A Cristo
GUILHERME DE AZEVEDO
“A Alma Nova” (1874)
Precisamos Jesus, se não Te sentes velho,
Que cinjas
novamente o resplendor da luz
E venhas explicar
a letra do evangelho
A muitos que hoje
vês prostrados ante a cruz!
Ainda não cessou,
de todo, essa contenda
Que um dia, há
muito já, tentaste debelar:
E aqueles que são
bons e adoram Tua lenda
Desejavam também
ouvir-Te hoje falar.
Apenas ressoasse o
Teu verbo indignado,
O látego febril
das grandes corrupções,
Iria atrás de Ti
um mundo revoltado
Que sente na
consciência a luz das redenções.
E embora não
houvesse, aqui, outra alma gêmea
Da Tua, e tão
ungida em bálsamos dos céus,
Havias de
encontrar essa alma de boêmia
Que sonha uma
justiça e sente em si um Deus!
Mas não, não
voltes cá: Teu corpo combalido
Não pode suportar
os gelos da manhã.
Precisavas de pão,
de abrigo e de vestido
E a vida aqui é
cara e longo o macadam!
Terias de
encontrar, decerto, mil estorvos
No mundo
revolvido, e escuta-me Jesus:
Se não fosses,
enfim, comido pelos corvos
Talvez Te
fuzilasse um cura Santa-Cruz!
Serias apontado a
dedo, muitas vezes,
Como um simples
bandido, um agitador feroz,
E haviam de esconder
seus ouros os burgueses
Apenas ressoasse,
ao longe, a Tua voz!
Depois vinhas
achar a par do proletário,
Ao pé do que se
inunda em bagas de suor,
Aquele velho
Pedro, agora milionário,
E triste por
pensar que já esteve melhor!
E perto do ócio
vil à sombra do qual medra
O egoísmo feroz
que extingue o coração,
Lutando todo o dia
o britador de pedra
A quem à noite
espera, em casa, um negro pão;
E uns pequenos sem
cor; talvez cheios de fome,
Com pouca luz no
olhar; atrofiados, nus;
Abrindo os olhos
muito à côdea que ele come
E indo-se deitar
sem roupas e sem luz!
Assim deixa-Te
estar. O Teu cadáver triste
Recende uma
fragrância etérea e divinal,
Enquanto o mundo
segue e vai de lança em riste
Sem tréguas
combatendo as legiões do Mal!
Tu foste o
paladino, o trovador sagrado,
Que falaste do
amor, da paz e do perdão,
E o ferro que
varou Teu corpo lado a lado
Contudo inda reluz
altivo em muita mão!
Nós, hoje, quando
em luta erguemos sobre a liça
O gládio vingador
das opressões cruéis,
Soltamos, num
sorriso, o nome da Justiça,
E há quem saiba
morrer sem bênçãos nem lauréis!
Descansa pois
Jesus! Bem basta que Tu sintas,
Nesse velho
sepulcro, o imenso vozear
Dos mineiros sem
luz, das legiões famintas,
Que nunca, um dia
só, deixaram de lutar,
Mas que hão de
enfim vencer, porque a suprema essência
A jorros cai do
céu nas mãos dos Prometeus,
E tanto vai
subindo a vaga da consciência
Que um dia há de
abismar-se em nós o próprio Deus!
Eu tive um sonho
estranho: ouvi que vou dizê-lo.
Era em praia
deserta, em frente a um longo mar:
Nos céus havia a
névoa, a mãe do Pesadelo,
E o vago, o
incerto, o informe em tudo a oscilar!
De súbito surgiu,
na praia, uma criança
De olhar profundo
e bom, de angélica expressão,
E o mar contemplou
com tanta confiança
Que nem que visse
nele o berço dum irmão!
Mas a vaga
subindo, em cada extremo arranco
Levando ia consigo
aquela flor dos céus!
E em breve só
boiava um tênue vulto branco
No mar onde flutua
o espírito de Deus!
