Música Brasileira
OLAVO BILAC
“Tarde” (1919)
“Tarde” (1919)
Tens, as vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.
Mas, sobre essa
volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.
És samba e jongo,
xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
E em nostalgias e
paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
★★★
Música Etérea
Luís Delfino
“Imortalidades” (1941)
“Imortalidades” (1941)
Não cansei inda de tamanha empresa,
Das deusas todas desprezar, somente
Por amar esta lânguida princesa.
Cega-me, Helena, o meu amor ardente:
A luz demais nos cega com certeza;
E ata-me a ti indômita corrente;
Entre nós interponha-se o oceano,
E o céu mesmo entre ti e o meu desejo:
O meu caminho a insídia, o crime, o dano
Erice-o; no fim dele erguer-te vejo.
É por ele que vou; tracei meu plano:
Rapidamente, eis surge abrupto o ensejo;
E ouço cantar-me a música de um beijo
Nesse teu lindo rosto soberano...
★★★
Junto ao piano
BRASÍLIO MACHADO
“Madressilvas” (1876)
“Madressilvas” (1876)
I
Era de noite. Ao
piano
ela sentou-se e
cantava.
Nem uma estrela a
escutava
que negro era o céu
então...
Apenas longe,
entreabrindo
as pétalas do
devaneio
estremecia de
anseio
uma flor, — o
coração!
Ai! que era um
canto suave,
como não canta uma
ave
da primavera ao
fulgor...
Dize-me agora,
baixinho:
nunca sentiste o
carinho
da leve asa do
amor?
II
Aquele canto
tristonho
só nos lábios da
saudade
geme assim. A
mocidade
desfere um hino
risonho.
A voz onde estala o
trino
da alegria e da
esperança,
ai! não, ai! não
alcança
aquele tema divino.
É preciso ter
sofrido,
ter chorado, ter
gemido
nos estos de alguma
dor...
Dize-me agora
baixinho:
nunca sentiste o
espinho
que tem da saudade
a flor?
III
Quem sabe se no
declive,
em que tu desces
agora,
alguma fonte sonora
da ilusão inda
derive?
se em tua alma
angustiada
um raio da
primavera
entreabrir inda
pudera
do porvir a luz
amada?...
E se assim fora,
chorosa
com a saudade não
gemeras
aqueles doídos ais!
Depois, coroada de
rosas,
aquela noite
esqueceras...
ai! não cantarias
mais!
★★★
OLAVO BILAC
“Alma inquieta” (1888)
I
Quando do teu violino, as asas entreabrindo
Mansamente no espaço, iam-se as notas
quérulas,
Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo
Os seus cofres de pérolas,
— Minhas crenças de amor, esquecidas em calma
No fundo da memória, ouvindo-as recebiam
Novo alento, e outra vez do oceano de
minh’alma,
Arquipélago verde, à tona apareciam.
E eu via rutilar o meu amor perdido,
Belo, de nova luz e novo encanto cheio,
E um corpo, que supunha há muito consumido,
Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.
Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista!
E minh’alma revia, alucinada e louca,
Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista,
Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.
Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto,
Como quem, por acaso, um dia, entrando as
portas
De um cemitério, vai achar vivas a um canto
As suas ilusões que acreditava mortas,
E ficava a pensar... como se não partir
Essa fraca madeira ao teu toque violento,
Quando com tanta febre a paixão se estorcia
Dentro do pequenino e frágil instrumento!
Porque, nesse instrumento, unidos num só
peito,
Todos os corações da terra palpitavam;
E havia dentro dele, em lágrimas desfeito,
O amor universal de todos os que amavam.
Rio largo de sons, tapetado de flores,
A harmonia do céu jorrava ampla e sonora;
E, boiando e cantando, alegrias e dores
Iam corrente em fora...
A Primavera rindo esfolhava as capelas,
E entornava no chão as ânforas cheirosas:
E a canção acordava as rosas e as estrelas,
E enchia de desejo as estrelas e as rosas.
E a água verde do mar, e a água fresca dos
rios,
E as ilhas de esmeralda, e o céu
resplandecente,
E a cordilheira, e o vale, e os matagais
sombrios,
Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol
ardente:
— Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e
amava!
