Sagres
OLAVO BILAC
“Panóplias e outros poemas” (1888)
"Acreditavam os antigos celtas, do
Guadiana espalhados até a costa, que, no templo circular do Promontório Sacro,
se reuniam à noite os deuses, em misteriosas conversas com esse mar cheio de
enganos e tentações."
Oliveira Martins.
— História de Portugal.
Em Sagres. Ao
tufão, que se desencadeia,
A água negra, em
cachões, se precipita, a uivar;
Retorcem-se
gemendo os zimbros sobre a areia.
E, impassível,
opondo ao mar o vulto enorme,
Sob as trevas do
céu, pelas trevas do mar,
Berço de um mundo
novo, o promontório dorme.
Só, na trágica
noite e no sítio medonho,
Inquieto como o
mar sentindo o coração,
Mais largo do que
o mar sentindo o próprio sonho,
— Só, aferrando os
pés sobre um penhasco a pique,
Sorvendo a
ventania e espiando a escuridão,
Queda, como um
fantasma, o Infante Dom Henrique...
Casto, fugindo o
amor, atravessa a existência
Imune de paixões,
sem um grito sequer
Na carne
adormecida em plena adolescência;
E nunca aproximou
da face envelhecida
O nectário da
flor, a boca da mulher,
Nada do que
perfuma o deserto da vida.
Forte, em Ceuta,
ao clamor dos pífanos de guerra,
Entre as mesnadas
(quando a matança sem dó
Dizimava a moirama
e estremecia a terra),
Viram-no levantar,
imortal e brilhante,
Entre os raios do
sol, entre as nuvens do pó,
A alma de Portugal
no aceiro do montante.
Em Tanger, na
jornada atroz do desbarato,
— Duro, ensopando
os pés em sangue português,
Empedrado na teima
e no orgulho insensato,
Calmo, na confusão
do horrendo desenlace,
— Vira partir o
irmão para as prisões de Fez,
Sem um tremor na
voz, sem um tremor na face.
É que o Sonho lhe
traz dentro de um pensamento
A alma toda
cativa. A alma de um sonhador
Guarda em si mesma
a terra, o mar, o firmamento,
E, cerrada de todo
à inspiração de fora,
Vive como um
vulcão, cujo fogo interior
A si mesmo imortal
se nutre e se devora.
"Terras da
Fantasia! Ilhas Afortunadas,
Virgens, sob a
meiguice e a limpidez do céu,
Como ninfas, à
flor das águas remansadas!
— Pondo o rumo das
naus contra a noite horrorosa
Quem sondara esse
abismo e rompera esse véu,
Ó sonho de Platão,
Atlântida formosa!
Mar tenebroso!
aqui recebes, porventura,
A síncope da vida,
a agonia da luz?
Começa o Caos
aqui, na orla da praia escura?
E a mortalha do
mundo a bruma que te veste?
Mas não! por trás
da bruma, erguendo ao sol a Cruz,
Vós sorrides ao
sol, Terras Cristãs do Preste!
Promontório
Sagrado! Aos teus pés, amoroso,
Chora o monstro...
Aos teus pés, todo o grande poder,
Toda a força se
esvai do oceano Tenebroso...
Que ansiedade lhe
agita os flancos? Que segredo,
Que palavras
confia essa boca, a gemer,
Entre beijos de
espuma, à algidez do rochedo?
Que montanhas
mordeu, no seu furor sagrado?
Que rios, através
de selvas e areais,
Vieram nele
encontrar um túmulo ignorado?
De onde vem ele?
ao sol de que remotas plagas
Borbulhou e
dormiu? que cidades reais
Embalou no regaço
azul de suas vagas?
Se tudo é morte
além, — em que deserto horrendo,
Em que ninho de
treva os astros vão dormir?
Em que solidão o
sol sepulta-se, morrendo?
Se tudo é morte
além, por que, a sofrer sem calma,
Erguendo os braços
no ar, havemos de sentir
Estas aspirações,
como asas dentro da alma?"
...............................................................
E, torturado e só,
sobre o penhasco a pique,
Com os olhos
febris furando a escuridão,
Queda como um
fantasma o Infante Dom Henrique...
Entre os zimbros e
a névoa, entre o vento e a salsugem,
A voz
incompreendida, a voz da Tentação
Canta ao surdo
bater dos macaréus que rugem:
Ao largo, Ousado!
o segredo
Espera, com
ansiedade,
Alguém privado de
medo
E provido de
vontade...
