, e não reparei logo
que o rapaz desta vez ficara inteiramente encostado a mim. Passamos à sobremesa.
As pilhérias repetiam-se mais a miúdo. Paulo pôs-se a fumar.
Consenti e disse até que gostava do cheiro
do fumo. Ele fez saltar a rolha do champanhe. Sentia-me enlanguescer; os olhos
ardiam-me um tanto e todo o corpo me pedia repouso; insensivelmente fui
perdendo alguma coisa da minha cerimônia e pondo-me à vontade; estiquei mais as
pernas, recostei-me nas costas do banco e debrucei para traz a cabeça.
Ele ficou a olhar-me muito, com um ar sério
e infeliz. Tive vontade de dizer qualquer coisa e nada mais consegui do que
sorrir. Estava fatigada.
Paulo aconselhou-me que fumasse um cigarrinho
e esta ideia extravagante não me pareceu má. Fumei o meu primeiro cigarro.
Em seguida senti um vago desejo de
dormir. Ele serviu o café e o licor. Fez-me tomar antes um pouco de champanhe
misturado com bordeaux.
E continuamos a conversar. As
recordações de antes do meu casamento vinham a todo o instante.
— Isto sempre teve gênio!... segredava ele,
ameigando-me o queixo.
Chamava-me criaturinha má, sem coração; ameaçava-me
com vingançazinhas, que se realizariam quando fôssemos casados. Tinha ditos maliciosos,
palavras de sentido dúbio e olhares cheios de paixão.
Eu estendia-me cada vez mais no banco, amolecida
por um entorpecimento agradável; as pálpebras fechavam-se-me. Fazia-se-me
vontade de ser menos severa para com aquele pobre companheiro de infância;
tanto que não me sobressaltei quando senti a sua mão empolgar-me a cintura.
— Como eu te amo! murmurou ele, com a boca
muito perto de meu rosto.
O seu hálito abrasava-me as faces.
— Não faça assim: pedi, repelindo-o
frouxamente.
Mas ele passou-me a outra mão na cinta e
puxou-me para si.
Fiz ainda alguma resistência; sentia-me
porém tão mole, e além disso queria tanto ser abraçada por alguém naquela ocasião,
que me deixei levar e caí sobre ele, com a cabeça desfalecida no seu ombro.
Paulo segurou-me o rosto e estonteou-me
de beijos.
Eram ardentes, vivos, repetidos, como os
tiros de uma metralhadora.
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