Nos campos
GUILHERME DE AZEVEDO
“A Alma Nova” (1874)
A fragrância do
trevo e das flores selvagens
Da noite
embalsamava as tépidas bafagens:
Ao longe os astros
bons olhavam-nos dos céus.
O mundo era um
altar; as serras grandes aras;
E os cânticos da
paz corriam nas searas
Em honra do bom
Deus.
No solene silêncio
imersa ia minha alma
Em tranquila
mudez; naquela doce calma
Que sente germinar
os frescos vegetais.
De súbito uma voz
deixou-me um pouco extático:
Detive-me um
momento; olhei: — era o viático!
De noite a horas
tais,
Que andava Deus
fazendo, assim, pela campina,
Trazido pela mão
dum padre sem batina
Roubado às
sensações dum longo ressonar?
Fui seguindo o
cortejo até que numa choça
O Rei dos reis
entrava: o padre, com voz grossa,
Movia-se a rezar.
Nos restos duma
enxerga, ali, no vil casebre,
Um pobre cavador,
mordido pela febre,
Torcia as grossas
mãos nas ânsias do estertor;
E os filhos
seminus sentindo a pena ignota
Tentavam-se
esconder na velha saia rota
Da mãe louca de
dor!
A voz do sacerdote
a custo ressoava.
A palavra de amor
que ali se precisava,
Não posso dizer
bem se acaso ele a soltou.
Falava o Deus
severo e forte dos castigos,
Ou esse bom Jesus
que aos pés dalguns mendigos
Um dia ajoelhou?
Do padre tinham
medo os trêmulos pequenos.
Os magros cães
fiéis erguendo-se dos fenos
Latiam tristemente
em volta do casal:
E o levita lançava
àquela noite escura
A bênção
derradeira, erguendo a mão segura,
Num gesto
maquinal!
Depois transpondo,
à pressa, a porta da cabana,
Saía sem deixar da
sã verdade humana
O bálsamo suave, o
dom consolador!
Oh, decerto o
Jesus de que nos falam tanto
Não era o que
deixava ali, naquele canto
Sozinha a mesma
dor!
Sorria Deus, no
entanto, em toda a natureza!
Nas florestas, no
vale, nas serras, na devesa,
Nas moitas dos
rosais, no movediço mar!
O constelado azul
dir-se-ia um santuário!
Havia aquele
albergue apenas solitário,
E frio o pobre
lar!
E o rude
agonizante, o triste moribundo
Que em breve ia
partir; abandonar o mundo;
Os seus deixando
sós, na terra, sem ninguém,
Talvez ao
pressentir o fim da insana lida
Soltasse
maldições, ainda, contra a vida
E contra nós
também!
E eu lembrei-me
então daqueles bons valentes
Que lutam todo o
dia e vão morrer contentes
À noite, ao pé dos
seus, depondo os vãos lauréis;
E daqueles,
também, de frontes requeimadas
Que pela causa
santa, em pé, nas barricadas,
Se batem contra os
reis!
Lembraram-me os
heróis, serenos, bons, austeros,
Que sagram toda a
vida aos ideais severos
Da justiça e do bem;
caindo com valor,
Sem que a destra
cruel dos déspotas os dome
Nas batalhas da
ideia; opressos pela fome,
Varados pela dor!
Ó pobres
multidões! As grandes noites frias
Não cessam de
morder, famintas e sombrias,
Num banquete
nefando os vossos corpos nus!
E o lírio da
justiça, a grande flor sagrada,
Nem sempre mostra,
em vós, aberta e desdobrada,
As pétalas de luz!
Eu quando porém
lanço as vistas ao futuro
E vejo dia a dia a
despontar mais puro
O grande sol da
ideia, em rúbidos clarões,
Recordo-me que
sois a produtiva leiva
Aonde já circula
uma opulenta seiva,
De grandes
criações!
★★★
As selvas
FAGUNDES VARELA
Selvas do Novo
Mundo, amplos zimbórios,
Mares de sombra e
ondas de verdura,
Povo de Atlantes
soberano e mudo
Em cujos mantos o
tufão murmura.
