A lebre e a tartaruga
(Fábula)
CURVO SEMEDO
“Apostemos, disse
à lebre
A tartaruga
matreira,
Que eu chego
primeiro ao alvo
Do que tu, que és
tão ligeira!”
Dado o sinal da
partida,
Estando as duas a
par,
A tartaruga começa
Lentamente a
caminhar.
A lebre tendo
vergonha
De correr diante
dela,
Tratando uma tal
vitória
De peta ou de
bagatela,
Deita-se, e dorme
o seu pouco;
Ergue-se, e põe-se
a observar
De que parte corre
o vento,
E depois entra a
pastar;
Eis deita uma
vista de olhos
Sobre a caminhante
sorna,
Inda a vê longe da
meta,
E a pastar de novo
torna.
Olha; e depois que
a vê perto,
Começa a sua
carreira;
Mas então apressa
os passos
A tartaruga
matreira.
À meta chega
primeiro,
Apanha o prêmio
apressada,
Pregando à lebre
vencida
Uma grande
surriada.
Não basta só haver
posses
Para obter o que
intentamos;
É preciso pôr-lhe
os meios,
Quando não, atrás
ficamos.
O contendor não
desprezes
Por fraco, se te
investir;
Porque um anão
acordado
Mata um gigante a
dormir.
★★★
O Morcego
AUGUSTO DOS ANJOS
Meia-noite. Ao meu
quarto me recolho.
Meu Deus! E este
morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência
orgânica da sede,
Morde-me a goela
ígneo e escaldante molho.
"Vou mandar
levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a
tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E
vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente
sobre a minha rede!
Pego de um pau.
Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma
se concentra.
Que ventre
produziu tão feio parto?!
A Consciência
Humana é este morcego!
Por mais que a
gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente
em nosso quarto!
★★★
A abelha
LUÍS DELFINO
"Poesias Líricas" (1934)
Soyez bien réveillée!...
Cazotte
Que vens tu fazer,
abelha,
Lindo inseto
zumbidor?
Que vens tu zumbir
ao vento?
Que vens tu zumbir
à flor?
Eu sei, inseto
inocente,
Que para teres teu
mel,
Matas a flor, em
que pousas,
A lindo flor do
vergel.
Encostas teus
beiços de ouro,
Teus lindos,
dourados pés
No colo rubro das
rosas:
Se elas não sabem
quem és!
Porque sua irmã te
julgam;
E julgam, quando
te veem,
Que és uma flor
sem raízes,
Ou uma flor que
asas tem.
E depois teu beiço
é doce;
Sabe tanto o teu
zumbir!
E a flor inclina a
cabeça,
E pensa que vai
dormir.
E pensa que o sono
é belo,
Que noutro dia hão
de vir
Com a aurora os
mesmos orvalhos,
Com o sol o mesmo
sorrir:
Que nos teus
braços, abelha,
Ai! nos teus
braços de irmã,
Há de embalá-las a
noite,
Achá-las há de a
manhã.
Eu sei, abelha
dourada,
Eu sei qual é teu
ardil:
És como a aranha;
a teu modo
Urdes a rede
sutil.
Mas essa rede é
mortalha:
Mesmo assim fina,
como é,
Ai! quem tocar a
mão nela!
Ai! quem deitar
nela o pé!...
Ó linda flor, foge
dela,
Foge dela, ó linda
flor.
Esse inseto de
asas de ouro
Canta, mas olha, é
traidor.
Há de dizer-te: —
és a joia
Do esmeraldino
roupão,
Que cai dos ombros
dos montes,
E tolda em pregas
o chão:
Há de chamar-te:
princesa;
E o teu sólio há
de beijar:
E há de dizer: —
tem bem pouco,
Quem ter merece um
altar:
Que há de
salvar-te à tormenta,
Se a fria chuva
cair:
Mas de uma coroa
de orvalho
A fronte te há de
cingir.
Da noite o orvalho
é diamante,
É sem rival seu
fulgor;
E acorda assim
enfeitada,
Mais linda a mais
linda flor.
