7/04/2018

Temas Poéticos: IDADE - I


Aos anos de uma menina

SOUSA CALDAS
(Século XVIII)

Não creias, gentil Márcia, na pintura
Com que malignos gênios figuraram
O veloz Tempo, quando a mão lhe armara
De cruenta, implacável foice dura.

Inimigo fatal da formosura,
Com fantásticas cores o pintaram;
E nem ser ele, ao menos, acenaram
Quem desenvolve as graças da figura.

Qual cerrado botão de fresca rosa,
Que o ligeiro volver de um novo dia
Abre, e transforma em flor a mais mimosa:

Tal, a infantil beleza, inerte e fria,
De ano em ano se torna mais formosa,
E novo brilho, novas graças cria.

★★★

Aniversário

FERNANDO PESSOA

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

★★★

Teus anos

AUTA DE SOUZA
“Poesias”

Teus anos amanhã. Fui ver, contente,
(E como procurei por toda parte!)
Um mimo que te desse... e achei, somente,
Meu triste coração, mimo sem arte.

Mas... o que dirás tu quando, de leve,
Bem cedinho batendo à tua porta,
Vires meu coração frio, de neve,
Pobre flor sem perfume e quase morta?

Manda-o entrar... E diz, ó doce amada!
Que ele se aqueça d’esse olhar no brilho...
Vai de tão longe te pedir pousada:
Deixa-o ficar no berço de teu filho...

★★★

No dia dos meus anos

MARQUESA DE ALORNA
“Poemas de Alcipe” (1927)

Dia cruel, no qual ao bem resiste
A memória de uns anos desgraçados,
Ou brilha vencedor de injustos fados,
Ou não tomes a vir como hoje, triste.

Porém que digo? céus! Em que consiste
O emprego dos meus votos inflamados,
Se dos terrenos bens tão desejados,
Além da morte, nem um só persiste?

Dure pois muito embora esta violência,
Que o peito martiriza sem piedade,
Que eu assaz me contento da inocência.

E para a verdadeira utilidade,
Receberei, entregue à paciência,
Saudáveis lições na adversidade.

Eu cantarei um dia da tristeza
Por uns termos tão temos e saudosos,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza,
Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.

Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão de chorar de amor enredos.

Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, amor, os teus pérfidos segredos,
Que eu derramo os meus ais inutilmente.

Como, importuno amor, ainda procuras
Misturar-te entre as minhas agonias?
Vai, cruel, para onde as alegrias
No seio da Fortuna estão seguras;

Onde em taças douradas, formosuras,
Esgotando o prazer, passam seus dias;
Onde acariciado tu serias
Por quem nem sabe o nome às desventuras.

Ao som de harmoniosos instrumentos,
No peito, que é de pérolas ornado,
Criarás mil suaves sentimentos;

Mas em mim, que sou vítima do fado?!...
Cercada dos mais ásperos tormentos,
Achas uma alma só — e um só cuidado.

Bem pode sobre o cândido Oriente
Soltar Febo os cabelos douradores,
Que quem vive como eu, vê sempre as flores
Tintas da negra cor do mal que sente.

Para mim não há prado florescente,
Tudo murcham meus ais, meus dissabores,
Nem me tornam cantigas dos Pastores
Jamais serena a pensativa frente.

Se triste vou às danças, triste venho;
E quando a noite estende úmido manto,
A segurar o sono em vão me empenho.

Não toco a flauta, versos já não canto;
Cercada de pesar, mais bem não tenho
Que um triste desafogo em terno pranto.

Vai a fresca manhã alvorecendo,
Vão os bosques as aves acordando,
Vai-se o Sol mansamente levantando
E o mundo à vista dele renascendo.

Veio a noite os objetos desfazendo
E nas sombras foi todos sepultando;
Eu, desperta, o meu fado lamentando.
Fui coa ausência da luz esmorecendo.

Neste espaço, em que dorme a Natureza.
Por que vigio assim tão cruelmente?
Por que me abafa ó peso da tristeza?

Ah, que as mágoas que sofre o descontente,
As mais delas são faltas de firmeza.
Torna a alentar-te, ó Sol resplandecente!

★★★

Minha idade

AFONSO CELSO
"Poesias escolhidas" (1902)

Muita gente, por acinte,
Não diz quantos anos tem:
Eu, nuns dias, tenho vinte,
Noutras dias, tenho cem.

Remoçam-me alguns carinhos;
Fico melhor do que Fausto,
Mas, logo após, volvo, exausto,
Ao tempo dos Afonsinhos.

Ao pé dos seres que eu amo,
Eis-me rapaz sem igual;
Junto dos outros, proclamo
Matusalém meu rival.

Jovem não raro, amanheço,
Repleto de ousados planos,
E, á tarde, passaram anos,
Gasto me sinto; — envelheço.

Que força, que ardor, agora!
Que pulsação juvenil!
Que desmaio, sem demora,
Que abatimento senil!

Minh'alma tem primaveras,
Berços e ocasos; — lugares
Com ciprestes seculares;
Auroras e extintas eras.

Da idade a ninguém derive
Nem tristeza, nem prazer;
A verdade é que quem vive
Sempre está para morrer.

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