À Noite
GUILHERME DE AZEVEDO
“A Alma Nova” (1874)
“A Alma Nova” (1874)
Eu gosto de velar a
percorrer os mundos
Ó noite dos bons cânticos,
Aos lívidos clarões dos
astros vagabundos
Nos êxtases românticos,
Enquanto a vil cidade, a
cortesã devassa
Dos falsos ouropéis,
Com seus famintos cães, a
sua lua baça
E os seus negros bordéis,
Ressona torpemente aos
beijos deletérios
Dalguns velhos amantes;
— os longos hospitais e os
tristes cemitérios
Que a afagam delirantes!
Contudo eu também sei que
existe muito instante
De gelos, em que tu,
Feroz, cravas o dente agudo
e penetrante
No pobre seio nu!
Que há horas em que vens,
nas úmidas cidades,
Nas choças, nos esgotos,
Cuspir cinicamente as frias
tempestades
No seio vil dos rotos,
Sem ter pena, sequer, da
pobre mãe que passa
Um dia sem ter pão,
Nem dessa esfarrapada e
velha populaça
Que rosna como um cão!...
Mas em breve deixando as
tenebrosas vestes,
O manto dos horrores,
E o gládio vingador das
cóleras celestes
Ó noite dos amores,
Retomas o tom puro e santo
do mistério
Da pálida mulher
Que vai colher, cismando,
um lírio ao cemitério
E ao campo um malmequer!
Em horas de tormenta és a
mulher colérica!
Até cospes na cruz!
E formam-te espirais na
coma atmosférica
As víboras de luz!
Porém no teu regaço,
altivo, casto, enorme,
Em doce e plena paz,
É que a virtude sonha e que
a desgraça dorme
Depois das horas más,
E em lúcidos cristais há
cintilantes vinhos;
Os casos mais galantes;
As lânguidas canções; os
belos desalinhos
E os gestos provocantes!
Ó filha do silêncio! Aos
puros alabastros
Dos ombros ideais,
Se Deus arremessasse a
quantidade de astros
Que em ti brilham a mais,
As pálidas visões que
passam doloridas,
E um tanto contristadas,
Haviam de surgir de
estrelas revestidas
Em trajos de alvoradas!
Em ti cuida escutar uns
sons inexprimíveis
De lânguidas canções,
O pobre sonhador de coisas
impossíveis
Que adora as solidões!
E quando o resplendor de
mundos luminosos
Na tua fronte cinges,
Os gatos sensuais,
elétricos, nervosos
Repousam como esfinges;
Enquanto as combustões dos
lívidos cometas,
Errantes e fatais,
Consomem lentamente as
grandes borboletas
Dos nossos ideais!
★★★
Ritmos
da Noite
CRUZ E SOUZA
“Missal” (1893)
Lá fora a noite é estrelada
e quente.
Chego da rua. A vida ferve
ainda nos cafés com intensidade. No Londres, uns imbecis dourados de
popularidade fácil saudaram-me, e, nessa saudação, senti o ar episcopal das
proteções baratas que os conselheiros costumam dar aos jovens esperançosos.
Eu percebi o conselherismo
e tive uma careta, uma grimace
diabólica de ironia…
Oh! Oh! infinitamente
incomparáveis os caríssimos imbecis dourados de popularidade fácil…
— No meu quarto, entro,
enfim, agitado, da rua, com mil ideias, com mil impressões e dúvidas e
fundamente considero, tenho tão estranhos monólogos mentais, que quase que me
alucinam.
A luz da vela, em torno à
sombra do quarto, põe uma claridade velada, penumbrada, quase morta.
Um retrato de Daudet,
pendurado à parede, parece ter para mim uma piedade no seu fino perfil de
Cristo alemão.
Ah! por que será que na
hora dos estrangulamentos supremos, quando a dor nos alanceia e torna velhos,
os objetos têm todos, para nós, uma feição singularmente diversa da que têm
sempre – ou sinistra, ou agressiva, ou piedosa?
Por que será que nas longas
noites desolação, quando uma ventania de desespero sopra por trompas de bronze
do nosso peito, todas as coisas desfalecem aos nossos olhos, as perspectivas se
anulam, os astros louros se apagam e a própria luz de uma lamparina ou de uma
vela projeta claridade dúbia, que antes punge, que antes apunhala e dói, do que
alumina!?
