Texto publicado originalmente na revista "Diário de Notícias", em edição de 1957. Transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2018)
Dificuldades
de "O Hissope"
O problema das transformações
sofridas pelo poema "O Hissope", quanto ao número de cantos e aos versos
acrescentados, suprimidos ou modificados é mais um problema para especialistas,
e parece de pouca importância
para o leitor comum, curioso apenas de saber que interesse tem esse poeta, para
nós, no dia de hoje.
Acontece, porém, que essas
transformações — de acordo com o que consta por tradição — não resultariam
apenas de um critério literário, ou de modificações no desenvolvimento do tema
básico, isto é, a desavença entre um Deão e um Bispo: antes, estariam ligadas a acontecimentos
intimamente relacionados com o poeta; e, nessas condições, deixam de ser um simples
episódio literário, passando a ter um valor de testemunho quanto à pessoa moral de Antônio Diniz da Cruz e Silva.
A princípio, parece mero assunto de
composição literária. Ramos Coelho, na edição de 1879, refere, baseado na
opinião de contemporâneos do Poeta, que "O Hissope", dividido, primeiro
em sete cantos, teria passado a oito, pelo desdobramento do canto quarto, que
passaria a quarto e quinto, seguindo-se os demais, na mesma ordem, mas alterados
na numeração.
Segundo Inocêncio (na citação de R.
C.), o poema teria começado com seis cantos; o quarto fora tão ampliado que se transformara
em dois, desdobrando-se em quarto e quinto; o sexto fora composto separado, e
os antigos quinto e sexto teriam passado respectivamente a sétimo e oitavo.
Timotheo Lecussan Verdier, que editou em
Paris "O Hissope", mais de uma vez, dá uma outra versão a respeito.
Segundo ele, as modificações se teriam produzido no canto quinto, em que o
Poeta tratava da reedificação de Lisboa, depois do terremoto; da expulsão dos
Jesuítas; da reforma da Universidade de Coimbra, etc., — enfim, todas as realizações
operadas pelo Marquês de Pombal. Com a queda do Marquês, o Poeta cautelosamente
refundira esse canto, retirando tudo quanto o pudesse comprometer, e recolhendo
as cópias que porventura existissem dessa versão. Assim diminuída a segunda
parte desse canto quinto, (que na verdade corresponderia ao sexto), o que
restou teria sido agregado à primeira parte, que, antes, parava no verso "Com
a pesada massa o duro casco".
Ramos Coelho faz suas objeções a essa
informação de T. L. Verdier. É certo que o poema parece já estar em sua forma definitiva,
quando o Poeta deixa Portugal. Entre a sua partida para o Brasil e a queda do
famoso Ministro, — a estarem certas as datas — medeia tão pouco tempo que não
se compreende como essas alterações possam ter sido feitas. No entanto, é preciso
não esquecer que o Poeta trabalhava muito rapidamente, e "O Hissope"
passa por ter sido composto em dezessete dias. Antes de partir para o Brasil,
ao fornecer uma cópia de poema ao filho do Marquês, não é impossível que tenham
sido incluídos nela os louvores que então se usava fazer aos poderosos, e muito
principalmente quando o poderoso era daquelas proporções. Nem se deve estranhar
que tal acontecesse, pois muitas vezes Diniz celebrou o Marquês e suas obras,
mesmo em ocasiões desfavoráveis, quando não se tratava dos grandes empreendimentos
que constituem a glória positiva daquele Ministro. E não só Diniz: não vemos
até o nosso Cláudio Manuel da Costa vociferar contra aquele genovês J. B. Pelle
a quem Pombal mandara cortar as mãos, etc., por uma suposta tentativa de
atentado contra a sua vida? Coisas do século dezoito. E nem sequer apenas do
século dezoito, pois em questões de lisonja, como em muitas outras, os homens
não têm mudado muito; e, se nos confrange ver os poetas igualados aos interesseiros
vulgares é porque sempre os desejávamos, na nossa esperança, um pouco mais
livres do que eles, de certas urgências e ambições. Mas há sempre maneiras de lisonjear
os que estão no poder, para arranjar certos benefícios. Os nossos pobres poetas
do século dezoito viviam numa dupla agonia: conseguirem algum meio de vida compatível
com a sua ilustração, e escaparem, ao mesmo tempo, aos "naires"
e "bonzos" de que falava Filinto Elísio, aos calabouços, às fogueiras
e demais loucuras da época. Então, faziam esses sonetos horríveis, essas odes, esses
ditirambos, suficientemente claros para dizerem à posteridade: "Perdoai-nos,
senhores, mas se não fizéssemos isto, davam cabo de nós". (Não querendo
dizer que estejamos de acordo com a prática, — mas que a compreendemos).
Lecussnn Verdier, homem empreendedor,
amante das Belas Letras, amigo de Filinto Elísio (e que até o homiziou em sua
casa quando a Polícia andava atrás dele); cujas ideias verdadeiras ou supostos
lhe valeram o exílio, em 1808, — por que havia de mentir sobre o caso de "O
Hissope", que editou e prefaciou?
E, se admitirmos que Antônio Diniz foi
um homem sensível, de certo modo humilhado pela sua origem obscura, que tantas dificuldades
lhe trouxe para a obtenção do sempre suspirado Hábito de Avis, — todas essas
atitudes forçadas, essas celebrações, esses
poemas encomiásticos não poderiam ser uma das causas de sua melancolia expressa
em tantos versos, e derramada fuscamente em sua vida? Sua natureza folgazã, a
princípio, modifica o ritmo alado das composições juvenis, e, com o tempo, vai-se
concentrando em movimento mais grave. Em "O Hissope", ele ainda ri, é
certo, — mas o riso amargo de quem já viu a vida de frente, isto é, com tudo aquilo
que ele colocou dentro do famoso poema como quadro para os ridículos fatos
acontecidos em Elvas: o país das quimeras regido pelo gênio das Bagatelas, que
tem em redor de si a Lisonja, a Precedência, a Excelência, a Senhoria, o Dom,
as Cortesias, etc.
Ao publicar a sua edição de "O Hissope"
segundo o manuscrito em oito cantos da casa Sacchetti, o professor José Pereira
Tavares refere-se a uma
cópia do poema em seis cantos, apenas, — talvez o primitivo esboço. A versão em
oito cantos é datada de 1774. Analisando-se esses cantos, verifica-se que se
compõem de um número muito irregular de versos, mas oscilando entre 227 (2º
canto) e 374 (8º canto), exceto o quinto e o sétimo cantos, em que se contam
respectivamente, 614 e 408 versos, — ou seja: 1º, 296; 2º,
227; 3º, 319; 4º, 348; 5º, 614; 6º, 366; 7º, 408; 8º, 374. Esse hipertrofiado
canto 5º faz pensar no que Lecussan Verdier afirmou a seu respeito, quanto aos
encômios a Pombal, incluídos e retirados.
Cecília Meireles
Diário de Notícias, 11 de agosto de 1957.
Diário de Notícias, 11 de agosto de 1957.
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