Palavras ao Mar
VICENTE DE CARVALHO
Mar, belo mar
selvagem
Das nossas praias
solitárias! Tigre
A que as brisas da
terra o sono embalam,
A que o vento do
largo eriça o pelo!
Junto da espuma
com que as praias bordas,
Pelo marulho
acalentada, à sombra
Das palmeiras que
arfando se debruçam
Na beirada das
ondas — a minha alma
Abriu-se para a
vida como se abre
A flor da murta
para o sol do estio.
Quando eu nasci,
raiava
O claro mês das
garças forasteiras:
Abril, sorrindo em
flor pelos outeiros,
Nadando em luz na
oscilação das ondas,
Desenrolava a
primavera de ouro;
E as leves garças,
como olhas soltas
Num leve sopro de
aura dispersadas,
Vinham do azul do
céu turbilhonando
Pousar o voo à
tona das espumas...
É o tempo em que
adormeces
Ao sol que abrasa:
a cólera espumante,
Que estoura e
brame sacudindo os ares,
Não os sacode
mais, nem brame e estoura;
Apenas se ouve,
tímido e plangente,
O teu murmúrio; e
pelo alvor das praias,
Langue, numa
carícia de amoroso,
As largas ondas
marulhando estendes...
Ah! vem daí por
certo
A voz que escuto
em mim, trêmula e triste,
Este marulho que
me canta na alma,
E que a alma jorra
desmaiado em versos;
De ti, de ti
unicamente, aquela
Canção de amor
sentida e murmurante
Que eu vim
cantando, sem saber se a ouviam,
Pela manhã de sol
dos meus vinte anos.
Ó velho condenado ao
cárcere
das rochas que te
cingem!
Em vão levantas
para o céu distante
Os borrifos das
ondas desgrenhadas.
Debalde! O céu,
cheio de sol se é dia,
Palpitante de
estrelas quando é noite,
Paira, longínquo e
indiferente, acima
Da tua solidão,
dos teus clamores...
Condenado e
insubmisso
Como tu mesmo, eu
sou como tu mesmo
Uma alma sobre a
qual o céu resplende
— Longínquo céu — de um esplendor distante.
Debalde, ó mar que
em ondas te arrepelas,
Meu tumultuoso
coração revolto
Levanta para o céu
como borrifos,
Toda a poeira de
ouro dos meus sonhos.
Sei que a ventura
existe,
Sonho-a; sonhando
a vejo, luminosa.
Como dentro da
noite amortalhado
Vês longe o claro
bando das estrelas;
Em vão tento
alcançá-la, e as curtas asas
Da alma
entreabrindo, subo por instantes...
Ó mar! A minha
vida é como as praias,
E o sonho morre
como as ondas voltam!
Mar, belo mar
selvagem
Das nossas praias
solitárias! Tigre
A que as brisas da
terra o sono embalam,
A que o vento do
largo eriça o pelo!
Ouço-te às vezes
revoltado e brusco,
Escondido,
fantástico, atirando
Pela sombra das
noites sem estrelas
A blasfêmia
colérica das ondas...
Também eu ergo às
vezes
Imprecações,
clamores e blasfêmias
Contra essa mão
desconhecida e vaga
Que traçou meu
destino... Crime absurdo
O crime de nascer!
Foi o meu crime.
E eu expio-o
vivendo, devorado
Por esta angústia
do meu sonho inútil.
Maldita a vida que
promete e falta,
Que mostra o céu
prendendo-nos à terra,
E, dando as asas,
não permite o voo!
Ah! cavassem-te
embora
O túmulo em que
vives — entre as mesmas
Rochas nuas que os
flancos te espedaçam,
Entre as nuas
areias que te cingem...
Mas fosses morto,
morto para o sonho,
Morto para o
desejo de ar e espaço,
E não pairasse,
como um bem ausente,
Todo o infinito em
cima de teu túmulo!
Fosses tu como um
lago,
Como um lago
perdido entre as montanhas:
Por só paisagem — áridas escarpas,
Uma nesga de céu
como horizonte...
E nada mais! Nem
visses nem sentisses
Aberto sobre ti de
lado a lado
Todo o universo
deslumbrante — perto
Do teu desejo e
além do teu alcance!
