7/04/2018

Temas Poéticos: LUA - II


Fantasias do luar

VICENTE DE CARVALHO

I
Entre nuvens esgarçadas
No céu pedrento flutua
A triste, a pálida lua
Das baladas.

Frouxo luar sugestivo
Contagia a natureza
Como de um ar de tristeza
Sem motivo.

Tem vagos tons de miragem,
De um desenho sem sentido,
Da paisagem.

A apagada fantasia
Do colorido - parece
De um pintor que padecesse
De miopia.

Tudo, tudo quanto existe,
Extravaga, e se afigura
Tomado de uma loucura
Mansa e triste.

O longo perfil do Monte
- Como um rio de água verde-
Corre ondulado, e se perde
No horizonte.

E sobre essa imaginária
Turva corrente, projeta
A alva igreja a sua seta
Solitária.

Assim, de um ermo barranco
A garça alonga no rio
O seu vulto, muito branco,
Muito esguio.

Sonha, imóvel... E acredito
Que de súbito desperte
Aquele fantasma inerte
De granito.

Dorme talvez... Qualquer coisa
No seu sono se disfarça
De asa encolhida de garça
Que repousa.

E eu cuido vê-la a cada hora,
Animar-se; e de repente
Subir sossegadamente
Céu afora...

II
Há um lirismo disperso
Nos ares... O próprio vento,
Esse bronco, esse praguento,
Fala em verso:

Voz forte, bruscas maneiras,
Pela boca pondo os bofes,
O vento improvisa estrofes
Condoreiras.

Beijam-se as frondes, arrulam,
Trocam afagos, promessas...
E as árvores secas, essas
Gesticulam.

Gesticulam, como espectros,
No vácuo, tentando abraços
Com seus descarnados braços
De dez metros.

Algum trovador de esquina
Canta a paixão que o devora;
E a sua voz geme, chora,
Desafina.

Ao longe um eco repete
O canto, frase por frase,
Em tom abrandado, quase
Sem falsete.

Tem o aspecto apalaçado
Da pedra cara e maciça
O muro, em simples caliça,
De um sobrado.

Nem castelã falta a esse
Castelo: na luz da lua,
Branca, airosa, seminua,
Resplandece.

Numa pose pitoresca
De romance ou de aquarela,
A burguesa que à janela
Goza a fresca.

III
O olhar, o ouvido, a alma inteira
Vê, ouve, acredita, sente
Quanto sonhe, quanto invente,
Quanto queira,

Quando, ó lua das baladas,
Forjas visões indistintas
Com esse aguado das tintas
Estragadas.

★★★

Luar de verão

ÁLVARES DE AZEVEDO

O que vês, trovador? - Eu vejo a lua
Que sem lavar a face ali passeia;
No azul do firmamento inda é mais pálida
Que em cinzas do fogão uma candeia.

O que vês, trovador? - No esguio tronco
Vejo erguer-se o chinó de uma nogueira...
Além se encontra a luz sobre um rochedo
Tão liso como um pau de cabeleira.

Nas praias lisas a maré enchente
S'espraia cintilante d'ardentia...
Em vez de aromas as doiradas ondas
Respiram efluviosa maresia!

O que vês, trovador? - No céu formoso
Ao sopro dos favônios feiticeiros
Eu vejo - e tremo de paixão ao vê-las -
As nuvens a dormir, como carneiros.

E vejo além, na sombra do horizonte,
Como viúva moça envolta em luto,
Brilhando em nuvem negra estrela viva
Como na treva a ponta de um charuto.

Teu romantismo bebo, ó minha lua,
A teus raios divinos me abandono,
Torno-me vaporoso... e só de ver-te
Eu sinto os lábios meus se abrirem de sono.

★★★

Fantasia de luar
(Ao Alberto)

LEONOR POSADA
"Plumas e Espinhos" (1926)

Jardineiro cuidoso e desvelado,
o luar,
mal cai a Noite, pelo céu lavrado,
se põe a trabalhar.

Montões de nevoa empilha nos canteiros,
onde, a flux,
rebentarão dos brancos jasmineiros
os cálices de luz.

Da Via-Láctea, as nebulosas célicas
de milhares de estrelas,
em açucenas lívidas e angélicas
procura convertê-las.

Faz dos planetas nobres, senhoriais,
não macilentos círios,
mas alvíssimos, puros pedestais
de florações de lírios!

Forra os caminhos de malacacheta
o luar!
e vai por eles, qual anacoreta;
lentamente, a rezar...

Abre o seio da Lua imensa e eólia,
esplendorosamente,
como si fosse lúcida magnólia,
ou qual tulipa ardente!

Cuidoso, atento, com o maior carinho,
cobre as velhas estradas
com a brancura sem par do branco linho
das noites consteladas!

E faz do espaço — aranha peregrina —
o brilhante aranhol,
cuja rede finíssima, argentina,
desata o rouxinol.

E, dos jardins dos céus, tão bem cuidados,
pelo luar,
descem à Terra aromas estrelados
que se desfazem no ar...

Vem silenciosamente, docemente,
pelas
résteas de luz, no jorro ardente
das tímidas estrelas...

Jardineiro cuidoso e desvelado,
o luar,
mal cai a Noite, lá do céu lavrado,
manda pelo ar
á Terra, por quem vive enamorado,
em chuva singular,
alva e brilhante, como os alabastros,
todo o Sonho de amor que, rejeitado,
aos céus voltou e refloriu nos astros!.

★★★

À espera do luar

RONALD DE CARVALHO
"Poemas e Sonetos" (1919)

Do balcão de ouro, que um rosal incensa,
Pelas árvores calmas, orvalhadas,
Teus olhos, cheios de saudade intensa,
Ainda procuram fôrmas apagadas.

Dentro da sombra veludosa e densa,
Os chorões se debruçam nas estradas;
E pela noite azul, serena, imensa,
As horas tombam, lentas, sossegadas.

Enquanto o céu se enche de pedrarias,
Soluçam nos jardins as águas frias
De um tanque, onde há tritões de úmidos flancos.

E, ao fundo, longe, antes que a lua rompa,
Ao som da avena rústica e da trompa,
Descem dos montes os rebanhos brancos.

★★★

Banho ao luar

LUÍS DELFINO
“Algas e Musgos” (1927)

Foi uma noite à límpida lagoa,
Que para recebê-la se enfeitara:
Não é que o Olimpo inda hoje se esboroa,
E dele cai um deus, que lá ficara?

E ao saber que ela iria ao banho, voa,
E forra o lago, e acende-o, como uma ara;
Azuis lá dentro, e os astros arranjara,
E clarões moles, que por selvas coa.

Ela nas margens deixa a roupa: nua,
Como quem entra numa festa lauta,
Lasciva, entre o tinir dos sóis, flutua,

Com um e outro correndo inerme e incauta;
Cai-lhe aos pés Pã, lacera-a a unha da lua,
E há uns ais pelo céu de sons de flauta...


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