A escravidão
TOBIAS BARRETO
Se Deus é quem deixa o mundo
Sob o peso que o
oprime,
Se ele consente
esse crime,
Que se chama a
escravidão,
Para fazer homens
livres,
Para arrancá-los
do abismo,
Existe um
patriotismo
Maior que a
religião.
Se não lhe importa
o escravo
Que a seus pés
queixas deponha,
Cobrindo assim de
vergonha
A face dos anjos
seus,
Em seu delírio
inefável,
Praticando a
caridade,
Nesta hora a
mocidade
Corrige o erro de
Deus!...
★★★
A cativa
LUÍS DA GAMA
Como era linda,
meu Deus!
Não tinha da neve
a cor,
Mas no moreno
semblante
Brilhavam raios de
amor.
Ledo o rosto, o
mais formoso,
De trigueira
coralina,
De Anjo a boca, os
lábios breves
Cor de pálida
cravina.
Em carmim rubro
engastados
Tinha os dentes
cristalinos;
Doce a voz, qual
nunca ouviram
Dúlios bardos
matutinos.
Seus ingênuos
pensamentos
São de amor juras
constantes;
Entre a nuvem das
pestanas
Tinha dois astros
brilhantes.
As madeixas
crespas negras,
Sobre o seio lhe
pendiam,
Onde os castos
pomos de ouro
Amorosos se
escondiam.
Tinha o colo
acetinado
— Era o corpo uma
pintura —
E no peito
palpitante
Um sacrário de
ternura.
Límpida alma —
flor singela
Pelas brisas
embalada,
Ao dormir d’alvas
estrelas,
Ao nascer da
madrugada.
Quis beijar-lhe as
mãos divinas,
Afastou-mas — não
consente;
A seus pés de rojo
pus-me
— Tanto pode o
amor ardente!
Não te afastes lhe
suplico,
És do meu peito
rainha;
Não te afastes,
neste peito
Tens um trono,
mulatinha!...
Vi-lhe as
pálpebras tremerem,
Como treme a flor
louçã,
Embalando as
níveas gotas
Dos orvalhos da
manhã.
Qual na rama
enlanguescida
Pudibunda
sensitiva,
Suspirando ela
murmura;
Ai, senhor, eu sou
cativa!...
Deu-me as costas,
foi-se embora
Qual da tarde do
arrebol
Foge a sombra de
uma nuvem
Ao cair da luz do
sol.
★★★
A canção do africano
CASTRO ALVES
Lá na úmida
senzala,
Sentado na
estreita sala,
Junto ao braseiro,
no chão,
Entoa o escravo o
seu canto,
E ao cantar
correm-lhe em pranto
Saudades do seu
torrão...
De um lado, uma
negra escrava
Os olhos no filho
crava,
Que tem no colo a
embalar...
E à meia voz lá
responde
Ao canto, e o
filhinho esconde,
Talvez pra não o
escutar!
"Minha terra
é lá bem longe,
Das bandas de onde
o sol vem;
Esta terra é mais
bonita,
Mas à outra eu
quero bem!
"O sol faz lá
tudo em fogo,
Faz em brasa toda
a areia;
Ninguém sabe como
é belo
Ver de tarde a
papa-ceia!
"Aquelas
terras tão grandes,
Tão compridas como
o mar,
Com suas poucas
palmeiras
Dão vontade de
pensar...
"Lá todos
vivem felizes,
Todos dançam no
terreiro;
A gente lá não se
vende
Como aqui, só por
dinheiro".
O escravo calou a
fala,
Porque na úmida
sala
O fogo estava a
apagar;
E a escrava acabou
seu canto,
Pra não acordar
com o pranto
O seu filhinho a
sonhar!
***
O escravo então
foi deitar-se,
Pois tinha de
levantar-se
Bem antes do sol
nascer,
E se tardasse,
coitado,
Teria de ser
surrado,
Pois bastava
escravo ser.
E a cativa desgraçada
Deita seu filho,
calada,
E põe-se triste a
beijá-lo,
Talvez temendo que
o dono
Não viesse, em
meio do sono,
De seus braços
arrancá-lo!
★★★
O Navio Negreiro
(Tragédia no mar)
CASTRO ALVES
Estamos em pleno
mar… Doido no espaço
Brinca o luar —
dourada borboleta;
E as vagas após
ele correm… cansam
Como turba de
infantes inquieta.
Estamos em pleno
mar… Do firmamento
Os astros saltam
como espumas de ouro…
O mar em troca
acende as ardentias,
— Constelações do
líquido tesouro…
Estamos em pleno
mar… Dois infinitos
Ali se estreitam
num abraço insano,
Azuis, dourados,
plácidos, sublimes…
Qual dos dois é o
céu? qual o oceano?…
Estamos em pleno
mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar
das virações marinhas,
Veleiro brigue
corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga
as andorinhas…
Donde vem? onde
vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo
se é tão grande o espaço?
Neste saara os
corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas
não deixam traço.
Bem feliz quem ali
pode nesta hora
Sentir deste
painel a majestade!
