À memória de uma ave
AUTA DE SOUZA
“Poesias”
“Poesias”
Quando morre uma criança,
Diz-se que o pálido anjinho
Voou como uma esperança.
Foi para o céu direitinho.
Mas nossa mente se cansa
A voar de ninho em ninho,
Interrogando a lembrança,
Quando morre um passarinho.
Só eu, se alguém diz que a vida
De uma avezinha querida
Se extingue como um clarão.
Ponho-me a rir, pois, divina!
Ouço cantar, em surdina,
Tu’alma em meu coração.
★★★
Pássaros
Je veux changer mes pensées en oiseaux.
C. MAROT
MACHADO DE ASSIS
“Falenas” (1870)
“Falenas” (1870)
Olha como,
cortando os leves ares,
Passam do vale
ao monte as andorinhas;
Vão pousar na
verdura dos palmares,
Que, à tarde,
cobre transparente véu;
Voam também como
essas avezinhas
Meus sombrios,
meus tristes pensamentos;
Zombam da fúria
dos contrários ventos,
Fogem da terra,
acercam-se do céu.
Porque o céu é
também aquela estância
Onde respira a
doce criatura,
Filha de nosso
amor, sonho da infância,
Pensamento dos
dias juvenis.
Lá, como esquiva
flor, formosa e pura,
Vives tu
escondida entre a folhagem,
Ó rainha do
ermo, ó fresca imagem
Dos meus sonhos
de amor calmo e feliz!
Vão para aquela
estância enamorados,
Os pensamentos
de minh'alma ansiosa;
Vão contar-lhe
os meus dias mal gozados
E estas noites
de lágrimas e dor.
Na tua fronte
pousarão, mimosa,
Como as aves no
cimo da palmeira,
Dizendo aos ecos
a canção primeira
De um livro
escrito pela mão do amor.
Dirão também
como conservo ainda
No fundo de
minh'alma essa lembrança
De tua imagem
vaporosa e linda,
Único alento que
me prende aqui.
E dirão mais que
estrelas de esperança
Enchem a
escuridão das noites minhas.
Como sobem ao
monte as andorinhas,
Meus pensamentos
voam para ti.
★★★
O Sabiá
BERNARDO GUIMARÃES
“Inspirações
da Tarde” (1858)
L'oiseau semble la véritable embléme
du chrétien ici-bas; il pref`ère, comme le
fidèle, la solitude au monde; le ciel à la
terre, et sa voix bénit sans cesse les
merveilles du Créateur.
CHATEAUBRIAND
Tu nunca
ouviste, quando o sol é posto,
E que do dia
apenas aparece,
Por sobre os
ermos píncaros do ocaso,
A orla extrema
do purpúreo manto;
Quando lã do
sagrado campanário
Já reboa do
bronze o som piedoso,
Abençoando as
horas do silêncio;
Nesse instante
de místico remanso,
De maga soidão,
em que parece
Pairar bênção
divina sobre a terra,
No momento em
que a noite vem sobre ela
Desdobrar o seu
manto sonolento;
Tu nunca
ouviste, em solitária encosta,
De anoso tronco
na isolada grimpa,
A voz saudosa do
cantor da tarde
Erguer-se
melancólica e suave
Como uma prece
extrema, que a natura
Envia ao céu, —
suspiro derradeiro
Do dia, que
entre sombras se esvaece?
O viandante para
ouvir-lhe os quebros
Para, e se
assenta à margem do caminho;
Encostado aos
umbrais do pobre alvergue,
Cisma o colono
aos sons do etéreo canto
Já das rudes
fadigas deslembrado;
E sob as asas
úmidas da noite
Aos meigos sons
em êxtase suave
Adormece
embalada a natureza.
Quem te inspira
o doce acento,
Sabiá melodioso?
Que mágoas
triste lamentas
Nesse canto
suspiroso?
Quem te ensinou
a canção,
Que cantas ao
pôr do dia?
Quem revelou-te
os segredos
De tão mágica
harmonia?
Acaso a ausência
tu choras
Do sol, que além
se sumira;
E teu canto ao
dia extinto
Mavioso adeus
suspira?
Ou nessas notas
sentidas,
Exalando o terno
ardor,
Tu contas à meiga
tarde
Segredos do teu
amor?
Canta, que o teu
doce canto
Nestas horas tão
serenas,
Nos seios d'alma
adormece
O pungir de
acerbas penas.
Cisma o vate ao
brando acento
De tua voz
harmoniosa,
Cisma, e
deslembra tristuras
De sua vida
afanosa.
E ora n'alma se lhe
acorda
Do passado uma
visão,
Que em perfumes
de saudade
Vem banhar-lhe o
coração;
Ora um sonho lhe
vislumbra
Pelas trevas do
porvir,
E uma estrela
d'esperança
Em seu céu lhe
vem sorrir:
E por mundos
encantados
Lhe desliza o
pensamento.
Qual nuvem que o
vento embala
Pelo azul do
firmamento.
Canta, avezinha
amorosa,
Em teu asilo
soidoso;
Saúda as horas
sombrias
Do silêncio e do
repouso;
Adormenta a
natureza
Aos sons de tua
canção;
Canta, até que o
dia morra
De todo na
escuridão.
Assim o bardo
inspirado,
Quando a eterna
noite escura
Lhe anuncia a
fatal hora
De baixar à
sepultura,
Um adeus supremo
à vida
Sobre as cordas
modulando,
Em seu leito
sempiterno
Vai adormecer
cantando.