Verás destes mares
largos
Dissipar-se a
cerração!
Aguça os teus
olhos, Argos:
Tomará corpo a
visão...
Sonha, afastado da
guerra,
De tudo! — em tua
fraqueza,
Tu, dessa ponta de
terra,
Dominas a
natureza!
Na escuridão que
te cinge,
Édipo! com
altivez,
No olhar da
líquida esfinge
O olhar mergulhas,
e lês...
Tu que, casto,
entre os teus sábios,
Murchando a flor
dos teus dias,
Sobre mapas e
astrolábios
Encaneces e
porfias;
Tu, buscando o
oceano infindo,
Tu, apartado dos
teus,
(Para, dos homens
fugindo,
Ficar mais perto
de Deus);
Tu, no agro templo
de Sagres,
Ninho das naves
esbeltas,
Reproduzes os
milagres
Da idade escura
dos celtas:
Vê como a noite
está cheia
De vagas sombras...
Aqui,
Deuses pisaram a
areia,
Hoje pisada por
ti.
E, como eles
poderoso,
Tu, mortal, tu,
pequenino,
Vences o mar
Tenebroso,
Ficas senhor do
Destino!
Já, enfunadas as
velas,
Como asas a
palpitar,
Espalham-se as
caravelas
Aves tontas pelo
mar...
Nessas tábuas
oscilantes,
Sob essas asas
abertas,
A alma dos teus
navegantes
Povoa as águas
desertas.
Já, do fundo mar
vário,
Surgem as ilhas,
assim
Como as contas de
um rosário
Soltas nas águas
sem fim.
Já, como cestas de
flores,
Que o mar de leve
balança,
Abrem-se ao sol os
Açores
Verdes, da cor da
esperança.
Vencida a ponta
encantada
Do Bojador, teus
heróis
Pisam a África,
abrasada
Pela inclemência
dos sóis.
Não basta! Avante!
Tu, morto
Em breve, tu,
recolhido
Em calma, ao último
porto,
— Porto da paz e
do olvido,
Não verás, com o
olhar em chama,
Abrir-se, no
oceano azul,
O voo das naus do
Gama,
De rostros feitos
ao sul...
Que importa? Vivo
e ofegando
No ofego das velas
soltas,
Teu sonho estará
cantando
À flor das águas
revoltas.
Vencido, o peito
arquejante.
Levantado em
furacões,
Cheia a boca e
regougante
De escuma e de
imprecações,
Rasgando, em
fúria, às unhadas
O peito, e contra
os escolhos
Golfando, em
flamas iradas,
Os relâmpagos dos
olhos,
Louco, ululante, e
impotente
Como um verme, —
Adamastor
Verá pela tua
gente
Galgado o cabo do
Horror!
Como o reflexo de
um astro,
Cintila e a frota
abençoa
No tope de cada
mastro
O Santelmo de
Lisboa.
E alta já, de
Moçambique
A Calicute, a
brilhar,
Olha, Infante Dom
Henrique!
— Passou a Esfera
Armilar...
Fartar! como um
santuário
Zeloso de seu
tesouro,
Que, ao toque de
um temerário,
Largas abre as
portas de ouro,
— Eis as terras
feiticeiras
Abertas... Da água
através,
Deslizem fustas
ligeiras,
Corram ávidas
galés!
Aí vão, oprimindo
o oceano,
Toda a prata que
fascina,
Todo o marfim
africano,
Todas as sedas da
China...
Fartar!... Do seio
fecundo
Do Oriente
abrasado em luz,
Derramem-se sobre
o mundo
As pedrarias de
Ormuz!
Sonha, — afastado
da guerra,
Infante!... Em tua
fraqueza,
Tu, dessa ponta de
terra,
Dominas a
natureza!...
Longa e cálida,
assim, fala a voz da Sereia...
Longe, um roxo
clarão rompe o noturno véu.
Doce agora,
ameigando os zimbros sobre a areia,
Passa o vento.
Sorri palidamente o dia...
E súbito, como um
tabernáculo, o céu
Entre faixas de
prata e púrpura irradia...
Tênue, a
Princípio, sobre as pérolas da espuma,
Dança
torvelinhando a chuva de ouro. Além,
Invadida do fogo,
arde e palpita a bruma,
Numa cintilação de
nácar e ametistas...
E o olhar do
Infante vê, na água que vai e vem,
Desenrolar-se vivo
o drama das Conquistas.