E há de dizer-te
inda a abelha,
Que durmas, sem te
afligir;
Que nem as mesmas
estrelas
Ao teu pousal hão
de vir.
Que na tua mole
cama,
(Que cheiro os
lençóis não têm!)
Que nas cortinas,
no berço,
Ninguém bulirá...
ninguém...
Que as tranças de
ouro, ligeiras,
Que em ondas vêm a
rolar
Da espádua negra
da noite,
Que tem a fronte a
estrelar...
Com os pés
calçados de sombra
Sobre a terra a
caminhar,
Não hão de em teu
seio puro
Não hão de se
perfumar.
Flor, ficarás
encantada,
Tu te hás de
julgar feliz.
De teres, quem te
ama tanto,
Quem tantas coisas
te diz.
Que extremos!!...
Ter amplo o espaço!
Livre o céu, bem
amplo o ar!
Ter asas, e não
deixar-me!
Oh! ela é quem
sabe amar.
Sim! eu decerto
amaria
Tão boa amiga; sei
bem:
É linda: e além de
linda
Quase é minha irmã
também.
Mas eu furtara um
momento,
A tão extremo
amor,
E fora ao vale
vizinho,
Saíra a ver outra
flor:
Subira ao céu:
minhas asas
Molhara-as em seu
clarão;
E até em pensá-lo,
o juro,
Sinto-me humilde
no chão,
Pelos pés
acorrentado,
Presa enfim pela
raiz,
Embora me veja
amada,
Sinto-me sempre
infeliz.
Ó abelha, abelha,
abelha,
Abelha gentil
irmã;
Deves pois amar-me
muito!
És boa, quanto és
louçã.
Dorme comigo em
meu berço:
A noite vem, a
chegar,
E a brisa que há
de embalar-nos,
Vem lá dos lados
do mar —
E abrirás o teu
berço
De seda, de ouro,
e cetim,
Flor boa, — Abel
das campinas, —
À abelha, — seu
mau Caim.
E penderás a
cabeça:
E quando a fores
pender,
Conhecerás, mas já
tarde,
Ir nesse sono
morrer.
E hão de encontrar
noutro dia,
Já sem perfumes,
sem cor,
No teu berço
mutilado
O teu cadáver de
flor.
Maldita, maldita
abelha,
Que para fazer teu
mel,
Matas a flor em
que pousas,
A linda flor do
vergel.
★★★
Víbora
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
Baba, víbora
esquálida e medonha,
Triste réptil sem
pejo e amor e crenças:
Transponho,
enquanto escorre-te a peçonha,
Curvas, em
capitéis de ouro suspensas.
Vou, — águia, onde
não vais, nem, — céu, ir pensas.
Serena, como quem
ou cisma ou sonha,
Furtando o casto rosto
às trevas densas,
Ala-se a Musa
acesa de vergonha;
Quem afrontá-la,
quem feri-la pode,
Quando atrelando
dois leões à ode
Sobe inda além das
regiões eternas?
Fogem-lhe em grupo
os sóis, como centelhas;
Rugem-lhe atrás
constelações vermelhas,
Entrando as ígneas
fauces das cavernas...
★★★
Pomba e chacal
OLAVO BILAC
"Sarças de fogo" (1888)
Ó Natureza! ó mãe
piedosa e pura!
Ó cruel,
implacável assassina!
— Mão, que o
veneno e o bálsamo propina
E aos sorrisos as
lágrimas mistura!
Pois o berço, onde
a boca pequenina
Abre o infante a
sorrir, é a miniatura
A vaga imagem de
uma sepultura,
O gérmen vivo de
uma atroz ruína?!
Sempre o
contraste! Pássaros cantando
Sobre túmulos...
flores sobre a face
De ascosas águas
pútridas boiando...
Anda a tristeza ao
lado da alegria...
E esse teu seio,
de onde a noite nasce,
É o mesmo seio de
onde nasce o dia...
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