Colmou-te o céu
de seus dons,
Sabiá melodioso;
Tua vida
afortunada
Desliza em perene
gozo.
No tope do
tronco excelso
Deu-te um trono
de verdura;
Deu-te a voz
melodiosa
Com que encantas
a natura;
Deu-te os ecos
da valada
Pra repetir-te a
canção;
Deu-te amor no
doce ninho,
Deu-te os céus
da solidão.
Corre-te a vida
serena
Como um sonho
afortunado;
Oh! que é doce o
teu viver!
Cantar e amar
eis teu fado!
Cantar e amar! —
quem dera ao triste bardo
Assim viver um
dia;
Também nos céus
os anjos de Deus vivem
De amor e de
harmonia:
Quem me dera
qual tu, cantor dos bosques,
Na paz da
solidão,
Sobre as ondas
do tempo ir resvalando
Aos sons de uma
canção,
E exalando da
vida o sopro extremo
Num cântico de
amor,
Sobre um raio da
tarde enviar um dia
Minh'alma ao
Criador!...
★★★
Sabiá-Rei
(A César Muniz)
CRUZ E SOUZA e
VIRGÍLIO VÁRZEA
“Tropos e Fantasias” (1885)
“Tropos e Fantasias” (1885)
O sabiá rufiava as asas pardas e amplas,
sempre que fazia explosir, como uma girândola no ar inefável e translúcido, a
sua escala cromática, de gorjeios claros e espontâneos, pela saleta de uns tons
violáceos, com filetes e cinzeladuras douradas.
Quando o sol, gloriosamente tranquilo,
numa fartura de luz benéfica, numa refrangibilidade prismática, atirava os
venábulos cintilantes pela janela da luxuosa saleta, fazia bem ouvir-se,
consorciados à coloração vermelha, rubra, os artísticos concertos do
incomparável maestro das sinfonias selvagens, do empório largo da natureza
criadora.
Era o deslumbramento da harmonia e da
luz.
E quanto mais o sol fulgia, coruscando
do alto, em rutilante cascata, mais o sabiá cantava, cantava, cantava sempre.
Parecia que nos raios do grande Filósofo
da evolução natural, vinha presa, fundida, corporificada toda aquela música
sonorosa e adoravelmente casta que lhe saía do laringe metálico.
Sentia-se como que o irromper
imponentíssimo de heróis, de espíritos saudáveis, em marchas triunfais, em
pompas, pela curvidão marmórea do Azul, ao escutar-se o primoroso tenor das
selvas.
Como cantava bem; como os trinados
cheios, como os vocábulos musicalizados se derramavam todos, com orgulho,
inflados de brio, recortados de uma bravura nervosa, sobre os objetos
silenciosos — os ricos móveis facetados de madrepérola, os divãs de custo
superior, os contadores róseos, as chaises-longues, o piano, sobre o
qual dormiam algumas rêveries de Schubert, as cômodas poltronas
austeras, os cristais finíssimos, as estatuetas representando amores pagãos, os
reposteiros suntuosos, cor marron, as múltiplas fanfreluches chinesas,
as esquisitas ânforas gregas—tudo na imobilidade da treva.
Um dia, deixaram a porta da gaiola
aberta e o sabiá, lembrando-se que tinha talvez um lar mais livre na amplitude
livre da floresta, um ninho mais amigo, mais carinhoso, na doçura consoladora
da paina e do musgo, bateu, abriu as asas de gênio inspirado, num último acorde
de músico e vibrante e... fugiu, rasgando a transparência das esferas alegres e
infinitas.
Mas um caçador ingrato que rodeava
aquelas paragens, vendo o esvoaçar vitorioso do pássaro cantarolador, disparou
um tiro valente e o sabiá caiu...
Nos seus olhos havia ainda os
derradeiros lampejos do tropicalismo da raça.
E o sangue a rebentar-lhe da ferida
aberta, como que parecia também salmodiar a nênia sombria da ingratidão dos
homens pelas Aves da Luz.
★★★
O Beija-Flor
(À Susana)
BRASÍLIO MACHADO
“Madressilvas” (1876)
Beija-flor das penas de ouro
que voas de flor em flor,
onde é que tens o tesouro
da prole do teu amor?
Em que florido raminho
foste prender o teu ninho?
Conheço os arbustos verdes
onde as aves vão dormir;
mas tu na selva te perdes
quando te quero seguir...
E embalde pela folhagem
vejo o rastro da passagem.
Sei o lugar onde insetos
em coroas se vão formar,
e em andejos inquietos
põem-se à tardinha a bailar;
só tu me ocultas, medroso
o teu ninho perfumoso.
Quando esvoaças no prado
a rosa treme de amor,
e abre o seio corado
porque és o noivo da flor...
E desces, desces a ela
tanto, tanto! beija-flor!
E a brisa expulsa do cálix
onde procuras pousar,
a borboleta dos vales
e as abelhas do lugar;
para que não saibas que as flores
volúveis são nos amores.
E eu, contemplando estas cenas
espero que a viração
erga-te as azas pequenas
para a azulada amplidão,
e desça contigo aonde
teu alvo ninho se esconde...
E desça para embalar-te
mimoso filho do céu,
no berço, que em toda a parte
debalde procuro eu...
no berço que eu imagino
ser um lírio pequenino!
Beija-flor de penas de ouro,
tu que és o noivo da flor,
não escondas o tesouro
da prole do teu amor!
Para o seio destas rosas
traze o ninho, beija-flor!
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