Nem visses nem
sentisses
A tua solidão,
sentindo e vendo
A larga terra
engalanada em pompas
Que te provocam
para repelir-te;
Nem, buscando a
ventura que arfa em roda,
A onda elevasses
para a ver tombando,
— Beijo que se
desfaz sem ter vivido,
Triste flor que já
brota desfolhada...
Mar, belo mar
selvagem!
O olhar que te
olha só te vê rolando
A esmeralda das
ondas, debruada
Da leve fímbria de
irisada espuma...
Eu adivinho mais:
eu sinto... ou sonho
Um coração chagado
de desejos
Latejando,
batendo, restrugindo
Pelos fundos
abismos do teu peito.
Ah, se o olhar
descobrisse
Quanto esse lençol
de águas e de espumas
Cobre, oculta,
amortalha!... A alma dos homens
Apiedada entendera
os teus rugidos,
Os teus gritos de
cólera insubmissa,
Os bramidos de
angústia e de revolta
De tanto brilho
condenado à sombra,
De tanta vida
condenada à morte!
Ninguém entenda,
embora,
Esse vago clamor,
marulho ou versos,
Que sai da tua
solidão nas praias,
Que sai da minha
solidão na vida...
Que importa? Vibre
no ar, acode os ecos
E embale-nos a nós
que o murmuramos...
Versos, marulho!
Amargos confidentes
Do mesmo sonho que
sonhamos ambos!
★★★
Cismas à beira-mar
TEÓFILO DIAS
I
Mar longínquo e
profundo! A terra erguida
Lançou-te ao
largo, furibundo colo
Duros anéis
d'aspérrima cadeia,
Por que, batendo
nos fuzis de bronze,
Ao rugido das
vagas concertasses
Teu hino eterno ao
criador dos mundos.
Leão terrível, que
um Titã robusto
No seio encarcerou
de jaula estreita,
Serás eterno ali! — Raivoso embalde
As férreas grades
violento açoitas
Com a juba
hirsuta, e as crinas distendidas
Dos flancos
ofegantes! — Irritado
Da tenaz
resistência e luta insana,
Em vão colhes a
fúria inquebrantável.
E as forças
concentrando, horrendo exalas
No esforço
derradeiro o extremo alento!
Amo-te assim, oh
mar! quando iracundos,
Belicosos,
galgando o dorso impávido
Dos marinhos
corcéis, arrancam, pula,
Teus longos esquadrões
de bravas ondas
Dum polo e doutro polo,
erguendo as frontes
De úmidas, brancas
flores rociadas!
Quando sentindo,
ao recuar das águas,
Nuas as negras,
fúnebres cavernas,
Com medonho
estridor nas trevas uiva
abismo tenebroso! quando voam
Sobre as ondas os
gênios invisíveis,
As bandeiras de
fogo desfraldando
Aos vendavais
revoltos, ou mordendo
Com a boca
cintilante as ancas lúbricas
Dos marciais
ginetes, que insofridos
Franjam, doiram de
rápidas fagulhas
Os rutilantes
freios encantados!
Quando, do vítreo
olhar e largas ventas
Lava e súlfur
soprando em bastos rolos,
E as estrondosas
patas retumbando
No rouco chão dos
polos acendidos,
Ruem teus
esquadrões pujantes — contra
A indômita
barreira e brônzeo círculo!
Ou quando, roto o
ar aos choques rudes,
Os orbes estalados
retinindo
na imensidade
pávida reboam,
Prolongando o
fragor nos ecos surdos!
II
Portentoso oceano!
Mar sonoro
De vagas
turbulentas que murmuram,
Do fugitivo céu
beijando as nuvens!
Que mão divina
burilou-te à face
Da criação, relevo
do infinito?
Meus olhos quando
atônitos alongo
No azul sombrio
teu, e os meus ouvidos
Teu cântico
ruidoso atentos sorvem,
Não sei que sacro
horror minha alma embebe!
Na tua placidez se
me afigura
Os olhares de Deus
fulgirem rubros
E a voz de Jeová
gemer profunda.
