7/03/2018

Temas Poéticos: ANIMAIS - III


A Serpente

TEÓFILO DIAS

Tivesse eu asas, como as tuas! - Fora,
Em antes de falar,
Rasgando o céu por esse espaço afora,
Às nuvens mais altívolas pairar;
E em torno perscrutar
O que vai pelo mundo.
Mas, não as tenha embora,
Eu me erguerei do fundo
Da lama, para ver
O universo ao nascer.
É esta, é esta a árvore da vida!
Em volta do seu tronco e dos seus ramos
Vou enroscar-me, estreitamente unida.
Agora, assim, vejamos
D'este universo a imagem.
Com a minha cauda imensa o chão rastejo,
Com mil cabeças erriçadas beijo
O vasto céu por cima da folhagem;
Com mil olhos perscruto a terra toda;
Com mil línguas dardejo
Atro veneno em roda.
Mas em verdade nada mais eu vejo
Que altas montanhas, que em anéis ondeiam,
Mil rios, que serpeiam,
Sob as florestas deslizando lentos,
E o corcel Semeheu que, enfurecido,
Pelas garras dos djins corre pungido,
A argêntea cauda sacudindo aos ventos.
Ei-lo muda de cor a cada instante,
Já pálido, já negro, já brilhante,
Já revestindo o azul do céu sereno,
Já da cor do veneno
Que me escorre da boca fumegante.
Causa piedade e dó.

★★★

As pombas...

RAIMUNDO CORREIA

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

★★★

A borboleta

LUÍS DA GAMA

Sobre a açucena,
Que no horto alveja,
A borboleta
Mansinha adeja;

Libando os pingos
De orvalho brando,
Que a nuvem loura
Vem salpicando.

Meneia os leques
Por entre as flores,
Que o ar perfumam
Com seus olores.

Mimosos leques
De cores finas,
— Tela formosa
Das mãos divinas,

Ora serena,
Pairando a flux,
Esmaltes mostra
Do brilho à luz.

Ora nas águas
Boiando vai,
Qual folha seca
Que ao vento cai.

Ao vir da aurora
Vai do jasmim
Beijar a cútis
D’alvo cetim.

Ao cravo, à rosa
Afagos presta,
— Que a aragem sopra
E o sol recresta.

Ao pôr da tarde
Pousa em delírio
Nas tenras folhas,
Do roxo lírio.

E o frágil corpo
Em sono brando,
Que embala a brisa,
Que vem soprando,

Alívio encontra
Na solidão
Até que d’alva
Rompa o clarão.

★★★

A tapera

LÚCIO DE MENDONÇA

“Les temps sont acomplis, les choses
se sont tues.”
Leconte de Lisle

A meio vale escuro, à beira do caminho.
Está silenciosa a velha casa em ruína...
Desabitado lar, abandonado ninho,
O horror da solidão fantástica o domina.

O horror da solidão, por quê? também na mata,
Na virgem, secular, inóspita floresta,
Há uma calma grande, em que a alma se dilata;
E, ao invés do terror, que portentosa festa!

Mais funda é a solidão na agreste cumiada
Onde não pisou nunca o bípede tirano;
Mas lá quanta alegria aberta e iluminada!
- O cunho do terror vem dos vestígio humano.

Vê-se um velho postigo escancarado ao poente...
O tosco parapeito apodreceu... e vê-se
Que ali chorou, talvez, de saudades do ausente
Uma noiva fiel, que de esperar morresse.

A bela porta, franca outrora, está fechada...
É ninho de répteis a trapedira amiga.
Que convidava a entrar na plácida morada,
Que já ninguém procura e a ninguém mais abriga.

Pobre, inútil ruína! Olhemos de mais perto,
Pelo teto, que abriu dos temporais o açoite...
Brotam ervas do solo esquecido e deserto...
E este era o coração da casa, ao lar, à noite!

Aqui se reunia, em pacífico bando,
A família, a sonhar os dias do futuro,
Enquanto, fora, o vento andava praguejando
E a noite ia seguindo o seu caminho escuro.

Ali, para o nascente, havia um aposento
Pequeno e recatado... ai! ali, porventura,
Morava a sinhá-moça, o riso, o encantamento
Da rústica vivenda, a doce criatura!

No vão dessa janela aberta para a estrada
Quanta cena de afeto ainda se imagina!...
Um cavaleiro ao longe a sumir-se, e inclinada
Ao parapeito, a branca e chorosa menina...

Desconjuntado, já caindo-lhe os pedaços,
Vê-se um velho oratório... e, coberto de poeira,
Um Cristo mutilado abre os divinos braços...
Quanta fé o beijou na angústia derradeira!

Cá fora, indiferente, ingratamente alheio,
Passa o vento da mata, o alado vagabundo.
Sem um beijo, sequer, ao esqueleto feio
Da ruína sem dono, esquecida no mundo!

Somente à noite agora, ao ter da lua triste
A compassiva luz fantástica e serena,
Reanima-se a tapera e ressuscita e existe
De um sombrio existir que mete medo e pena.

Existe uma alma assim... Outrora foi ruidosa.
Clara, feliz, brilhante à luz da primavera...
Agora é nua e só, - sombra silenciosa,
Morta à beira da vida... a lúgubre tapera!

★★★

A cigarra e a formiga

JOÃO DE DEUS

Como a cigarra o seu gosto
É levar a temporada
De Junho, Julho e Agosto
Numa cantiga pegada,
De Inverno também se come,
E então rapa frio e fome!

Um Inverno a infeliz
Chega-se à formiga e diz:
- Venho pedir-lhe o favor
De me emprestar mantimento,
Matar-me a necessidade;
Que em chegando a novidade,
Até faço um juramento,
Pago-lhe seja o que for.

Mas pergunta-lhe a formiga:
"Pois que fez durante o Estio?"
- Eu, cantar ao desafio.
"Ah cantar? Pois, minha amiga,
Quem leva o Estio a cantar,
Leva o Inverno a dançar!"


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