Todo o oceano
referve, incendido em diamantes,
Desmanchado em
rubis. Galeões descomunais,
Crespas selvas sem
fim de mastros deslumbrantes,
Continentes de
fogo, ilhas resplandecendo,
Costas de âmbar,
parcéis de aljofres e corais,
— Surgem,
redemoinhando e desaparecendo...
É o dia! — A bruma
foge. Iluminam-se as grutas.
Dissipam-se as
visões... O Infante, a meditar,
Como um fantasma,
segue entre as rochas abruptas.
E impassível,
opondo ao mar o vulto enorme,
Fim de um mundo
sondando o deserto do mar,
— Berço de um
mundo novo — o promontório dorme.
★★★
Messalina
OLAVO BILAC
“Panóplias e outros poemas” (1888)
Recordo, ao
ver-te, as épocas sombrias
Do passado.
Minh'alma se transporta
À Roma antiga, e
da cidade morta
Dos Césares
reanima as cinzas frias;
Triclínios e
vivendas luzidias
Percorre; para de
Suburra à porta,
E o confuso clamor
escuta, absorta,
Das desvairadas e
febris orgias.
Aí, num trono
ereto sobre a ruína
De um povo
inteiro, tendo à fronte impura
O diadema imperial
de Messalina,
Vejo-te bela,
estátua da loucura!
Erguendo no ar a
mão nervosa e fina,
Tinta de sangue,
que um punhal segura.
★★★
Defenda Cartago!
OLAVO BILAC
“Panóplias e outros poemas” (1888)
I
Fulge e dardeja o
sol nos amplos horizontes
Do céu da África.
Ao largo, em plena luz, dos montes
Destacam-se os
perfis. Tremulamente ondeia,
Vasto oceano de
prata, a requeimada areia.
O ar, pesado, sufoca.
E, desfraldando ovantes
Das bandeiras ao
vento as pregas ondulantes,
Desfilam as
legiões do exército romano
Diante do general
Cipião Emiliano.
Tal soldado sopesa
a dava de madeira;
Tal, que a custo
sofreia a cólera guerreira,
Maneja a bipenata
e rude machadinha.
Este, à ilharga
pendente, a rútila bainha
Leva do gládio.
Aquele a poderosa maça
Carrega, e às
largas mãos a ensaia. A custo passa,
Curvado sob o peso
e de fadiga aflando,
De guerreiros um
grupo, os aríetes levando.
Brilham em
confusão cristados capacetes.
Cavaleiros,
contendo os ardidos ginetes,
Solta a clâmide ao
ombro, ao braço afivelado
O côncavo broquel
de cobre cinzelado,
Brandem o pílum no
ar. Ressona, a espaços, rouca,
A bélica bucina. A
tuba cava à boca
Dos eneatores
troa. Hordas de sagitários
Veem-se, de arco e
carcás armados. O ouro e os vários
Ornamentos de
prata embutem-se, em tauxias
De um correto
lavor, nas armas luzidias
Dos generais. E,
ao sol, que, entre nuvens, cintila,
Em torno de
Cartago o exército desfila.
Mas, passada a
surpresa, às pressas, a cidade
Aos escravos
cedera armas e liberdade,
E era toda rumor e
agitação. Fundindo
Todo o metal que
havia, ou, céleres, brunindo
Espadas e punhais,
capacetes e lanças,
Viam-se a
trabalhar os homens e as crianças.
Heroicas, abafando
os soluços e as queixas,
As mulheres,
tecendo os fios das madeixas,
Cortavam-nas.
Cobrindo espáduas
deslumbrantes,
Cercando a
carnação de seios palpitantes
Como véus de
veludo, e provocando beijos,
Excitaram paixões
e lúbricos desejos
Essas tranças da
cor das noites tormentosas...
Quantos lábios,
ardendo em sedes luxuriosas,
As tocaram outrora
entre febris abraços!..
Tranças que tanta
vez — frágeis e doces laços!
Foram cadeias de
ouro invencíveis, prendendo
Almas e corações,
— agora, distendendo
Os arcos,
despedindo as setas aguçadas,
Iam levar a
morte... — elas, que, perfumadas,
Outrora tanta vez
deram a vida e o alento
Aos presos
corações!...
Triste,
entretanto, lento,
Ao pesado labor do
dia sucedera
O silêncio
noturno. A treva se estendera:
Adormecera tudo.
E, no outro dia, quando
Veio de novo o
sol, e a aurora, rutilando,
Encheu o
firmamento e iluminou a terra,
A luta começou.
