BULHÃO PATO
"Versos" (1862)
Lembras-te, Helena, o dia em que deixamos
O teu saudoso vale, e lentamente
Pela elevada encosta caminhamos?
O sol do estio ardente,
Já não brilhava nos frondosos ramos
Do arvoredo virente.
Chegara o fim do outono: a natureza,
Sem ter os mimos da estação festiva,
Nem aquele esplendor e gentileza
Que tem na quadra estiva,
Na lânguida tristeza,
Na luz branda e serena
Daquele ameno dia,
Que imensa poesia,
E que saudade respirava, Helena!
Subindo pelo monte,
Chegamos ao casal onde habitava
A tua protegida,
Aquela pobre anciã que se agarrava
Aos restos desta vida!
Assim que te avistou, ergueu a fronte
Curvada ao peso de tão longa idade,
Sorrindo nesse instante
Com tal vida, que a luz da mocidade
Parecia alegrar o seu semblante!
Estendeste-lhe a mão, entre as mãos dela,
Grosseiras pelo hábito constante
Do trabalho da terra,
Queimadas pelo vento sibilante,
E pelo sol da serra,
Produzia essa mão graciosa e bela,
Efeito semelhante
Ao que por entre o mato
Produziria a rosa de Benguela,
A flor mais alva e de mais fino trato!
Vinte anos tu contavas nesse dia;
A fiel servidora,
Era a primeira vez que não podia
Deixar a casa ao despontar da aurora,
E cheia de alegria
Caminhar para o vale como outrora,
Depor uma lembrança em teu regaço,
E unir-te ao coração num meigo abraço!
Tu, na força da vida,
Circundada de luz e formosura,
Foste levar à pobre desvalida
Os dons do lar paterno;
Alegrar com teu riso de ternura
Aquele frio inverno!
Ao ver-te com teus braços,
Nos seus braços senis entrelaçados,
A ventura nos olhos encantados,
A inspiração na fronte deslumbrante,
Afigurou-me então o pensamento
Ver um anjo descido dos espaços,
D'aspecto fulgurante,
Enviado por Deus nesse momento,
Para animar os derradeiros dias
De quem cansado do lidar constante
Abre o seio na morte às alegrias!
As lágrimas de gosto,
Corriam cristalinas
No rosto dela e no teu belo rosto!
Como orvalhos do céu aqueles prantos,
Um brilhava na hera das ruínas,
Outro na flor de festivais encantos,
Na rosa das campinas!
Quando voltaste a mim iluminava
O teu semblante uma alegria infinda.
Depois quiseste ainda
Ir visitar a ermida que ficava
No ápice do monte:
Firmaste-te ao meu braço, e caminhamos.
No esplêndido horizonte
Já declinava o sol quando chegamos.
Era singelo, mas sublime o quadro!
Em roda o mato agreste;
No meio a pobre ermida; ao lado dela
Um secular cipreste,
E sobre a cruz do adro
Pendente uma capela
De algumas tristes, desbotadas flores,
Talvez emblema de profundas dores!
Oh! como tu, suspensa
Num êxtase ideal de sentimento,
Expandias o livre pensamento
Pela amplidão imensa!
Como depois descendo das alturas
Aonde te arrojara a fantasia,
Parece que a tua alma me trazia
Oculto prêmio de imortais venturas!
Tanto expressava o teu olhar profundo,
Que o céu, a terra, o mar, quanto rodeia
O homem neste mundo,
Jamais me trouxe a ideia
Do supremo poder da Providência
Com tamanha eloquência!
O sol quase no termo
Com um brando reflexo,
Cingia a cruz do ermo
Em amoroso amplexo!
O rei da criação, o astro orgulhoso,
Que enche a terra de luz,
Também vinha prostrar-se saudoso
Aos pés da humilde cruz!
Era solene e santo
Naquela hora suprema o teu aspecto!
Nos lábios a oração, no rosto o pranto,
As mãos cruzadas sobre o seio inquieto,
Os olhos postos na amplidão do espaço,
E em derredor da frente
Um luminoso traço
A inundar-te de luz resplandecente!
..........................
Branda a tarde expirou! Daquele dia,
E de outros dias de íntimas venturas,
De imensa poesia,
Nasceram essas páginas obscuras,
Que hoje a teus pés deponho,
Como saudoso emblema,
Do tempo em que sorrira
O nosso belo sonho!
