Antônio Francisco Lisboa, o"aleijadinho" (1730-1814)
"Ad Dominum Curro Sitiens, Ut Cervas Ad Undas"
(Corro sequioso para o Senhor, como o servo para as águas)
(Corro sequioso para o Senhor, como o servo para as águas)
Transcendendo a interesses
locais, surgiu em Minas Gerais, à época da Inconfidência, uma arte
autenticamente brasileira, tanto no palco dos acontecimentos da Inconfidência
como em vários outros locais, hoje conhecidos como "Cidades
Históricas". Seu responsável foi Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido
como "Aleijadinho", escultor e arquiteto nascido em Vila Rica, hoje
Ouro Preto, a 29 de agosto de 1730. Filho natural de Manuel Francisco Lisboa e
de uma escrava africana, o Aleijadinho tomou gosto peia arte, através de seu
pai, mestre de obras, que foi considerado o primeiro arquiteto da província.
Seu segundo mestre foi o abridor de cunho, João Gomes Batista, e o terceiro, o
ornamentista Francisco Xavier de Brito, ambos lusitanos como seu pai. Sua
evolução, entretanto, processou-se naturalmente e a inspiração para toda sua
vasta e bela obra encontrou-a em estampas, breviários e livros sacros que lhe
cediam os padres das diversas irmandades religiosas a que pertencia. Os
franciscanos colaboraram emprestando ao Aleijadinho obras sacras como o livro de
"Vitrúvio — Speculum Hummanae Salvationis" — "A Bíblia
Pauperum" e o "Livro das Horas", onde se baseava para habilmente
esculpir os trajes antigos das imagens.
Considerado o maior escultor das
Américas, o "Aleijadinho" continua vivo nos altares e frontispícios
das igrejas mineiras, nos anjos e santos barrocos, nas pias batismais, nos
chafarizes, nas estátuas de madeira dos Passos da Via-Sacra, em Congonhas do
Campo, onde se sobressaem os doze profetas nas escadarias que levam ao templo
do Bom Jesus de Matozinhos, esculpidos em pedra sabão e quando Antônio
Francisco Lisboa já estava bastante aleijado, com as mãos paralisadas,
afivelando nelas o cinzel para executar essa grande obra. Essas estátuas, de
enorme força expressiva, apresentam, nas mãos, os mesmos nódulos e deformações
daquelas do artista, atrofiadas e paralisadas pela lepra. Pensam alguns
críticos que tenha sido proposital, muito mais do que uma auto-observação
inconsciente, uma vez que as mãos das estátuas de Cristo dos Passos são
perfeitas. Uma delas — Passo da Flagelação — é anatomicamente perfeita,
apresentando um Cristo belíssimo, seja quanto ao rosto, como ao corpo.
Foi observando os apóstolos, que
Sérgio Milliet descobriu a alma atormentada de Aleijadinho, defendendo-o por
imperfeições apontadas nessas figuras talhadas em pedra. Entretanto, existem
provas de que como sua doença já estava adiantada, auxiliaram-no nessa tarefa
vários de seus aprendizes, aos quais não poderia ser atribuída, de certo, a
beleza e a expressão de Jesus no Horto, que chegam a comover, São Pedro
adormecido, a Virgem Maria e Madalena, apóstolos, entalhados em cedro-rosa nas
Capelas dos Passos, e que parecem ter vida.
Sua obra pode ser dividida em
duas fases - antes e após a moléstia que o deformou e aleijou, a partir dos 47
anos e que lhe valeu o nome pelo qual é mundialmente conhecido —
"Aleijadinho". Antes de adoecer, toda sua obra é predominantemente de
grande beleza plástica, mostrando o grande equilíbrio do artista. Depois da
doença — para alguns lepra, para outros sífilis ou até tromboangeíte
obliterante, que lhe deformou não só as mãos e os pés mas o rosto, que nos
últimos anos cobria com um capuz para não repugnar — sua obra assume um caráter
expressionista. Era carregado até o local do trabalho por um escravo, pois só
conseguia se arrastar ou andar de joelhos e saía à rua altas horas da noite,
sempre com o corpo e a cabeça cobertos e acompanhado por dois escravos —
ajudantes. Assim trabalhou até 1812, isto é, dois anos antes de morrer, porque
já estava, além de entrevado, cego.
Morreu abandonado e esquecido e
assim ficou durante 40 anos, quando Rodrigo Bretãs escreveu sua biografia,
publicada em 1858. Entretanto, o reconhecimento de sua genialidade deixada nas
obras em Ouro Preto, Congonhas, Mariana, Sabará, Tiradentes, São João dei Rei e
Caeté foi exaltado bem depois, isto é, na Semana de Arte Moderna, quando se
reconheceram os valores nacionais, em 1922.
Feio e repelente, o
"Aleijadinho" buscou em seus últimos anos de vida, na Bíblia, "a
consoladora recompensa de ser amado por Deus", como disse o escritor Mário
de Andrade. Deitado num estrado composto de três tábuas em cima de dois toros,
o estatuário permaneceu dois anos, com o corpo ulcerado e desfigurado,
falecendo no dia 18 de novembro de 1814, com 84 anos, segundo Bretãs.