II
As máquinas de
guerra
Movem-se. Treme,
estala, e parte-se a muralha,
Racha de lado a
lado. Ao clamor da batalha
Estremece o
arredor. Brandindo o pílum, prontas,
Confundem-se as
legiões. Perdido o freio, às tontas,
Desbocam-se os
corcéis. Enrijam-se, esticadas
Nos arcos, a ringir,
as cordas. Aceradas,
Partem setas,
zunindo. Os dardos, sibilando,
Cruzam-se. Éneos
broquéis amolgam-se, ressoando,
Aos embates
brutais dos piques arrojados.
Loucos, afuzilando
os olhos, os soldados,
Presa a
respiração, torvo e medonho o aspeito,
Pela férrea
squamata abroquelado o peito,
Se escruam no
furor, sacudindo os macetes.
Não param,
entretanto, os golpes dos aríetes,
Não cansam no
trabalho os musculosos braços
Dos guerreiros.
Oscila o muro. Os estilhaços
Saltam das pedras.
Gira, inda uma vez vibrada
No ar, a máquina
bruta... E, súbito, quebrada,
Entre o insano
clamor do exército e o fremente
Ruído surdo da
queda, — estrepitosamente
Rui, desaba a
muralha, e a pétrea mole roda,
Rola, remoinha, e
tomba, e se esfacela toda.
Rugem aclamações.
Como em cachões, furioso,
Parte os diques o
mar, roja-se impetuoso,
As vagas
encrespando acapeladas, brutas,
E inunda
povoações, enche vales e grutas,
E vai semeando o
horror e propagando o estrago,
Tal o exército
entrou as portas de Cartago...
O ar os gritos de
dor e susto, espaço a espaço,
Cortavam. E, a
bramir, atropelado, um passo
O invasor
turbilhão não deu vitorioso,
Sem que deixasse
atrás um rastro pavoroso
De feridos. No
ocaso, o sol morria exangue:
Como que refletia
o firmamento o sangue
Que tingia de
rubro a lâmina brilhante
Das espadas.
Então, houve um supremo instante,
Em que, cravando o
olhar no intrépido africano
Asdrúbal, ordenou
Cipião Emiliano:
— Deixa-me
executar as ordens do Senado!
Cartago morrerá:
perturba o ilimitado
Poder da invicta
Roma... Entrega-te!
Orgulhoso,
A fronte
levantando, ousado e rancoroso,
Disse o
cartaginês:
— Enquanto eu
tiver vida,
Juro que não será
Cartago demolida!
Quando o incêndio
a envolver, o sangue deste povo
Há de apagá-lo.
Não! Retira-te!
De novo
Falou Cipião:
Atende, Asdrúbal!
Por mais forte
Que seja o teu
poder, há de prostrá-lo a morte!
Olha! A postos,
sem conta, as legiões de Roma,
Que Júpiter
protege e que o pavor não doma,
Vão começar em
breve a mortandade infrene!
Entrega-te!
— Romano,
escuta-me! (solene,
O outro volveu, e
a raiva em sua voz rugia)
Asdrúbal é o irmão
de Aníbal... Houve um dia
Em que, ante
Aníbal, Roma estremeceu vencida
E tonta recuou de
súbito ferida.
Ficaram no lugar
da pugna, ensanguentados,
Mais de setenta mil
romanos, trucidados
Pelo esforço e
valor dos púnicos guerreiros;
Seis alqueires de
anéis dos mortos cavaleiros
Cartago
arrecadou... Verás que, como outrora,
Do eterno
Baal-Moloch a proteção agora
Teremos. A vitória
há de ser nossa... Escuta:
Manda que recomece
a carniceira luta!
E horrível, e
feroz, durante a noite e o dia,
Recomeçou a luta.
Em cada casa havia
Um punhado de
heróis. Seis vezes, pela face
Do céu, seguiu seu
curso o sol, sem que parasse
O medonho estridor
da sanha da batalha...
Quando a noite
descia, a treva era a mortalha
Que envolvia,
piedosa, os corpos dos feridos.
Rolos de sangue e
pó, blasfêmias e gemidos,
Preces e
imprecações... As próprias mães, entanto,
Heroicas na
aflição, enxuto o olhar de pranto,
Viam cair sem vida
os filhos. Combatentes
Houve, que, não
querendo aos golpes inclementes
Do inimigo
entregar os corpos das crianças,
Matavam-nas,
erguendo as suas próprias lanças...
