O incêndio de Roma
OLAVO BILAC
“Panóplias e outros poemas” (1888)
Raiva o incêndio.
A ruir, soltas, desconjuntadas,
As muralhas de
pedra, o espaço adormecido
De eco em eco
acordando ao medonho estampido,
Como a um sopro
fatal, rolam esfaceladas.
E os templos, os
museus, o Capitólio erguido
Em mármor frígio, o
Foro, as eretas arcadas
Dos aquedutos,
tudo as garras inflamadas
Do incêndio
cingem, tudo esbroa-se partido.
Longe,
reverberando o clarão purpurino,
Arde em chamas o
Tibre e acende-se o horizonte...
— Impassível,
porém, no alto do Palatino,
Neto, com o manto
grego ondeando ao ombro, assoma
Entre os libertos,
e ébrio, engrinaldada a fronte,
Lira em punho,
celebra a destruição de Roma.
★★★
O sonho de Marco Antônio
OLAVO BILAC
“Panóplias e outros poemas” (1888)
I
Noite. Por todo o
largo firmamento
Abrem-se os olhos
de ouro das estrelas...
Só perturba a
mudez do acampamento
O passo regular
das sentinelas.
Brutal, febril,
entre canções e brados,
Entrara pela noite
adiante a orgia;
Em borbotões, dos
cântaros lavrados
Jorrara o vinho. O
exército dormia.
Insone, entanto,
vela alguém na tenda
Do general. Esse,
entre os mais sozinho,
Vence a fadiga da
batalha horrenda,
Vence os vapores
cálidos do vinho.
Torvo e cerrado o
cenho, o largo peito
Da couraça despido
e arfando ansioso,
Lívida a face,
taciturno o aspecto,
Marco Antônio
medita silencioso.
Da lâmpada de
prata a luz escassa
Resvala pelo chão.
A quando e quando,
Treme, enfunada à
viração que passa,
A cortina de
púrpura oscilando.
O general medita.
Como, soltas
Do álveo de um rio
transvazado, as águas
Crescem, cavando o
solo, — assim, revoltas,
Fundas a alma lhe
vão sulcando as mágoas.
Que vale a Grécia,
e a Macedônia, e o enorme
Território do
Oriente, e este infinito
E invencível
exército que dorme?
Que doces braços
que lhe estende o Egito!...
Que vença Otávio!
e seu rancor profundo
Leve da Hispânia à
Síria a morte e a guerra!
Ela é o céu... Que
valor tem todo o mundo,
Se os mundos todos
seu olhar encerra?!
Ele é valente e
ela o subjuga e o doma...
Só Cleópatra é
grande, amada e bela!
Que importa o
império e a salvação de Roma?
Roma não vale um
só dos beijos dela!...
..................................................
Assim medita. E
alucinado, louco
De pesar, com a
fadiga em vão lutando,
Marco Antônio
adormece a pouco e pouco,
Nas largas mãos a
fronte reclinando.
II
A harpa suspira. O
melodioso canto,
De uma volúpia
lânguida e secreta,
Ora interpreta o
dissabor e o pranto,
Ora as paixões
violentas interpreta.
Amplo dossel de
seda levantina,
Por colunas de
jaspe sustentado,
Cobre os cetins e
a caxemira fina
Do régio leito de
ébano lavrado.
Move o leque de
plumas uma escrava.
Vela a guarda lá
fora. Recolhida,
Os pétreos olhos
uma esfinge crava
Nas formas da
rainha adormecida.
Mas Cleópatra acorda...
E tudo, ao vê-la
Acordar, treme em
roda, e pasma, e a admira:
Desmaia a luz, no
céu descora a estrela,
A própria esfinge
move-se e suspira...
Acorda. E o torso
arqueando, ostenta o lindo
Colo opulento e
sensual que oscila.
Murmura um nome e,
as pálpebras abrindo,
Mostra o fulgor
radiante da pupila.
III
Ergue-se Marco
Antônio de repente...
Ouve-se um grito
estrídulo, que soa
O silêncio
cortando, e longamente
Pelo deserto
acampamento ecoa.
O olhar em fogo,
os carregados traços
Do rosto em
contração, alto e direito
O vulto enorme, —
no ar levanta os braços,
E nos braços
aperta o próprio peito.
Olha em torno e
desvaira. Ergue a cortina,
A vista alonga
pela noite afora.