Entretanto, no assento de óbito, no livro da matriz de Nossa Senhora da
Conceição de Antônio Dias, a idade de "Aleijadinho", ao morrer, seria
de 76 anos.
A obra deixada por
"Aleijadinho" é numerosa e barroca, mas exageram os que lhe pretendem
atribuir a autoria de quase todos os trabalhos das igrejas mineiras.
O local onde a obra do mulato é
mais extensa é sua terra natal. Ouro Preto. Ele trabalhou na famosa igreja de
São Francisco, em seu risco geral, na talha e escultura do frontispício, nos púlpitos,
no risco da tribuna do altar-mor, nos seus anjos e na talha e escultura alusiva
à ressurreição de Cristo, na escultura da capela-mor, na figura do Cordeiro
sobre o sacrário e no risco dos altares laterais. Ele é responsável por
modificações feitas na igreja Nossa Senhora do Carmo, especialmente no
frontispício, nos altares laterais de São João Batista e de Nossa Senhora da
Piedade, nas esculturas da sobreporia e do lavatório da sacristia. Seu pai,
Manuel Francisco Lisboa, foi o autor do projeto da igreja do Carmo, mas o
lavabo, tão harmonioso como o da igreja de São Francisco, é atribuído ao seu
filho Antônio. O "Aleijadinho" trabalhou, também, nas igrejas das
Mercês e dos Perdões (Mercês de Baixo). Na Mercês de Baixo é admirável o trabalho
de "Aleijadinho" nas imagens de São Raimundo Nonato e São Pedro
Nolasco, bem como no crucifixo da Sacristia. Na igreja de São Francisco de
Paula, destaca-se a imagem do Senhor da Agonia. Na Igreja de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos o "Aleijadinho" esculpiu a cabeça da estátua de
Santa Helena. O irmão de "Aleijadinho", padre Felix Antônio Lisboa, é
indicado como autor da imagem de São Benedito e Santo Antônio de Cartagerona,
ambas negras. A arte do mulato, na capela de São Miguel, está numa série de painéis
em relevo, de madeira, retratando os sofrimentos de Cristo. O artista barroco
está presente, ainda, na matriz de Nossa Senhora do Pilar, com a imagem de
Nossa Senhora do Rosário e o oratório da sacristia e existem provas de que ele
foi o autor dos riscos do altar-mor e da torre e da figura de São Pedro, na
igreja de São José dos Pardos. No chafariz do Padre Faria do Alto da Cruz,
encomendado a seu pai, há sinais evidentes de que teria sido o
"Aleijadinho", então com 19 anos, o escultor do busto de mulher em
pedra-sabão.
Esta é considerada a mais antiga
escultura de "Aleijadinho". No Museu da Inconfidência, ainda em Ouro
Preto, são conservados outros trabalhos do escultor, como o altar da Fazenda da
Serra Negra, a imagem de São Jorge, uma imagem de Cristo Flagelado, duas
imagens de Nossa Senhora e quatro figuras de presépio. Também a magnífica
estátua da Boa Samaritana, que enfeita os jardins suspensos da Mansão das
Lajes, é de autoria de Antônio Francisco.
Mariana, a 12 quilômetros de Ouro
Preto, que ostenta o título de "Monumento Nacional", guarda, também,
obras de "Aleijadinho". Apesar de não existirem documentos que o
comprovem, atribuem-se ao "Aleijadinho" o majestoso frontispício em
pedra-sabão da capela de São Francisco de Assis, onde a cabeça de três anjinhos
barrocos são encimadas por uma cruz estrelada, bem como os púlpitos. E, também,
a fonte de pedra-sabão do Palácio Episcopal de Mariana, talhada em 1799, cujo
conjunto harmonioso, em que se sobressaem o perfil judaico de Cristo e a beleza
da Samaritana, é tão espiritual que não poderia ter sido cinzelado por outras
mãos a não ser as do "Aleijadinho".
Sabará, a cidade que nasceu
graças ao arrojo de Manuel Borba Gato, que outrora vivia infestada por homens
de todas as espécies em busca do ouro que brotava do solo, e que hoje é uma
cidade tranquila rodeada de montanhas, testemunha a grande obra do artista
mineiro na igreja de Nossa Senhora do Carmo, cujo interior é deslumbrante. Lá
ele trabalhou durante 12 anos e são de sua lavra as armas e detalhes do frontispício
(uma das obras considerada entre as mais primorosas de Minas Gerais), as
imagens de São Simão Stock e de São João da Cruz, bem como os baixos relevos de
dois púlpitos e os Atlantes, com suas colunas. O grande mestre contou com
auxiliares para executar essas obras, incluindo-se o risco das grades da nave
e, também, os riscos do coro e das portas principais, cujo período coincide com
aquelas feitas em Ouro Preto — pelo menos em parte — e foi nessa cidade que o
artista, pela primeira vez, empregou a esteatita na ornamentação externa. São
Simão Stock impressiona por sua expressão e pelas mãos crispadas e apresenta o
inconfundível corte nos olhos e as unhas meio quadradas, características do
artista. Os púlpitos, com baixos-relevos, são obras primas do mulato. A
lindíssima imagem de Sant'Ana, na capela de Nossa Senhora do Pilar, em um
pequeno altar lateral, também é atribuída ao "Aleijadinho".