Por fim, quando de
todo a vida desertando
Foi a extinta
cidade, e, lúgubre, espalmando
As asas negras no
ar, pairou sinistra e horrenda
A morte, teve um
fim a peleja tremenda,
E o incêndio
começou.
III
Fraco e medroso, o
fogo
À branda viração
tremeu um pouco, e logo,
Inda pálida e
tênue, ergueu-se. Mais violento,
Mais rápido soprou
por sobre a chama o vento:
E o que era
labareda, agora ígnea serpente
Gigantesca,
estirando o corpo, de repente
Desenrosca os
anéis flamívomos, abraça
Toda a cidade,
estala as pedras, cresce, passa,
Rói os muros,
estronda, e, solapando o solo,
Os alicerces
broca, e estringe tudo. Um rolo
De plúmbeo e denso
fumo enegrecido em torno
Se estende, como
um véu, do comburente forno.
Na horrorosa
eversão, dos templos arrancado,
Vibra o mármore,
salta; abre-se, estilhaçado,
Tudo o que o
incêndio aperta... E a fumarada cresce
Sobe vertiginosa,
espalha-se, escurece
O firmamento... E,
sobre os restos da batalha,
Arde, voraz e
rubra, a colossal fornalha.
Mudo e triste
Copião, longe dos mais, no entanto,
Deixa livre correr
pelas faces o pranto...
É que, — vendo
rolar, num rápido momento
Para o abismo do
olvido e do aniquilamento
Homens e
tradições, reveses e vitórias,
Batalhas e
troféus, seis séculos de glórias
Num punhado de
cinza —, o general previa
Que Roma, a
invicta, a forte, a armipotente, havia
De ter o mesmo fim
da orgulhosa Cartago.
E, perto, o
precipitar estrepitoso e vago
Do incêndio, que
lavrava e inda rugia ativo,
Era como o rumor
de um pranto convulsivo...
★★★
O Caçador de Esmeraldas
(Episódio da epopeia sertanista no 17º século)
I
Foi em março, ao
findar das chuvas, quase à entrada
De outono, quando
a terra, em sede requeimada,
Bebera longamente
as águas da estação,
— Que, em
bandeira, buscando esmeraldas e prata,
À frente dos peões
filhos da rude mata,
Fernão Dias Pais
Leme entrou pelo sertão.
Ah! quem te vira
assim, no alvorecer da vida,
Bruta Pátria, no
berço, entre as selvas dormida,
No virginal pudor
das primitivas eras,
Quando, aos beijos
do sol, mas compreendendo o anseio
Do mundo por
nascer que trazias no seio,
Reboavas ao tropel
dos índios e das feras!
Já lá fora, da
ourela azul das enseadas,
Das angras verdes,
onde as águas repousadas
Vêm, borbulhando,
à flor dos cachopos cantar;
Das abras e da foz
dos tumultuosos rios,
— Tomadas de
pavor, dando contra os baixios,
As pirogas dos
teus fugiam pelo mar...
De longe, ao duro
vento opondo as largas velas,
Bailando ao
furacão, vinham as caravelas,
Entre os uivos do
mar e o silêncio dos astros;
E tu, do litoral,
de rojo nas areias,
Vias o oceano
arfar, vias as ondas cheias
De uma palpitação
de proas e de mastros.
Pelo deserto
imenso e líquido, os penhascos
Feriam-nas em vão,
roíam-lhes os cascos...
A quantas, quanta
vez, rodando aos ventos maus,
O primeiro pegão,
como a baixéis, quebrava!
E lá iam, no alvor
da espumarada brava,
Despojos da
ambição, cadáveres de naus...
Outras vinham, na
febre heroica da conquista!
E quando, de entre
os véus das neblinas, à vista
Dos nautas
fulgurava o teu verde sorriso,
Os seus olhos, ó
Pátria, enchiam-se de pranto:
Era como se,
erguendo a ponto do teu manto,
Vissem, à beira
d’água, abrir-se o Paraíso!
Mais numerosa,
mais audaz, de dia em dia,
Engrossava a
invasão. Como a enchente bravia,
Que sobre as
terras, palmo a palmo, abre o lençol
De água
devastadora, — os brancos avançavam:
E os teus filhos
de bronze ante eles recuavam,
Como a sombra
recua ante a invasão do sol.
Já nas faldas da
serra apinhavam-se aldeias;
Levantava-se a
cruz sobre as alvas areias,
Onde, ao brando
mover dos leques das juçaras,
Vivera e
progredira a tua gente forte...
