Clarisse
AUTA DE SOUZA
“Poesias” (1899/1900)
“Não sei o que é tristeza,” ela me disse...
E a sua boca virginal sorria:
Ninho de estrelas, concha de ambrosia
Cheia de rosas que do céu caísse!
E eu docemente murmurei: Clarisse,
Será possível que tu’alma fria
Ouvindo o choro da Melancolia
O ressábio do fel nunca sentisse?
Será possível que o teu seio, rosa,
Nunca embalasse a lágrima formosa?
Ah! não és rosa, pois não tens espinho!
E os olhos teus, dois templos de esperança,
Nunca viram sofrer uma criança,
Nunca viram morrer um passarinho.
★★★
Carlota
AUTA DE SOUZA
“Poesias” (1899/1900)
Quis bordar teu nome amado
E roubei uns fios de ouro
Das tranças de teu cabelo
Tão longas e perfumadas...
Depois do nome bordado
Com aquele cabelo louro,
Cuidei ver o Sete-Estrelo
Nas sete letras douradas.
★★★
Angélica
AUGUSTO DE LIMA
“Contemporâneas”
(1887)
Tu, por seres alvíssima, desdenhas
a morena de longas tranças
pretas:
dizes que tens razão, talvez
não tenhas.
Por que desprezos para as
violetas?
Que tem tua alva cor que
sobreleve
a cor morena em face de um
espelho?
A neve é branca, o sol
vermelho, e a neve
branca é vencida pelo sol
vermelho.
Julgo igualmente belas na
pintura
todas as cores, todas as
nuanças:
em toda parte brilha a formosura,
nas tranças louras, ou nas
negras tranças.
Perdoa-me a dureza do
conceito,
voz da verdade, queiras ou
não queiras:
olha, criança, que, a
qualquer respeito,
são parecidas todas as
caveiras!
★★★
Versos a Corina
MACHADO DE ASSIS
"Crisálidas" (1864)
Tacendo il nome di questa gentilíssima
Dante
I
Tu nasceste de um beijo e de
um olhar. O beijo
Numa hora de amor, de ternura
e desejo,
Uniu a terra e o céu. O olhar
foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de
graça, olhar de amor;
Depois, depois vestindo a
forma peregrina,
Aos meus olhos mortais,
surgiste-me, Corina!
De um júbilo divino os cantos
entoava
A natureza mãe, e tudo
palpitava,
A flor aberta e fresca, a
pedra bronca e rude,
De uma vida melhor e nova
juventude.
Minh'alma adivinhou a origem
do teu ser;
Quis cantar e sentir; quis
amar e viver
A luz que de ti vinha,
ardente, viva, pura,
Palpitou, reviveu a pobre
criatura;
Do amor grande elevado
abriram-se-lhe as fontes;
Fulgiram novos sóis,
rasgaram-se horizontes;
Surgiu, abrindo em flor, uma
nova região;
Era o dia marcado à minha
redenção.
Era assim que eu sonhava a
mulher. Era assim:
Corpo de fascinar, alma de
querubim;
Era assim: fronte altiva e
gesto soberano,
Um porte de rainha a um tempo
meigo e ufano,
Em olhos senhoris uma luz tão
serena,
E grave como Juno, e belo
como Helena!
Era assim, a mulher que
extasia e domina,
A mulher que reúne a terra e
o céu: Corina!
Neste fundo sentir, nesta
fascinação,
Que pede do poeta o amante
coração?
Viver como nasceste, ó
beleza, ó primor,
De uma fusão do ser, de uma
efusão do amor.
Viver, — fundir a existência
Em um ósculo de amor,
Fazer de ambas — uma
essência,
Apagar outras lembranças,
Perder outras ilusões,
E ter por sonho melhor
O sonho das esperanças
De que a única ventura
Não reside em outra vida,
Não vem de outra criatura;
Confundir olhos nos olhos,
Unir um seio a outro seio,
Derramar as mesmas lágrimas
E tremer do mesmo enleio,
Ter o mesmo coração,
Viver um do outro viver...
Tal era a minha ambição.
Donde viria a ventura
Desta vida? Em que jardim
Colheria esta flor pura?
Em que solitária fonte
Esta água iria beber'?
Em que incendido horizonte
Podiam meus olhos ver
Tão meiga, tão viva estrela,
Abrir-se e resplandecer?
Só em ti: — em ti que és
bela,
Em ti que a paixão respiras,
Em ti cujo olhar se embebe
Na ilusão de que deliras,
Em ti, que um ósculo de Hebe
Teve a singular virtude
De encher, de animar teus
dias,
De vida e de juventude...
Amemos! diz a flor à brisa
peregrina,
Amemos! diz a brisa, arfando
em torno à flor;
Cantemos esta lei e vivamos,
Corina,
De uma fusão do ser, de uma
efusão do amor.
II
A minha alma, talvez, não é
tão pura,
Como era pura nos primeiros
dias;
Eu sei; tive choradas agonias
De que conservo alguma nódoa
escura,
Talvez. Apenas à manhã da
vida
Abri meus olhos virgens e
minha alma.
Nunca mais respirei a paz e a
calma,
E me perdi na porfiosa lida.
Não sei que fogo interno me
impelia
À conquista da luz, do amor,
do gozo,
Não sei que movimento
imperioso
De um desusado ardor minha
alma enchia.
Corri de campo em campo e
plaga em plaga,
(Tanta ansiedade o coração
encerra!)
A ver o lírio que brotasse a
terra,
A ver a escuma que cuspisse —
a vaga.