O coração cerra-se-nos de
uma névoa triste, e, como um solitário monge, põe-se a balbuciar não sei para
que mundos distantes, orações indefinidas, kiries
eternos e nostálgicos, de um nebuloso sentimentalismo, que estão no fundo de
todos os seres espirituais.
São fluidos íntimos,
virginais, da alma, que sobem para o desconhecido; são incensos inefáveis de
que está cheio o turíbulo do nosso amor e que, nos lancinantes momentos em que
se desmorona para nós alguma força nobre, alguma força edificante, partem
candidamente para as regiões do Ideal, país jamais descoberto e que só o
pensamento logrou conhecer…
Vão lá saber qual é a tecla
sombria que vibra o nosso organismo em certas horas, qual é a corda que pulsa,
quais os nervos que se agitam!
Por uma impressionabilidade
indizível, por um toque no orgulho,
por uma mancha no cetim branco da Arte, lá fica uma nobre cabeça doente, sob a
febre das nevroses, sentindo eboluir o sangue em chama e sentindo até que o
cronômetro regular do pulso alterou a marcha das vibrações…
Tudo o que nos vem às
ideias são princípios de demolição, de destruição, armados das rijas couraças e
das agudas lanças da sua inevitabilidade.
O mundo surge-nos logo como
uma formidável floresta dos tempos primitivos e só tremendos animais de uma
colossal corpulência urram e bufam sanguinolentos.
E a noite, que verte fel no
espírito, arrebatando-o não sei para que inferno de agitações, não sei para que
tercetos do Dante, ainda mais peadas barras de chumbo arroja sobre o florido
arbusto da Crença, cujas flores luminosas já a indiferença humana calcou a pés,
ou a ruidosa, jogralesca multidão dos cafés desdenhosamente cuspiu em cima.
E, nessas batalhas,
batalhas vivas, acres, onde o coração está eternamente a sangrar, a sangrar;
nesses rudes combates, ao mesmo tempo tão puros e fidalgos, a carne é o menos
que fica ferido, os músculos são o menos que se perde, os nervos o menos que se
atrofia.
O que se perde de todo é a
alta penetração da Vida, do Mundo e dos Homens, para terrivelmente se adquirir
uma doença amarga, aguda e dilacerante, que se constitui das frias e tortuosas
análises e que se chama – Psicologia.
★★★
A Noite
AUGUSTO DOS ANJOS
“Eu” (1912)
A nebulosidade ameaçadora
Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora.
A água transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do oceano e entre os navios
Troa bárbara zoada de ais bravios,
Extraordinariamente atordoadora.
À custódia do anímico registro
A planetária escuridão se anexa...
Somente, iguais a espiões que acordam cedo,
Ficam brilhando com fulgor sinistro
Dentro da treva onímoda e complexa
Os olhos fundos dos que estão com medo!
★★★
Noites
amadas
AUTA DE SOUZA
“Poemas”
“Poemas”
Ó noites claras de lua cheia!
Em vosso seio, noites chorosas,
Minh’alma canta como a sereia,
Vive cantando num mar de rosas;
Noites queridas que Deus prateia
Com a luz dos sonhos das nebulosas,
Ó noites claras de lua cheia,
Como eu vos amo, noites formosas!
Vós sois um rio de luz sagrada
Onde, sonhando, passa embalada
Minha Esperança de mágoas nua...
Ó noites claras de lua plena
Que encheis a terra de paz serena,
Como eu vos amo, noites de lua!
★★★
Noite branca
LUÍS DELFINO
“Rosas
Negras”
(1938)
A noite branca, a
noite enluarada
É tua irmã: Aonde ela
dorme? Aonde?
Em que astro canta?
Em que lagoa nada?
Em que pedaço azul do
céu se esconde?
Em toda parte os
vossos olhos ponde;
Buscai a egípcia
lúbrica e estrelada:
Há quem seu ninho de
águia negra sonde?
Mar infiel, em teu
seio anda enterrada?
Destino, foi assim
que ma fizeste:
Pairam-lhe os sóis
aos pés em muda prece;
Um peplo sideral seu
corpo veste.
Donde vem tanta
sombra então? Parece
Que é toda luz a
pérola celeste,
E é dela que em
minh’alma a noite desce.
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