Soprara a
destruição, como um vento de morte,
Desterrando os
pajés, abatendo as caiçaras.
Mas além, por
detrás das broncas serranias,
Na cerrada região
das florestas sombrias,
Cujos troncos,
rompendo as lianas e os cipós,
Alastravam no céu
léguas de rama escura;
Nos matagais, em
cuja horrível espessura
Só corria a anta
leve e uivava a onça feroz:
Além da áspera
brenha, onde as tribos errantes
À sombra material
das árvores gigantes
Acampavam; além
das sossegadas águas
Das lagoas,
dormindo entre aningais floridos;
Dos rios,
acachoando em quedas e bramidos,
Mordendo os
alcantis, roncando pelas fráguas;
— Aí, não ia ecoar
o estrupido da luta...
E, no seio nutriz
da natureza bruta,
Resguardava o
pudor teu verde coração!
Ah! quem te vira
assim, entre as selvas sonhando,
Quando a bandeira
entrou pelo teu seio, quando
Fernão Dias Pais
Leme invadiu o sertão!
II
Para o norte
inclinando a lombada brumosa,
Entre os nateiros
jaz a serra misteriosa;
A azul Vupabuçu
beija-lhe as verdes faldas,
E águas crespas,
galgando abismos e barrancos
Atulhados de
prata, umedecem-lhe os flancos
Em cujos socavões
dormem as esmeraldas.
Verde sonho!... é
a jornada ao país da Loucura!
Quantas bandeiras
já, pela mesma aventura
Levadas, em
tropel, na ânsia de enriquecer!
Em cada tremedal,
em cada escarpa, em cada
Brenha rude, o
luar beija à noite uma ossada,
Que vêm, a uivar
de fome, as onças remexer...
Que importa o
desamparo em meio do deserto,
E essa vida sem
lar, e esse vaguear incerto
De terror em
terror, lutando braço a braço
Com a inclemência
do céu e a dureza da sorte?
Serra bruta!
dar-lhe-ás, antes de dar-lhe a morte,
As pedras de
Cortez, que escondes no regaço!
E sete anos, de
fio em fio destramando
O mistério, de
passo em passo penetrando
O verde arcano,
foi o bandeirante audaz...
— Marcha horrenda!
derrota implacável e calma,
Sem uma hora de
amor, estrangulando na alma
Toda a recordação
do que ficava atrás!
A cada volta, a
morte, a fiando o olhar faminto,
Incansável no
ardil, rondando o labirinto
Em que às tontas
errava a bandeira nas matas,
Cercando-a com o
crescer dos rios iracundos,
Espiando-a no
pendor dos boqueirões profundos,
Onde vinham ruir
com fragor as cascatas.
Aqui, tapando o
espaço, entrelaçando as grenhas
Em negros
paredões, levantavam-se as brenhas,
Cuja muralha, em
vão, sem a poder dobrar,
Vinham acometer os
temporais, aos roncos;
E os machados, de
sol a sol mordendo os troncos,
Contra esse adarve
bruto em vão rodavam no ar.
Dentro, no frio
horror das balseiras escuras,
Viscosas e
oscilando, úmidas colgaduras
Pendiam de cipós
na escuridão noturna;
E um mundo de
reptis silvava no negrume;
Cada folha pisada
exalava um queixume,
E uma pupila má
chispava em cada furna.
Depois, nos
chapadões, o rude acampamento:
As barracas, voando
em frangalhos ao vento,
Ao granizo, à
invernada, à chuva, ao temporal...
E quantos deles,
nus, sequiosos, no abandono,
Iam ficando atrás,
no derradeiro sono,
Sem chegar ao sopé
da colina fatal!
Que importava? Ao
clarear da manhã, a companha
Buscava no
horizonte o perfil da montanha...
Quando apareceria
enfim, vergando a espalda,
Desenhada no céu
entre as neblinas claras,
A grande serra,
mãe das esmeraldas raras,
Verde e faiscante
como uma grande esmeralda?
Avante! e os
aguaçais seguiam-se às florestas...
Vinham os
mamarões, as leziras funestas,
De água paralisada
e decomposta ao sol,
Em cuja face, como
um bando de fantasmas,
Erravam dia e
noite as febres e os miasmas,
Numa ronda letal
sobre o podre lençol.
Agora, o áspero
morro, os caminhos fragosos...
Leve, de quando em
quando, entre os troncos nodosos
Passa um plúmeo
cocar, como uma ave que voa...