Simpática atração
me arrouba inteiro
Aos combros de
esmeraldas que balouças
No colo
intumescido... Um vago anelo,
Mais forte agora,
agora mais ardente,
Se acorda no meu
ser — de além contigo
Subir, subir
onde o rumor dos ventos
Com as duras asas
não te errice as crinas,
Onde mal chega o
pensamento, e o raio,
Perdendo a força,
não desperta um eco,
E expira como um
som de último arranco
Num peito
moribundo! Ah! quem me dera
Transformar-se
minha alma nessa vagas
Que no teu ventre mádidas
se empolam!
Então, senhor do
espaço, a sós comigo,
E orgulhoso de
mim, varrendo as nuvens,
E varejando a
abóbada sem termos,
Cônscio de meu
valor, louco de raiva,
Atordoando os céus
espavoridos,
Fora insensato
abalroar os mundos
Que neles se
penduram! Fora ousado
Mover no
firmamento as nebulosas
E a cortina
cerúlea, desdobradas
Como um manto de
rei sobre o meu dorso!
Eu saciara de
infinito — a sede
Que todo me devora
- no áureo pranto
Que as estrelas,
abrindo os louros cílios,
Por claras noites, sem luar, sem nuvens,
Choram no éter
azul! Eu te acendera
Nos raios das
tormentas invencíveis
Que fervem-me no
seio! e grande, e altivo,
Ao livre espaço o
cântico dos livres
Mandara além do
páramo — onde voa
A poeira dos
astros desparzida!
★★★
A Noite ante o Mar
LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)
Uma alegria em
tudo se revela:
Ri cada estrela,
que na vaga ondeia,
Quando ela à noite
brinca e se recreia,
Ante o mar, grande
em calma, ou na procela.
E enquanto a lua
aberta, como umbela
Sobre uma deusa,
que uma nuvem creia,
Pequenos sóis
erguiam-se da areia
A cada passo dos
seus pés sobre ela.
Helena sabe o que
é a natureza;
Mas sua alma de um
quadro tal surpresa,
Uma estranha
emoção em si continha;
E era ouvi-la nuns
sons de surda prece,
Como em torre, em
cujo alto cimo houvesse
Rumor de um ninho,
a urdi-lo uma andorinha...
★★★
No Mar
EDUARDO DE FREITAS
“Távola do bom humor, Sonetos
maranhenses” (1923)
Voa, suspiro meu,
transpõe os mares,
Chega de Lísia á
plaga afortunada,
De Natércia gentil
chega à morada,
Interprete vai ser
dos meus pesares.
Quando nas níveas
faces tu pousares,
Seja primeiro a
boca nacarada,
Dize depois, quão
triste, amargurada
A vida passo
entregue a mil azares.
Ah! não escondas
quanto no peito
Lavra com força
atroz melancolia,
Da saudade cruel
pungente efeito!
Dize, que beijos
mil Jósimo envia,
E o protesto de
amor outrora feito,
Lhe renova em
louvor deste almo dia.
★★★
Ocaso no Mar
CRUZ E SOUZA
“Missal” (1893)
Num
fulgor d’ouro velho o sol tranquilamente desce para o ocaso, no limite extremo
do mar, d’águas calmas, serenas, dum espesso verde pesado, glauco, num tom de
bronze.
No céu,
de um desmaiado azul, ainda claro, há uma doce suavidade astral e religiosa.
Às
derradeiras cintilações douradas do nobre astro do dia, os navios, com o
maravilhoso aspecto das mastreações, na quietação das ondas, parecem estar em
êxtase na tarde.
Num
esmalte de gravura, os mastros, com as vergas altas lembrando, na distância,
esguios caracteres de música, pautam o fundo do horizonte límpido.
Os
navios, assim armados, com a mastreação, as vergas dispostas por essa forma,
estão como a fazer-se de vela, prontos a arrancar do porto.
Um ritmo
indefinível, como a errante etereal expressão das forças originais e virgens,
inefavelmente desce, na tarde que finda, por entre a nitidez já indecisa dos
mastros…
Em pouco
as sombras densas envolvem gradativamente o horizonte em torno, a vastidão das
vagas.
Começa,
então, no alto e profundo firmamento silencioso, o brilho frio e fino, aristocrático
das estrelas.
Surgindo
através de tufos escuros de folhagem, além, nos cimos montanhosos, uma lua
amarela, de face chara de chim, verte um óleo luminoso e dormente em toda a
amplidão da paisagem.
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