O amor, caudal de fogo atropelada e acesa,
Entrava pelo sangue e pela seiva entrava,
E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!
E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio,
O teu pobre violino, o teu amor primeiro:
E inda nas cordas há, como um leve arrepio,
A última vibração do arpejo derradeiro...
Como, ígneas e imortais, num redemoinho
insano,
Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis,
Pairam constelações virgens do olhar humano,
Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:
— Assim no teu violino, artista! adormecido
À espera do teu arco, em grupos vaporosos,
Dorme, como num céu que não alcança o ouvido,
Um mundo interior de sons misteriosos...
Suspendam-me ao ar livre esse doce
instrumento!
Deixem-no ao sol, em glória, em delirante
festa!
E ele se embeberá dos perfumes que o vento
Traz dos frescos desvãos do vale e da
floresta.
Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos!
As rosas se abrirão em suas cordas rotas!
E ele derramará sobre os verdes caminhos
Da antiga melodia as esquecidas notas!
Hão de as aves cantar, hão de cantar as
flores...
Os astros sorrirão de amor na imensa esfera...
E a terra acordará para os novos amores
De nova primavera!
II
Porque, como Terpandro acrescentou à lira,
Para a tornar mais doce, uma corda mais pura,
Que é a corda onde a paixão desprezada
suspira,
E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;
Também desse instrumento às quatro cordas de
ouro
O Desespero, o amor, a Cólera, a Piedade,
— Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o
choro
Eterno e a eterna dor da corda da Saudade.
É saudade o que sinto, e me enche de ais a
boca,
E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga,
Quando te ouço tocar: saudade ansiosa e louca
Do primitivo amor e da beleza antiga...
Para trás! para trás! Basta um simples arpejo,
Basta uma nota só... Todo o espaço estremece:
E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo
Quase morta de dor, Madalena aparece...
Ao luar de Verona, a amorosa cabeça
De Julieta desmaia entre os braços do amante:
Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça,
E na devesa em flor a cotovia cante...
Viúva triste, que à paz do claustro pede
alívio,
Para a sua viuvez, para o seu luto imenso,
Branca, sob o livor do escapulário níveo,
Heloísa ergue as mãos, numa nuvem de
incenso...
E na suave espiral das melodias puras,
Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes,
Mostrando ao meu amor as suas amarguras,
Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.
Canta! o rio de sons que do seio de brota
E, entre os parcéis da dor, corre,
cascateando,
E vai, de vaga em vaga, e vai, de nota em
nota,
Ao sabor da corrente os sonhos arrastando;
Que pelo vale espalha a cabeleira inquieta,
Refrescando os rosais, e, em leve burburinho,
Um gracejo segreda a cada borboleta,
E segreda um queixume a cada passarinho;
Que a todo o desconforto e a todo o sofrimento
Abre maternalmente o regaço das águas,
— É o rio perfumado e azul do Esquecimento,
Onde se vão banhar todas as minhas mágoas...
★★★
Som
CRUZ E SOUZA
“Missal” (1893)
“Missal” (1893)
Trago todas as
vibrações da rua, por um dia de sol, quando uma elétrica corrente de movimento
circula no ar…
Mas, de todas as
vibrações recolhidas, só me ficou, vivendo a música do som no ouvido deliciado,
a canção da tua voz, que eu no ouvido guardo, para sempre conservo, como um
diamante dentro de um relicário de ouro.
Cá está, cá a sinto
harmonizar, alastrar em som o meu corpo, todo, como flexuosa serpente ideal, a
tua clara voz de filtro luminoso, magnética, dormente como um ópio…
Muitas vezes, por
noite em que as estrelas marchetam o céu, tenho pulsado à sensação de notas
errantes, de vagos sons que as aragens trazem.
As fundas
melancolias que as estrelas e a noite fazem descer pelo meu ser, da amplidão
silenciosa do firmamento, dão-me à alma abstratas suavidades, vaporosos
fluidos, sinfonias solenes, misticismos, ondas imensas de inaudita sonoridade.