Mais tarde à
beira-mar chegava a pura imagem
Da mais casta
mulher que em vida pude ver.
Detinha-se
distante: — a espuma da voragem
Só meia extenuada
aos pés lhe ia morrer!
O imenso mar,
porém, crescia a cada instante
Mais turvo e mais
veloz! Depois... Não quis ver mais.
Ergui-me e caminhei
de vale em vale errante
Pensando
tristemente em coisas ideais!
Ao longe, muito
além, na serra desviada
De súbito
encontrei — ó estranha aparição!
Uma pobre velhita
enferma e desolada
Trazendo já no
olhar a grande cerração!
Que ideia me
assaltou não sei dizê-lo agora.
Aonde iria o
espectro, aquela sombra vã?
Iria aonde vai o
que ontem foi aurora
E aonde irão
também as rosas de amanhã?...
Dos meus instantes
bons, ó lúcida quimera,
Bem vês que os
sonhos maus são fáceis de esquecer!
Que importa a
grande noite em plena primavera,
Que importa o que
tu foste, o que és, e o que hás de ser!!
★★★
A Jesus Cristo, Nosso Senhor
GREGÓRIO DE MATOS
Pequei, Senhor;
mas não porque hei pecado,
Da vossa alta
clemência me despido;
Porque quanto mais
tenho delinquido,
Vos tenho a
perdoar mais empenhado.
Se basta a vos
irar tanto pecado,
A abrandar-vos
sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa,
que vos há ofendido,
Vos tem para o
perdão lisonjeado.
Se uma ovelha
perdida e já cobrada
Glória tal e
prazer tão repentino
Vos deu, como
afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a
ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não
queirais, pastor divino,
Perder na vossa
ovelha a vossa glória.
★★★
Buscando a Cristo
GREGÓRIO DE MATOS
A vós correndo
vou, braços sagrados,
Nessa cruz
sacrossanta descobertos
Que, para
receber-me, estais abertos,
E, por não
castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos
olhos, eclipsados
De tanto sangue e
lágrimas cobertos,
Pois, para
perdoar-me, estais despertos,
E, por não
condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados
pés, por não deixar-me,
A vós, sangue
vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça
baixa, p’ra chamar-me,
A vós, lado
patente, quero unir-me,
A vós, cravos
preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido,
atado e firme.
★★★
Cristo de bronze
CRUZ E SOUZA
(1893)
Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais,
serenos, luminosos,
Ensanguentados
Cristos dolorosos
Cuja cabeça a dor
e a Luz retrata.
Ó Cristos de
altivez intemerata,
Ó Cristos de
metais estrepitosos
Que gritam como os
tigres venenosos
Do desejo carnal
que enerva e mata.
Cristos de pedra,
de madeira e barro...
Ó Cristo humano,
estético, bizarro,
Amortalhado nas
fatais injurias...
Na rija cruz
aspérrima pregado
Canta o Cristo de
bronze do Pecado,
Ri o Cristo de
bronze das luxúrias!...
★★★
Cristo numa medalha
LUÍS DELFINO
"Algas e Musgos" (1927)
Foi com amor igual
ao do que inda arde e ateia
Ximenes, Becerril,
Arfe, que estoutro inventa,
Com desejo
infinito, e paciência lenta,
Esmaltar um metal,
a que um Cristo encadeia;
De um fundo flavo
e quente a cabeça rebenta,
Como uma flor que
inclina o sopro de uma ideia,
E o Salvador do
mundo, o filho da Judeia,
‘Stá na criança
já, que o mundo à mão sustenta.
O seu olhar é
doce, é calmo, é transparente;
Subir da alma e
transpor céus em fora se sente;
Há sobre tudo um
pó de amortecida luz.
Como de uma
caçoula, edênico perfume
Sai do manto, que
faz já dele estranho nume,
E um nimbo de ouro
à fronte encima este Jesus.
