7/05/2018

Temas Poéticos: ANIMAIS - IV


A lebre e a tartaruga
(Fábula)

CURVO SEMEDO

“Apostemos, disse à lebre
A tartaruga matreira,
Que eu chego primeiro ao alvo
Do que tu, que és tão ligeira!”

Dado o sinal da partida,
Estando as duas a par,
A tartaruga começa
Lentamente a caminhar.

A lebre tendo vergonha
De correr diante dela,
Tratando uma tal vitória
De peta ou de bagatela,

Deita-se, e dorme o seu pouco;
Ergue-se, e põe-se a observar
De que parte corre o vento,
E depois entra a pastar;

Eis deita uma vista de olhos
Sobre a caminhante sorna,
Inda a vê longe da meta,
E a pastar de novo torna.

Olha; e depois que a vê perto,
Começa a sua carreira;
Mas então apressa os passos
A tartaruga matreira.

À meta chega primeiro,
Apanha o prêmio apressada,
Pregando à lebre vencida
Uma grande surriada.

Não basta só haver posses
Para obter o que intentamos;
É preciso pôr-lhe os meios,
Quando não, atrás ficamos.

O contendor não desprezes
Por fraco, se te investir;
Porque um anão acordado
Mata um gigante a dormir.

★★★

O Morcego
AUGUSTO DOS ANJOS

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

★★★

A abelha

LUÍS DELFINO
"Poesias Líricas" (1934)

Soyez bien réveillée!...
Cazotte

Que vens tu fazer, abelha,
Lindo inseto zumbidor?
Que vens tu zumbir ao vento?
Que vens tu zumbir à flor?

Eu sei, inseto inocente,
Que para teres teu mel,
Matas a flor, em que pousas,
A lindo flor do vergel.

Encostas teus beiços de ouro,
Teus lindos, dourados pés
No colo rubro das rosas:
Se elas não sabem quem és!

Porque sua irmã te julgam;
E julgam, quando te veem,
Que és uma flor sem raízes,
Ou uma flor que asas tem.

E depois teu beiço é doce;
Sabe tanto o teu zumbir!
E a flor inclina a cabeça,
E pensa que vai dormir.

E pensa que o sono é belo,
Que noutro dia hão de vir
Com a aurora os mesmos orvalhos,
Com o sol o mesmo sorrir:

Que nos teus braços, abelha,
Ai! nos teus braços de irmã,
Há de embalá-las a noite,
Achá-las há de a manhã.

Eu sei, abelha dourada,
Eu sei qual é teu ardil:
És como a aranha; a teu modo
Urdes a rede sutil.

Mas essa rede é mortalha:
Mesmo assim fina, como é,
Ai! quem tocar a mão nela!
Ai! quem deitar nela o pé!...

Ó linda flor, foge dela,
Foge dela, ó linda flor.
Esse inseto de asas de ouro
Canta, mas olha, é traidor.

Há de dizer-te: — és a joia
Do esmeraldino roupão,
Que cai dos ombros dos montes,
E tolda em pregas o chão:

Há de chamar-te: princesa;
E o teu sólio há de beijar:
E há de dizer: — tem bem pouco,
Quem ter merece um altar:

Que há de salvar-te à tormenta,
Se a fria chuva cair:
Mas de uma coroa de orvalho
A fronte te há de cingir.

Da noite o orvalho é diamante,
É sem rival seu fulgor;
E acorda assim enfeitada,
Mais linda a mais linda flor.

E há de dizer-te inda a abelha,
Que durmas, sem te afligir;
Que nem as mesmas estrelas
Ao teu pousal hão de vir.

Que na tua mole cama,
(Que cheiro os lençóis não têm!)
Que nas cortinas, no berço,
Ninguém bulirá... ninguém...

Que as tranças de ouro, ligeiras,
Que em ondas vêm a rolar
Da espádua negra da noite,
Que tem a fronte a estrelar...

Com os pés calçados de sombra
Sobre a terra a caminhar,
Não hão de em teu seio puro
Não hão de se perfumar.

Flor, ficarás encantada,
Tu te hás de julgar feliz.
De teres, quem te ama tanto,
Quem tantas coisas te diz.

Que extremos!!... Ter amplo o espaço!
Livre o céu, bem amplo o ar!
Ter asas, e não deixar-me!
Oh! ela é quem sabe amar.

Sim! eu decerto amaria
Tão boa amiga; sei bem:
É linda: e além de linda
Quase é minha irmã também.

Mas eu furtara um momento,
A tão extremo amor,
E fora ao vale vizinho,
Saíra a ver outra flor:

Subira ao céu: minhas asas
Molhara-as em seu clarão;
E até em pensá-lo, o juro,
Sinto-me humilde no chão,

Pelos pés acorrentado,
Presa enfim pela raiz,
Embora me veja amada,
Sinto-me sempre infeliz.

Ó abelha, abelha, abelha,
Abelha gentil irmã;
Deves pois amar-me muito!
És boa, quanto és louçã.

Dorme comigo em meu berço:
A noite vem, a chegar,
E a brisa que há de embalar-nos,
Vem lá dos lados do mar —

E abrirás o teu berço
De seda, de ouro, e cetim,
Flor boa, — Abel das campinas, —
À abelha, — seu mau Caim.

E penderás a cabeça:
E quando a fores pender,
Conhecerás, mas já tarde,
Ir nesse sono morrer.

E hão de encontrar noutro dia,
Já sem perfumes, sem cor,
No teu berço mutilado
O teu cadáver de flor.

Maldita, maldita abelha,
Que para fazer teu mel,
Matas a flor em que pousas,
A linda flor do vergel.

★★★

Víbora

LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)

Baba, víbora esquálida e medonha,
Triste réptil sem pejo e amor e crenças:
Transponho, enquanto escorre-te a peçonha,
Curvas, em capitéis de ouro suspensas.

Vou, — águia, onde não vais, nem, — céu, ir pensas.
Serena, como quem ou cisma ou sonha,
Furtando o casto rosto às trevas densas,
Ala-se a Musa acesa de vergonha;

Quem afrontá-la, quem feri-la pode,
Quando atrelando dois leões à ode
Sobe inda além das regiões eternas?

Fogem-lhe em grupo os sóis, como centelhas;
Rugem-lhe atrás constelações vermelhas,
Entrando as ígneas fauces das cavernas...

★★★

Pomba e chacal

OLAVO BILAC
"Sarças de fogo" (1888)

Ó Natureza! ó mãe piedosa e pura!
Ó cruel, implacável assassina!
— Mão, que o veneno e o bálsamo propina
E aos sorrisos as lágrimas mistura!

Pois o berço, onde a boca pequenina
Abre o infante a sorrir, é a miniatura
A vaga imagem de uma sepultura,
O gérmen vivo de uma atroz ruína?!

Sempre o contraste! Pássaros cantando
Sobre túmulos... flores sobre a face
De ascosas águas pútridas boiando...

Anda a tristeza ao lado da alegria...
E esse teu seio, de onde a noite nasce,
É o mesmo seio de onde nasce o dia...


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