Terias um poema,
Se tão gratas memórias
Pudessem ser cantadas numa lira
Votada a eternas glórias!
Enfim: se um pensamento,
Se uma singela ideia onde transpire
O perfume de vivo sentimento,
Nestas folhas traçar a minha pena...
A estrofe, o canto que o leitor admire,
Seja o teu nome, Helena!
★★★
A Júlia
(Da Paquita)
BULHÃO PATO
"Versos" (1862)
Naquela deserta ermida,
Que alveja na serrania,
Deu sinal, Júlia querida,
O sino da Ave-Maria.
Este som tão conhecido
Da nossa inocente infância,
Como agora vem sentido
Trazer-me viva à lembrança,
Toda essa doce fragrância
Daquele existir d'então!
Ai! lembrança não, saudade!
Saudade Júlia, tão funda...
Mas tão grata, que me inunda
De ventura o coração.
Espera... se neste instante
Mandasse à terra o Senhor,
Anjo de meigo semblante,
E aos dias daquela idade
Nos tornasse o seu amor...
Oh! responde-me, querida,
Se quanto depois na vida
De belo nos há passado,
Não devera ser trocado
Por esses dias em flor?!
Que lá vão! lembras-te ainda?
Tu risonha doidejavas,
Por entre as moitas de flores
Como elas fragrante e linda.
Quando o som pausado e lento
D'Ave-Maria escutavas,
Então naquele momento
Aos pés da Cruz te prostravas!...
Que fronte de anjo era a tua
Vista ao reflexo amoroso
Dos frouxos raios da lua!
Uma tarde, ao pôr do sol,
No recosto pedregoso
Do monte nos encontramos;
Lembras-te! essa hora bateu,
Porém nós mal a escutamos!
Os olhos, tu perturbada,
Baixavas, e no semblante
Não sei que luz te brilhava,
Eu sei que naquele instante
O prazer me enlouqueceu.
Oh! fatal loucura aquela!
Tinha-me ali tão perdido,
Que, sem mais ver, delirante
Nos braços te arrebatei.
Não sei por onde vagava,
Nem quanto, nem como andei;
Só me lembra que a ventura
Ali real me falava,
E que aos incertos lampejos
Das estrelas desmaiadas,
Imprimi ardentes beijos
Nas tuas faces rosadas!
Foi breve aquele delírio;
Ao menos breve o julguei;
E quando, outra vez à vida
De sobressalto voltei,
Desbotada como um lírio
Pelos vendavais batido,
Nos meus braços te encontrei!
★★★
Tereza
BRUNO SEABRA
“Lucrécias” (Fins do século XIX)
Quem vem da igreja? Tereza
Que foi casar-se... surpresa!
Não esperava este azar!
Nunca me turbara a ideia
Esta lembrança tão feia
De que podia casar!
Que não cuidei vejo agora,
Por que m'o afirma esta hora,
Que inesperada bateu!
Casada! vejo-a casada!
Jesus! como esta mudada!
Pois também mudarei eu.
Cessai, esp'ranças viçosas,
Emurcheceu, perfumosas
Flores, que eu tanto reguei!
Coração, meu pobre filho,
Velho 'stás, segue o meu
trilho,
Enruga como enruguei!
Casou-se aquela trigueira,
Que para vos tão fagueira
Se mostrava; já casou!
Aquela mesma Tereza,
Que a correr pela devesa,
Tantas vezes nos cansou!
Olhem como vem pimpona!
É uma senhora dona,
Reparem como ela vem...
Seu marido vem com ela
Todo cheio de cautela,
Que muitos ciúmes tem!
Olhai-a, como nos foge!
Como mais esquivos hoje
Seus olhos fogem de nós!
Agora que 'stá casada...
Não irás mais a latada
Colher uvas a sós...
Já não veste saias curtas,
Como outrora a colher murtas,
Jambos ou maracujá,
Pelos declives dos montes
Ia, e depois vinha às fontes,
E nós estávamos lá...
Vem? é outra! é outra...
olhai-a!
É vestido, não é saia,
Tereza a mesma não é!
E que vestido comprido!
Não deixa ver o vestido,
Nem a pontinha do pé!...
Adeus senhora Tereza!
Salve o pobre na pobreza,
Que isto não lhe fica bem!
Soberba co'o seu marido,
Soberba co'o seu vestido,
Já não conhece ninguém!
Deixa-se de soberbias,
Lembre-se daqueles dias,
À sombra dos cafezais...