Na igreja de Nossa Senhora do Ô,
um templo que parece ter sido construído por chineses, ostenta uma pequenina
imagem da Virgem, cuja expressão de beatitude revela a autoria de Antônio
Francisco.
Em São João dei Rei, muitas obras
são atribuídas ao "Aleijadinho", como as das igrejas de Nossa Senhora
do Carmo e de São Francisco de Assis. O frontispício do Carmo não poderia ter
outro autor senão Antônio Francisco Lisboa. O medalhão tem os querubins do
mulato e a placidez de suas madonas.
Suas marcas de artista ficaram em
Caeté, na matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso; em Caetas Altas, na matriz de
Nossa Senhora da Conceição; em Santa Rita Durão, há igreja Nossa Senhora do
Rosário; em Morro Grande (atual Barão de Cocais), na matriz de São João dei
Rei; em Tiradentes, na matriz de Santo Antônio; em Nova Lima, na matriz de
Nossa Senhora do Pilar.
E, finalmente, em Congonhas do
Campo, onde diante do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, decorado em estilo
rococó, com relicários de "Aleijadinho", pintados por Ataíde, em seu
adro, doze profetas em tamanho natural, esculpidos em pedra-sabão azulada,
parecem estar dançando um bale, como se participassem de um ritual solene. São
estátuas que impressionam pela expressão de seus rostos, de suas roupagens
angulosas e pela delicadeza dos ornatos. Contrastando com o azul do céu, essas
imagens de pedra, no alto da colina, chegam a parecer visões apocalípticas.
Impossível julgar se é mais belo Isaías de semblante irado ou o suave Daniel,
junto a um leão veneziano. Ou então, Jonas, Oséias, Joel, Habacuque, Baruque,
Abdias, Naum, Jeremias, Ezequiel e Amós. Á maioria tem as maçãs do rosto salientes
e todos, sem exceção, olhos oblíquos. Alguns parecem terem sido esculpidos por
um artista gótico. Sobre as figuras dos Passos, em madeira, em número de 66,
distribuídas pelos diversos oratórios espalhados pelos jardins, as críticas são
de que foram esculpidas com tal precisão que parecem mover-se. Este trabalho
foi iniciado por "Aleijadinho" em 1796 e nele estão algumas de suas
obras mais perfeitas.
Antônio Francisco Lisboa, para
quem os objetos não tinham apenas forma, mas sobretudo essência, pode ser considerado
como um representante Barroco dinâmico, de uma intensa força criadora e
inovadora. Foi capaz de misturar o sagrado ao profano, o irreal ao real e de
usar estilos novos para solucionar problemas de plasticidade e, apesar de
atacado por uma terrível doença, apresentou uma arte sadia, equilibrada e
luminosa. Mestiço, pardo, olhado pela sociedade de então como um ser inferior
sem grande cultura — sabia ler, escrever e possuía alguns conhecimentos de
matemática e latim — é um verdadeiro autodidata que adquiriu noções de
arquitetura e estatuária pelas obras francesas da época, traduzidas.
Toda sua obra tinha uma marca de
brasilidade. Seus anjinhos, suas guirlandas de flores, suas fitas, adquiriram,
pelas mãos doentes, harmonia, beleza, ritmo, calor e vida.
Alegre, extrovertido, amante da
boa mesa, gostava de dançar e da companhia de mulheres. De temperamento erótico
e sensual, Antônio Francisco Lisboa teve boa saúde até os 47 anos, quando teve
um filho natural. A doença, porém, além de deformá-lo, martirizou-o até o final
de seus dias, fazendo-o desconfiar até dos elogios sobre suas obras. Maurício,
Agostinho e Januário eram seus escravos e o primeiro, entalhador, o acompanhava
sempre, adaptando o macete e o cinzel nas suas mãos deformadas. Agostinho também
era entalhador e Januário o carregava às costas.
Suportou com coragem sua doença,
cobrindo-se com uma capa de pano grosso que lhe chegava aos pés. Assim se
vestia para não ver o horror nos olhos das pessoas e, depois que não pôde mais
montar seu cavalo, passou a ser carregado pelo escravo Januário.
Passou algum tempo em sua casinha
da rua Detrás de Antônio Dias, depois de deixar a casa contígua à Capela do
Carmo, onde fiscalizava e dirigia os trabalhos dos altares sob a
responsabilidade de seu discípulo Justino Ferreira de Andrade, entre 1811 e
1812. Mas, inteiramente cego, foi acolhido pela nora, a parteira Joana Lopes,
em cuja casa faleceu em 1814, no dia 18 de novembro.
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Fonte:
MEPE - Dicionário Enciclopédico, Volume 3, por: J. Fernando. Editora FH. São Paulo, 1988, págs. 11-17.
Fonte:
MEPE - Dicionário Enciclopédico, Volume 3, por: J. Fernando. Editora FH. São Paulo, 1988, págs. 11-17.
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