Embaixo — o mar em
cima — o firmamento…
E no mar e no céu
— a imensidade!
Oh! que doce
harmonia traz-me a brisa!
Que música suave
ao longe soa!
Meu Deus! como é
sublime um canto ardente
Pelas vagas sem
fim boiando à toa!
Homens do mar! ó
rudes marinheiros,
Tostados pelo sol
dos quatro mundos!
Crianças que a
procela acalentara
No berço destes
pélagos profundos!
Esperai! esperai!
deixai que eu beba
Esta selvagem,
livre poesia,
Orquestra — é o
mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas
cordas assobia…
***
Por que foges
assim, barco ligeiro?
Por que foges do
pávido poeta?
Oh! quem me dera
acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar
— doido cometa!
Albatroz!
Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das
nuvens entre as gazas,
Sacode as penas,
Leviatã do espaço,
Albatroz!
Albatroz! dá-me estas asas.
II
Que importa do
nauta o berço,
Donde é filho,
qual seu lar?
Ama a cadência do
verso
Que lhe ensina o
velho mar!
Cantai! que a
morte é divina!
Resvala o brigue à
bolina
Como golfinho
veloz.
Presa ao mastro da
mezena
Saudosa bandeira
acena
As vagas que deixa
após.
Do Espanhol as
cantilenas
Requebradas de
langor,
Lembram as moças
morenas,
As andaluzas em
flor!
Da Itália o filho
indolente
Canta Veneza
dormente,
— Terra de amor e
traição,
Ou do golfo no
regaço
Relembra os versos
de Tasso,
Junto às lavas do
vulcão!
O Inglês —
marinheiro frio,
Que ao nascer no
mar se achou,
(Porque a
Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha
ancorou),
Rijo entoa pátrias
glórias,
Lembrando, orgulhoso,
histórias
De Nelson e de
Aboukir...
O Francês —
predestinado —
Canta os louros do
passado
E os loureiros do
porvir!
Os marinheiros
Helenos,
Que a vaga jônia
criou,
Belos piratas
morenos
Do mar que Ulisses
cortou,
Homens que Fídias
talhara,
Vão cantando em
noite clara
Versos que Homero
gemeu…
Nautas de todas as
plagas,
Vós sabeis achar
nas vagas
As melodias do
céu!…
III
Desce do espaço
imenso, ó águia do oceano!
Desce mais … inda
mais… não pode olhar humano
Como o teu
mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu
aí… Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! …
Que tétricas figuras! …
Que cena infame e
vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
IV
Era um sonho
dantesco… o tombadilho
Que das luzernas
avermelha o brilho.
Em sangue a se
banhar.
Tinir de ferros…
estalar de açoite…
Legiões de homens
negros como a noite,
Horrendos a
dançar…
Negras mulheres,
suspendendo às tetas
Magras crianças,
cujas bocas pretas
Rega o sangue das
mães:
Outras moças, mas
nuas e espantadas,
No turbilhão de
espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa
vãs!
E ri-se a
orquestra irônica, estridente…
E da ronda
fantástica a serpente
Faz doidas
espirais …
Se o velho
arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o
chicote estala.
E voam mais e
mais…
Presa nos elos de
uma só cadeia,
A multidão faminta
cambaleia,
E chora e dança
ali!
Um de raiva
delira, outro enlouquece,
Outro, que
martírios embrutece,
Cantando, geme e
ri!
No entanto o
capitão manda a manobra,
E após fitando o
céu que se desdobra,
Tão puro sobre o
mar,
Diz do fumo entre
os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o
chicote, marinheiros!
Fazei-os mais
dançar!…”
E ri-se a
orquestra irônica, estridente...
E da ronda
fantástica a serpente
Faz doidas
espirais…
Qual um sonho
dantesco as sombras voam!…
Gritos, ais,
maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!…
V
Senhor Deus dos
desgraçados!
Dizei-me vós,
Senhor Deus!
Se é loucura… se é
verdade
Tanto horror
perante os céus?!
Ó mar, por que não
apagas
Com a esponja de
tuas vagas
De teu manto este
borrão?…
Astros! noites!
tempestades!
Rolai das
imensidades!
Varrei os mares,
tufão!
Quem são estes
desgraçados
Que não encontram
em vós
Mais que o rir
calmo da turba
Que excita a fúria
do algoz?
Quem são? Se a
estrela se cala,
Se a vaga à pressa
resvala
Como um cúmplice
fugaz,
Perante a noite
confusa…
Dize-o tu, severa
Musa,
Musa libérrima,
audaz!…
São os filhos do
deserto,
Onde a terra
esposa a luz.
Onde vive em campo
aberto
A tribo dos homens
nus…
São os guerreiros
ousados
Que com os tigres
mosqueados
Combatem na
solidão.
Ontem simples,
fortes, bravos.
Hoje míseros
escravos,
Sem luz, sem ar,
sem razão…
São mulheres
desgraçadas,
Como Agar o foi
também.