★★★
Os dois Cristos
(A Assis Brasil)
AUGUSTO DE LIMA
“Contemporâneas” (1887)
O velho Satanás
soturno divagava
sob o imenso dócil
do negro firmamento,
e, aos poucos, um
rumor confuso lhe chegava
destas vozes
fatais trazidas pelo vento:
“Quando cismavas
triste e só no Horto,
entre as sagradas
árvores sombrias,
na treva hostil de
um céu turvado e morto,
colada a fronte
ardente às pedras frias;
Ó Cristo, até de
ti mesmo descreste,
e pensando na
cruz, da angústia escrava,
tua cabeça
fúlgida, celeste,
longas gotas de
sangue porejava...
Não sei que voz
oculta e misteriosa
da treva te
bradava com furor:
‘Ó Nazareno, ó
vítima ardilosa,
tu não és Deus, tu
és um impostor!’”
Uma agonia lenta
então tomou-te,
jorrava o rubro
sangue cada artéria,
enquanto teus
amigos sob a noite
ressonavam na
inércia da matéria.
***
E porque
consumaste o sacrifício,
do cálice místico
esgotando o fel
inutilmente no
fatal suplício,
ó moribundo filho
de Israel?
E o que ficou do códex
peregrino,
do Testamento que
legaste ao Homem?
– Folhas como as
do livro do Destino,
que aos ventos do
futuro se consomem.
A grande cruz, a
ensanguentada vide
do vinho precioso,
hoje se fez
do clero torpe um
sórdido cabide,
em que pendura a
própria hediondez.
Embora o Homem
busque atrás da escura
batina a luz que
no Calvário exangue
acendeste: na
febre que o tortura,
em vez de achar a
luz, encontra o sangue.
E, quando no
passado, o olhar atento,
busca fitar-te
sobre a cruz sagrada,
entre ele e ti se
eleva o atroz, sangrento
fantasma secular
de Torquemada.
Onde o poder
divino que dizias
ter nas mãos,
quando em bálsamos supremos,
os teus rudes
apóstolos ungias?
– Oh! descremos de
ti, Cristo, descremos!
Caíste, como cai
qualquer na luta;
profeta, o verbo
teu irmão mais ecoa,
mártir, a tua
túnica impoluta,
a ventania do
porvir rasgou-a!
A limpidez azul da
antiga crença,
em que brilhava o
místico Tabor,
toldou-a agora uma
caligem densa:
a fumaça da
Indústria e do Vapor.
Rompeu-se o véu do
Templo, onde mistérios
celebravam os
rígidos levitas,
amalgamando ao pó
dos cemitérios
as lágrimas das
dores infinitas.
De teu trágico
inferno a densa lava
a rebramir no
abismo hórrido, espesso,
ó malogrado herói,
já não bastava
pra aquecer as
caldeiras do Progresso.
Tua missão está
completa. Agora
podes volver à
solidão infinda;
mas vai depressa,
porque vem a aurora,
e te pode
encontrar aqui ainda.
***
E tu, homem,
eterno caminheiro
da via dolorosa da
Verdade,
é tempo de
elevares, sobranceiro,
a grande luz de
tua majestade.
Não te vença o
punhal que dilacera
esse peito, em que
a dor blasfema e chora:
é no bojo da Noite
que se opera
a luminosa
gestação da aurora!
Não envergues a
fronte augusta e casta
ao sofrimento
rude, à mágoa funda:
a dor, que hoje te
corta a entranha vasta,
é como a dor do
parto, é dor fecunda.
Abisma o olhar em
tua consciência,
e encontrarás as
pérolas do Bem;
trabalha, colhe a
esplêndida opulência,
que as minas de
teu cérebro contém.
Da antiga
divindade o grande assento
ruiu de há muito
às lúcidas procelas.
Não procures mais
Deus no firmamento:
o firmamento só
contém estrelas!
E Satanás caiu num
meditar profundo;
e cruzando no
peito as mãos, cheio de dor,
prostrou-se, e
ouviu-se, então o tentador do mundo
num soluço gemer:
– Perdoa-me, Senhor!
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