Nada vê. Longe, à
porta purpurina
Do Oriente em
chamas, vem raiando a aurora.
E a noite foge. Em
todo o firmamento
Vão se fechando os
olhos das estrelas:
Só perturba a
mudez do acampamento
O passo regular
das sentinelas.
★★★
O julgamento de Frineia
OLAVO BILAC
“Tarde” (1919)
Mnezarete, a
divina, a pálida Frineia,
Comparece ante a
austera e rígida assembleia
Do Areópago
supremo. A Grécia inteira admira
Aquela formosura
original, que inspira
E dá vida ao
genial cinzel de Praxíteles,
De Hiperides à voz
e à palheta de Apeles.
Quando os vinhos,
na orgia, os convivas exaltam
E das roupas,
enfim, livres os corpos saltam,
Nenhuma hetera
sabe a primorosa taça,
Transbordante de
Cós, erguer com maior graça,
Nem mostrar, a
sorrir, com mais gentil meneio,
Mais formoso
quadril, nem mais nevado seio.
Estremecem no
altar, ao contemplá-la, os deuses,
Nua, entre
aclamações, nos festivais de Elêusis...
Basta um rápido
olhar provocante e lascivo:
Quem na fronte o
sentiu curva a fronte, cativo...
Nada iguala o
poder de suas mios pequenas:
Basta um gesto, —
e a seus pés roja-se humilde Atenas...
Vai ser julgada.
Um véu, tornando inda mais bela
Sua oculta nudez,
mal os encantos vela,
Mal a nudez oculta
e sensual disfarça.
cai-lhe, espáduas
abaixo, a cabeleira esparsa...
Queda-se a
multidão. Ergue-se Eutias. Fala,
E incita o
tribunal severo a condená-la:
"Elêusis
profanou! É falsa e dissoluta,
Leva ao lar a
cizânia e as famílias enluta!
Dos deuses zomba!
É ímpia! é má!" (E o pranto ardente
Corre nas faces
dela, em fios, lentamente...)
"Por onde os passos
move a corrupção se espraia,
E estende-se a
discórdia! Heliastes! condenai-a!"
Vacila o tribunal,
ouvindo a voz que o doma...
Mas, de pronto,
entre a turba Hiperides assoma,
Defende-lhe a
inocência, exclama, exora, pede,
Suplica, ordena,
exige... O Areópago não cede.
"Pois
condenai-a agora!" E à ré, que treme, a branca
Túnica despedaça,
e o véu, que a encobre, arranca...
Pasmam subitamente
os juízes deslumbrados,
— Leões pelo calmo
olhar de um domador curvados:
Nua e branca, de
pé, patente à luz do dia
Todo o corpo
ideal, Frineia aparecia
Diante da multidão
atônita e surpresa,
No triunfo imortal
da carne e da beleza.
★★★
Matricídio
EUGÊNIO DE CASTRO
"Camafeus Romanos" (1921)
Hercúleo centurião
parte incumbido
De matar Agripina.
Indiferente,
Nero compõe ao
espelho lentamente
A c’roa de
verbenas, presumido.
Depois,
cantarolando, embevecido
Co’a própria voz,
põe-se a mirar contente
Um colar de
carbúnculos, presente
Por ele a certa
escrava prometido.
Assoma um atriense
anunciando
A linda escrava.
Nero, que palpita,
Clama, co’as
fontes latejantes: — Que entre!
Longe, Agripina, o
centurião fitando,
E adivinhando
tudo, assim lhe grita:
— Sei quem te
manda; fere-me no ventre!
★★★
Núpcias de Artaxerxes
(A Valentim Magalhães)
LUÍS DELFINO
"Algas e Musgos" (1927)
O sândalo, que
enerva, o nardo, que embriaga,
Nas caçoulas
queimado em fumo se desata,
Que se enrosca em
festões na vasta colunata;
A harpa curva
estremece à fina mão que a afaga.
Dentre as colunas
vê-se o azul, que em luz se alaga,
Tamareiras gentis,
nopais de sombra grata:
O alto estrado
real de mármore e de prata
Mancha um jorro de
sol, como uma enorme chaga.
Artaxerxes de pé
ao lado da judia
Tem o prazer da
fera, — uma calma sombria. —
Dá tons de sangue
a luz à festa nupcial.
Da África e da
Ásia a força e o orgulho aos pés avista:
E o seu olhar, que
lambe a esplêndida conquista,
Darda em torno a
algidez aguda do punhal.
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