Que sedentas,
alquebradas,
De longe… bem
longe vêm…
Trazendo com
tíbios passos,
Filhos e algemas
nos braços,
N’alma — lágrimas
e fel…
Como Agar sofrendo
tanto,
Que nem o leite de
pranto
Têm que dar para
Ismael.
Lá nas areias
infindas,
Das palmeiras no
país,
Nasceram crianças
lindas,
Viveram moças
gentis…
Passa um dia a
caravana,
Quando a virgem na
cabana
Cisma da noite nos
véus …
…Adeus, ó choça do
monte,
…Adeus, palmeiras
da fonte!…
…Adeus, amores…
adeus!…
Depois, o areal
extenso…
Depois, o oceano
de pó.
Depois no
horizonte imenso
Desertos… desertos
só…
E a fome, o
cansaço, a sede…
Ai! quanto infeliz
que cede,
E cai p’ra não
mais se erguer!…
Vaga um lugar na
cadeia,
Mas o chacal sobre
a areia
Acha um corpo que
roer.
Ontem a Serra
Leoa,
A guerra, a caça
ao leão,
O sono dormido à
toa
Sob as tendas
d’amplidão!
Hoje… o porão
negro, fundo,
Infecto, apertado,
imundo,
Tendo a peste por
jaguar…
E o sono sempre
cortado
Pelo arranco de um
finado,
E o baque de um
corpo ao mar…
Ontem plena
liberdade,
A vontade por
poder…
Hoje… cúmulo de
maldade,
Nem são livres para
morrer..
Prende-os a mesma
corrente
— Férrea, lúgubre
serpente —
Nas roscas da
escravidão.
E assim zombando
da morte,
Dança a lúgubre
coorte
Ao som do açoute…
Irrisão!…
Senhor Deus dos
desgraçados!
Dizei-me vós,
Senhor Deus,
Se eu deliro… ou
se é verdade
Tanto horror
perante os céus?!…
Ó mar, por que não
apagas
Com a esponja de
tuas vagas
Do teu manto este
borrão?
Astros! noites!
tempestades!
Rolai das
imensidades!
Varrei os mares,
tufão!…
VI
Existe um povo que
a bandeira empresta
Para cobrir tanta
infâmia e cobardia!…
E deixa-a
transformar-se nessa festa
Em manto impuro de
bacante fria!…
Meu Deus! meu
Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na
gávea tripudia?
Silêncio. Musa…
chora, e chora tanto
Que o pavilhão se
lave no teu pranto!…
Auriverde pendão
de minha terra,
Que a brisa do
Brasil beija e balança,
Estandarte que a
luz do sol encerra
E as promessas
divinas da esperança…
Tu que, da
liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos
heróis na lança
Antes te houvessem
roto na batalha,
Que servires a um
povo de mortalha!…
Fatalidade atroz
que a mente esmaga!
Extingue nesta
hora o brigue imundo
O trilho que
Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no
pélago profundo!
Mas é infâmia
demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos,
heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca
esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a
porta dos teus mares!
★★★
As velhas negras
(A M.me Aline de Gusmão)
ANTÔNIO CRESPO
"Noturnos" (1882)
As velhas negras,
coitadas,
Ao longe estão
assentadas
Do batuque
folgazão.
Pulam crioulas
faceiras
Em derredor das
fogueiras
E das pipas de
alcatrão.
Na floresta
rumorosa
Esparge a lua
formosa
A clara luz
tropical.
Tremeluzem
pirilampos
No verde-escuro
dos campos
E nos côncavos do
val.
Que noite de paz!
que noite!
Não se ouve o
estalar do açoite,
Nem as pragas do
feitor!
E as pobres
negras, coitadas,
Pendem as frontes
cansadas
Num letárgico
torpor!
E cismam: outrora,
e dantes
Havia também
descantes,
E o tempo era tão
feliz!
Ai! que profunda
saudade
Da vida, da
mocidade
Nas matas do seu
país!
E ante o seu olhar
vazio
De esperanças,
frio, frio
Como um véu de
viuvez,
Ressurge e chora o
passado
— Pobre ninho
abandonado
Que a neve alagou,
desfez...—
E pensam nos seus
amores
Efêmeros como as
flores
Que o sol queima
no sertão...
Os filhos, quando
crescidos,
Foram levados,
vendidos,
E ninguém sabe
onde estão.
Conheceram muito
dono:
Embalaram tanto
sono
De tanta sinhá
gentil!
Foram mucambas
amadas,
E agora inúteis,
curvadas,
Numa velhice
imbecil!
No entanto o luar
de prata
Envolve a colina e
a mata
E os cafezais em
redor!
E os negros,
mostrando os dentes,
Saltam lépidos,
contentes,
No batuque
estrugidor.
No espaçoso e
amplo terreiro
A filha do
Fazendeiro,
A sinhá
sentimental,
Ouve um primo
recém-vindo,
Que lhe narra o
poema infindo
Das noites de
Portugal.
E ela avista,
entre sorrisos,
De uns longínquos
paraísos
A tentadora
visão...
No entanto as
velhas, coitadas,
Cismam ao longe
assentadas
Do batuque
folgazão...
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