Mas, no areal da praia, no
horto agreste,
Tudo aos meus olhos ávidos
fugia...
Desci ao chão do vale que se
abria,
Subi ao cume da montanha
alpestre.
Nada! Volvi o olhar ao céu.
Perdi-me
Em meus sonhos de moço e de
poeta;
E contemplei, nesta ambição
inquieta,
Da muda noite a página
sublime.
Tomei nas mãos a cítara
saudosa
E soltei entre lágrimas um
canto.
A terra brava recebeu meu
pranto
E o eco repetiu-me a voz
chorosa.
Foi em vão. Como um lânguido
suspiro,
A voz se me calou, e do ínvio
monte
Olhei ainda as linhas do
horizonte,
Como se olhasse o último
retiro.
Nuvem negra e veloz corria
solta,
O anjo da tempestade
anunciando;
Vi ao longe as alcíones
cantando
Doidas correndo à flor da
água revolta.
Desiludido, exausto, ermo,
perdido,
Busquei a triste estância do
abandono,
E esperei, aguardando o
último sono,
Volver à terra, de que foi
nascido.
— “Ó Cibele fecunda, é no
remanso
Do teu seio que vive a
criatura.
Chamem-te outros morada
triste e escura,
Chamo-te glória, chamo-te
descanso!”
Assim falei. E murmurando aos
ventos
Uma blasfêmia atroz —
estreito abraço
Homem e terra uniu, e em
longo espaço
Aos ecos repeti meus vãos
lamentos.
Mas, tu passaste... Houve um
grito
Dentro de mim. Aos meus olhos
Visão de amor infinito,
Visão de perpétuo gozo
Perpassava e me atraía,
Como um sonho voluptuoso
De sequiosa fantasia.
Ergui-me logo do chão,
E pousei meus olhos fundos
Em teus olhos soberanos,
Ardentes, vivos, profundos,
Como os olhos da beleza
Que das escumas nasceu...
Eras tu, maga visão,
Eras tu o ideal sonhado
Que em toda a parte busquei,
E por quem houvera dado
A vida que fatiguei;
Por quem verti tanto pranto,
Por quem nos longos espinhos
Minhas mãos, meus pés
sangrei!
Mas se minh'alma, acaso, é
menos pura
Do que era pura nos primeiros
dias,
Por que não soube em tantas
agonias
Abençoar a minha desventura;
Se a blasfêmia os meus lábios
poluíra,
Quando, depois de tempo e do
cansaço,
Beijei a terra no mortal
abraço
E espedacei desanimado a
lira;
Podes, visão formosa e
peregrina,
No amor profundo, na
existência calma,
Desse passado resgatar
minh'alma
E levantar-me aos olhos teus,
— Corina!
III
Quando voarem minhas
esperanças
Como um bando de pombas fugitivas;
E destas ilusões doces e
vivas
Só me restarem pálidas
lembranças;
E abandonar-me a minha mãe
Quimera,
Que me aleitou aos seios
abundantes;
E vierem as nuvens
flamejantes
Encher o céu da minha
primavera;
E raiar para mim um triste
dia,
Em que, por completar minha
tristeza,
Nem possa ver-te, musa da
beleza,
Nem possa ouvir-te, musa da
harmonia;
Quando assim seja, por teus
olhos juro,
Voto minh'alma à escura
soledade,
Sem procurar melhor
felicidade,
E sem ambicionar prazer mais
puro,
Como o viajor que, da falaz
miragem
Volta desenganado ao lar
tranquilo
E procura, naquele último
asilo,
Nem evocar memórias da
viagem,
Envolvido em mim mesmo, olhos
cerrados
A tudo mais, — a minha
fantasia
As asas colherá com que algum
dia
Quis alcançar os cimos elevados.
És tu a maior glória de minha
alma,
Se o meu amor profundo não te
alcança,
De que me servirá outra
esperança?
Que glória tirarei de alheia
palma?
IV
Tu que és bela e feliz, tu
que tens por diadema
A dupla irradiação da beleza
e do amor;
E sabes reunir, como o melhor
poema,
Um desejo da terra e um toque
do Senhor;
Tu que, como a ilusão, entre
névoas deslizas
Aos versos do poeta um
desvelado olhar,
Corina, ouve a canção das
amorosas brisas,
Do poeta e da luz, das selvas
e do mar.
★★★
Laura
BRUNO SEABRA
“Lucrécias” (Fins do século XIX)
— Donde vens, Laura?
— De casa.
— Vais à festa?
— Já se vê?
— Tão sozinha?
— O que tem com isso?
— Vou contigo...
— Para quê?
— Para ensinar-te o
caminho...
— Agradeço-lhe o favor;
Eu sei de cor estas bandas,
Obrigada, meu senhor.
— Olha o Demo se te
encontra...
— Pergunto ao Demo; o que
quer?
— E se ele quiser um beijo?
— Dou-lhe até mais, se
quiser.
— Ora, anda cá; dá-me o
beijo,
Porque o Demônio em mim
vês...
— Já me'stava parecendo...
Ficará para outra vez.
— Vá desta vez um abraço...
— Abraço?..
— Sim, o que tem?
— Mamãe me disse outro dia...
— O que te disse a mamãe?
— Que uma rapariga solteira
Em abraçando um rapaz...
Ferve-lhe o sangue nas veias,
E depois...
— E depois?
— Zás!
_________
Arregaçando o vestido
Deitou-se Laura a correr;
Deixando-me boquiaberto
Co'o sangue todo a ferver!
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