Uma flecha, sutil,
silva e zarguncha... É a guerra!
São os índios!
Retumba o eco da bruta serra
Ao tropel... E o
estridor da batalha reboa.
Depois, os
ribeirões, nas levadas, transpondo
As ribas,
rebramando, e de estrondo em estrondo
Inchando em
macaréus o seio destruidor,
E desenraizando os
troncos seculares,
No esto da aluvião
estremecendo os ares,
E indo torvos
rolar nos vales com fragor...
Sete anos!
combatendo índios, febres, paludes,
Feras, reptis, —
contendo os sertanejos rudes,
Dominando o furor
da amotinada escolta...
Sete anos!... E
ei-lo de volta, enfim, com o seu tesouro!
Com que amor,
contra o peito, a sacola de couro
Aperta, a transbordar
de pedras verdes! – volta...
Mas um desvão da
mata, uma tarde, ao sol posto,
Para. Um frio
livor se lhe espalha no rosto...
É a febre! O
Vencedor não passará dali!
Na terra que
venceu há de cair vencido:
É a febre: é a
morte! E o Herói, trôpego e envelhecido,
Roto, e sem
forças, cai junto do Guicuí...
III
Fernão Dias Pais
Leme agoniza. Um lamento
Chora longo, a
rolar na longa voz do vento.
Mugem soturnamente
as águas. O céu arde.
Transmonta fulvo o
sol. E a natureza assiste,
Na mesma solidão e
na mesma hora triste,
À agonia do herói
e à agonia da tarde.
Piam perto, na
sombra, as aves agoireiras.
Silvam as cobras.
Longe, as feras carniceiras
Uivam nas lapas.
Desce a noite, como um véu...
Pálido, no palor
da luz, o sertanejo
Estorce-se no
crebro e derradeiro arquejo.
— Fernão Dias Pais
Leme agoniza, e olha o céu.
Oh! esse último
olhar ao firmamento! A vida
Em surtos de
paixão e febre repartida,
Toda, num só
olhar, devorando as estrelas!
Esse olhar, que
sai como um beijo da pupila,
— Que as implora,
que bebe a sua luz tranquila,
Que morre. E nunca
mais, nunca mais há de vê-las!
Ei-las todas,
enchendo o céu, de canto a canto...
Nunca assim se
espalhou, resplandecendo tanto,
Tanta constelação
pela planície azul!
Nunca Vênus assim fulgiu!
Nunca tão perto,
Nunca com tanto
amor sobre o sertão deserto
Pairou
tremulamente o Cruzeiro do Sul!
Noites de
outrora!... Enquanto a bandeira dormia
Exausta, e áspero
o vento em derredor zunia,
E a voz do noitibó
soava como um agouro,
— Quantas vezes
Fernão, do cabeço de um monte,
Via lenta subir do
fundo do horizonte
Aclara procissão
dessas bandeiras de ouro!
Adeus, astros da
noite! Adeus, frescas ramagens
Que a aurora
desmanchava em perfumes selvagens!
Ninhos cantando no
ar! suspensos gineceus
Ressoantes de
amor! outonos benfeitores!
Nuvens e aves,
adeus! Adeus, feras e flores!
Fernão Dias Pais
Leme espera a morte... Adeus!
O Sertanista
ousado agoniza, sozinho...
Empasta-lhe o suor
a barba em desalinho;
E com a roupa de
couro em farrapos, deitado,
Com a garganta
afogada em uivos, ululante,
Entre os troncos
da brenha hirsuta, — o Bandeirante
Jaz por terra, à
feição de um tronco derribado...
E o delírio
começa. A mão, que a febre agita,
Ergue-se, treme no
ar, sobe, descamba aflita,
Crispa os dedos, e
sonda a terra, a escarva o chão:
Sangra as unhas,
revolve as raízes, acerta,
Agarra o saco, e
apalpa-o, e contra o peito o aperta,
Como para o
enterrar dentro do coração.
Ah! mísero
demente! o teu tesouro é falso!
Tu caminhaste em
vão, por sete anos, no encalço
De uma nuvem
falaz, de um sonho malfazejo!
Enganou-te a
ambição! mais pobre que um mendigo,
Agonizas, sem luz,
sem amor, sem amigo,
Sem ter quem te
conceda a extrema-unção de um beijo!
E foi para morrer
de cansaço e de fome,
Sem ter quem,
murmurando em lágrimas teu nome,
Te dê uma oração e
um punhado de cal,
— Que tantos
corações calcaste sob os passos,
E na alma da
mulher que te estendia os braços
Sem piedade
lançaste um veneno mortal!