Descora... não tenha medo!
Vá tranquila que o segredo
Da minha boca... jamais...
Jamais... e jamais suponha
Seu marido que a vergonha
À casa lhe-hei de eu levar...
Jamais, senhora Tereza,
Que eu também tenho a certeza
De algum dia me casar.
★★★
Francina
BRUNO SEABRA
“Lucrécias” (Fins do século XIX)
No templo de Deus, Francina
Devota rezando 'stava;
Seus negros olhos fitava
No lenho da redenção:
E silêncio revelava
As preces do coração.
De joelhos de mãos postas
Para o céu as levantava,
E mais formosa ficava
Nessa humilde posição:
Eu, que herege a contemplava,
Tinha fé e devoção...
De mãos postas, a seu modo
Eu também me ajoelhava,
Com devoção... com fervor.
Mas... de Deus não me
lembrava
Naqueles salmos d'amor!
Não me lembrava de Deus...
Não! o Deus, que eu adorava,
De quem a graça implorava
Nas preces do coração,
Seus negros olhos fitava
No lenho da redenção...
Era, sim, meu Deus, Francina
Que a devoção me inspirava
Era Deus, que eu adorava
Das orações no fervor...
Como devoto rezava
Eu rebelde pecador!...
"Rezas para Deus,
Francina?
Eu, Francina, para ti!
Minhas culpas, querubim,
Me pesam no coração!
Perdoa se te ofendi
Amando com devoção
A esses olhos serenos,
A esses lábios — rubins,
a essas faces — jasmins,
Essa toda — perfeição!
Pequei, pequei! ai de mim
Se morro sem teu perdão!
Volve teus olhos piedosos
Para o pecador — cristão!
Dá-lhe um riso! salvação
Para esperanças d'amor,
Que às hordas do inferno
'stão,
Com elas o pecador!
Pelo amor desses teus olhos,
Que fanais d'amores são,
Eu te exoro o meu perdão
D'amar-te com tanto amor!
Francina, tem compaixão!
Graça, graça ao
pecador!"
De mãos postas, a seu modo
Eu também me ajoelhava,
E deste modo rezava
Com devoção, com fervor;
Quem sabe se eu me salvava
Sendo sempre pecador?...
★★★
Inês
BRUNO SEABRA
“Lucrécias” (Fins do século XIX)
— Lembras-te Inês?
À sombra desta mangueira
aquela vez?
— Eras então mais fagueira,
Não eras má!
E a vida mais prazenteira
Do que hoje 'stá!
— Tinhas talvez...
Tinhas... quantos anos
tinhas,
Lembras-te, Inês?
São coisas das Afonsinhas,
Já lá se vão...
Eu sei cá essas coisinhas
De quanto são.
— Que desamor!
Não te lembras do passado?
Eu não, senhor.
Anda-me o tempo ocupado
Dos dias meus
Co'o meu maridinho amado,
O sô Mateus.
— Casaste, pois?
Tal e qual...
— Tens bom marido?
Vale por dois,
Seja-me o fado servido
De o conservar,
Como até hoje o tem sido
Desde o altar,
E eu lhe direi
Se a sorte de outra casada
Lhe invejarei.
Também fiel, desvelada
Mulher assim,
Não lhe há de ser apontada
Depois de mim.
— Com que então,
Fizeste um bom casamento?
Foi de encher a mão!
E tenho o contentamento
De lhe dizer
Que irei morrer num convento
Se ele morrer.
— Ora esta Inês!
E há quantos anos casaste?
Vai fazer um mês.
— Há poucos dias...
Afaste!
Veja o que faz! Querer em
beijar? sô traste!
É muito audaz!
— Como és cruel!
Não quero beijar-te, quero
Dar-te este anel.
Vá-se d'aí...
Como é fero
Teu coração!
Não há peito mais austero,
Por Deus, que não!
Prezo-me assim...
Já não és a Inês d'outrora...
Pois sim, pois sim!
— Adeus, Inês, vou-me
bem'ora,
Deixa-te, 'star!...
Toma o anel; deita-o fora
E este colar.
Lá isso não,
Por soberba não rejeito
O que me dão.
— Então aceitas?
Aceito...
— Querida Inês!
Eu não... Talvez...
Valha-me Deus!
Quem vem aqui manquejando?
É sô Mateus!...
Fuja, fuja! vá-se andando
Com pés de lã...
— Adeus, Inês... até quando?
Volte amanhã...
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