E, calado, na
majestade sombria da Natureza, como num religioso recolhimento de cela, vou
ouvindo, esparsos na vastidão, smorzando nos longes, entre redondos tufos
escuros de folhagem, onde se oculta alguma luxuosa existência de mulher,
inebriantes sons de peregrinas vozes ou de invisíveis instrumentos.
E os sons chegam,
vêm até mim, na estrelada tranquilidade da noite, frescos e finos, como através
de rios claros que nevassem ou de vagas embaladoras que o frio luar prateasse.
E eu penso, então,
nessas simpáticas, corretas atitudes e expressões da música.
Vejo, na nitidez de
cristal do pensamento, a harpa, sonora asa de ouro, com as cordas tensas,
dedilhadas por brancas mãos aristocráticas que arrancam dela frêmitos,
soluçantes dolências, plangências incomparáveis.
Escuto a pompa, a
imponência sonorizante de um órgão de catedral, quando, pelas altas naves,
sobem rolos alvos de incenso, e, o sol, fora, com as flechas dos raios constela
de astros microscópicos as polidas e góticas vidraçarias.
Ou, pressinto
ainda, num fidalgo salão do tom, onde os perfis ostentam valorosidades de
linhas ducais e a luva impera galantemente, a assinalada elegância dos
concertos da graça, quando os violinos, zurzinando notas que esvoaçam do arco
resinado às cordas retesadas, zumbindo e ruflamente prendendo-se à voz que
resplende, triunfa na sala, sonorizando-a e iluminando-a mais que os fúlgidos
lustres e os candelabros facetados, como se, da garganta de quem cantasse, a
aurora alvorecesse e vibrasse.
E cuido logo ver
uma mulher – alta, beleza grega, formas esculturais primorosamente cinzeladas.
A cabeça, de uma
discreta severidade de deusa, pousa-lhe no rico, abundante torso inteiriço do
corpo forte.
Há uns meigos tons
louros no aveludado cabelo que, por entre a luz, mais louro e aveludado brilha.
De pé, ereta, o
perfil nitidamente marcado, no meio da cauda astral da veste de seda rara, ela
desprende, evola a voz da garganta de aço novo e esta espiral de voz revoluteia
no salão, fica algum tempo aquecendo e sonorizando o ar.
Como um astro, essa
voz flameja, palpita e gira na iluminada órbita da sala cheia da multidão que a
escuta, e, como um astro, cai, fulgurando, semelhante a exalações meteóricas,
no fundo do meu ser como num golfo…
Nobremente, pela
cadência do canto, o corpo da imaginária mulher tem certas flexões delicadas e
eletrismos de gata voluptuosa, e o seio, fremente da melodia que o emociona, se
afervora e pulsa.
E a voz ala-se,
ala-se, gorjeada, arrulhante, trinada, ave de luz harmoniosa que ela enfim
solta do aviário do peito.
Todos esses
dulçurosíssimos efeitos musicais me impressionam singularmente, distribuindo
por mim a mais aguda vitalidade mental, que me sensibiliza os nervos da
atenção, como se todo eu me achasse sob uma atmosfera salutar e tonificante.
Ou, então,
cobrem-me também de opulências de gloriosas soberanias, as vivas forças
orquestrais, onde perpassam ruídos largos de floresta, clarins, inefáveis
misteriosas melodias de pássaros.
Mas, do som, da
música, não me exalça, não me enleva só o ritmo leve, educado, que deixa uma
suavidade acariciando, bafejando o ouvido como um perfume bafeja, acaricia, o
olfato.
Ficam nos sentidos,
nos nervos, calafrios sutis, ligeiros narcotismos, pequeninas vibrações que,
não sei de que rútila chama, parecem faiscar…
E começo, após um
engolfamento de sons profundos, a ter penetrabilidades intensas, estranhas
emoções que me despertam infinita série de fatos já gelados no tempo, como
passadas fases de lua.
Evidenciam-se-me
ideias, impressões, sugestões curiosas, certos obscuros estados mórbidos da
alma, que em vão a espiritualidade humana tenta transplantar para os livros,
mas que só o ritmo aviventa, levanta aos poucos da nebulosa das existências,
como um sol sempre amado, mas já antigo, já velho, remotamente apagado nos
sentimentos…
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