E ei-la, a morte!
E ei-lo, o fim! A palidez aumenta;
Fernão Dias se
esvai, numa síncope lenta...
Mas, agora, um
clarão ilumina-lhe a face:
E essa face cavada
e magra, que a tortura
Da fome e das
privações maceraram, — fulgura,
Como se a asa
ideal de um arcanjo a roçasse.
IV
Adoça-lhe o olhar,
num fulgor indeciso:
Leve, na boca
aflante, esvoaça-lhe um sorriso...
— E adelgaça-se o
véu das sombras. O luar
Abre no horror da
noite uma verde clareira,
Como para abraçar
a natureza inteira,
Fernão Dias Pais
Leme estira os braços no ar...
Verdes, os astros
no alto abrem-se em verdes chamas;
Verdes, na verde
mata, embalançam-se as ramas;
E flores verdes no
ar brandamente se movem;
Chispam verdes
fuzis riscando o céu sombrio;
Em esmeraldas flui
a água verde do rio,
E do céu, todo
verde, as esmeraldas chovem...
E é uma ressurreição!
O corpo se levanta:
Nos olhos, já sem
luz, a vida exsurge e canta!
E esse destroço
humano, esse pouco de pó
Contra a
destruição se aferra à vida, e luta,
E treme, e cresce,
e brilha, e a fia o ouvido, e escuta
A voz, que na
solidão só ele escuta, — só:
"Morre!
morrem-te às mãos as pedras desejadas,
Desfeitas como um
sonho, e em lodo desmanchadas...
Que importa? dorme
em praz, que o teu labor é findo!
Nos campos, no
pendor das montanhas fragosas,
Como um grande
colar de esmeraldas gloriosas,
As tuas povoações
se estenderão fulgindo!
Quando do
acampamento o bando peregrino
Saía, antemanhã,
ao sabor do destino,
Em busca, ao norte
e ao sul, de jazida melhor,
— No cômoro de
terra, em que teu pé pousara,
Os colmados de
palha aprumavam-se, e clara
A luz de uma
clareira espancava o arredor.
Nesse louco vagar,
nessa marcha perdida,
Tu foste, como o
sol, uma fonte de vida:
Cada passada tua
era um caminho aberto!
Cada pouso mudado,
uma nova conquista!
E enquanto ias,
sonhando o teu sonho egoísta,
Teu pé, como o de
um deus, fecundava o deserto!
Morre! tu viverás
nas estradas que abriste!
Teu nome rolará no
largo choro triste
Da água do
Guaicuí... Morre, Conquistador!
Viverás quando,
feito em seiva o sangue, aos ares
Subires, e,
nutrindo uma árvore, cantares
Numa ramada verde
entre um ninho e uma flor!
Morre! germinarão
as sagradas sementes
Das gotas de suor,
das lágrimas ardentes!
Hão de frutificar
as fomes e as vigílias!
E um dia, povoada
a terra em que te deitas,
Quando, aos beijos
do sol, sobrarem as colheitas,
Quando, aos beijos
do amor, crescerem as famílias,
Tu cantarás na voz
dos sinos, nas charruas,
No esto da
multidão, no tumultuar das ruas,
No clamor do
trabalho e nos hinos da paz!
E, subjugando o
olvido, através das idades,
Violador de
sertões, plantador de cidades,
Dentro do coração
da Pátria viverás!"
Cala-se a estranha
voz. dorme de novo tudo.
Agora, a deslizar
pelo arvoredo mudo,
Como um choro de
prata algente o luar escorre.
E sereno, feliz,
no maternal regaço
Da terra, sob a
paz estrelada do espaço,
Fernão Dias Pais
Leme os olhos cerra. E morre.
★★★
A sesta de Nero
OLAVO BILAC
“Panóplias e outros poemas” (1888)
Fulge de luz
banhado, esplêndido e suntuoso,
O palácio imperial
de pórfiro luzente
E mármor da
Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata
incrustado, o nácar do Oriente.
Nero no toro
ebúrneo estende-se indolente...
Gemas em profusão
do estrágulo custoso
De ouro bordado
veem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da
Trácia o brilho esplendoroso.
Formosa ancila
canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos
soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da
Arábia em recendente pira.
Formas quebram,
dançando, escravas em coreia.
E Nero dorme e
sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios
nus da lúbrica Popeia.
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