Salve! minh’alma
vos procura embalde,
Embalde triste vos
estendo os braços...
Cercam-me o corpo
rebatidos muros,
Prendem-me as
plantas enredados laços!...
Pátria da
liberdade! antros profundos!
Vastos palácios!
eternais castelos!
Mandai-me os
gênios das sombrias grutas
De meus grilhões
espedaçar os elos!...
Ah! que eu não
possa me esquivar dos homens,
Matar a febre que
meu ser consome,
E entre alegrias
me arrojar cantando
Nas secas folhas
do sertão sem nome!
Ah! que eu não
possa desprender aos ermos
O fogo ardente que
meu crânio encerra,
Gastar os dias
entre o espaço e Deus
Nas matas virgens
da colúmbia terra!
Eu não detesto nem
maldigo a vida,
Nem do despeito me
remorde a chaga,
Mas ah! sou pobre,
pequenino e débil
E sobre a estrada
o viajor me esmaga!
Que faço triste no
rumor das praças?
Que busco pasmo
nos salões dourados?
Verme do lodo me
desprezam todos,
O pobre e os
grandes de esplendor cercados!
Fere-me os olhos o
clarão do mundo,
Rasgam-me o seio
prematuras dores,
E à mágoa insana
que me enluta as noites,
Declino à campa na
estação das flores.
E há tanto encanto
nas florestas virgens,
Tanta beleza do
sertão na sombra,
Tanta harmonia no
correr do rio,
Tanta delícia na
campestre alfombra...
Que inda pudera
reviver de novo,
E entre venturas
flutuar minh’alma,
Fanada planta que
mendiga apenas
A noite, o
orvalho, a viração e a calma!
★★★
No bosque
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
Uma bromélia
colossal; um quiosque;
Quatro janelas; —
uma só aberta,
De trepadeiras a
florir coberta;
Crê-se que a casa
continua o bosque.
Quando do ferro a
trepa desenrosque
Os cem braços
gentis, nos quais o aperta,
Já talvez seja a
casa então deserta,
E hera nova também
seu flanco enrosque.
Inda hoje para
vê-la à mata corro...
E à sombra úmida e
larga da mangueira,
Na água em
madeixa, que entra em um tanque a jorro,
Ela as mãos molha
e folga a tarde inteira...
E ali, noite que
espera um astro, eu morro:
E ela vive, a
calhandra da balseira...
★★★
Revolução na floresta
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
E é que estão
vivos!... Fala-me a floresta;
E a água, que os
pés desnus em flores lava:
Mas... nada desse
humor com que eu contava!...
Sombras, nem vós?
— Rochas, nem vós? — E esta!...
Brandiu-me um
tronco um galho, e, zás... na testa!...
O rubro fruto da
miuçalha brava
A vista em sangue
em mim raivando crava!
O outro dia era
tudo um grito em festa...
Em estar mal com
vocês eu nada ganho;
Prefiro em cada
cara um gesto amigo;
Gentes, não há um
crime assim tamanho...
Eu vos entendo, e
vosso espanto sigo
Em cada verde
olhar, que em vós apanho,
Paz! que ela vem:
não sois seu templo antigo?!...
★★★
Entrada na floresta
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
Há uma nódoa
branca na verdura:
Um novo aroma bom
a seiva exala:
Troncos, de pé!...
Quem vai, quem vai buscá-la?
Honra-vos, bosque,
a sua formosura!
Ei-la aí. — Esta
mata ou treme ou fala:
Tem cada galho um
êxtase; ternura
A sombra; o sol
ebria-se a fitá-la,
Num voluptuoso
espasmo de ventura.
Traçam-lhe um
ninho os pássaros; de esguelha
Olha-a um fauno;
enche-a a luz de pedrarias;
O ar a oscula, a
aquece, a faz vermelha.
Metem-se em
liquens de ouro as penedias;
Para ouvi-la, o
grotão lhe estende a orelha;
Cantam, para
embalá-la, as ramarias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...