Hino de Morte
(Na morte do colega, aluno do 4º ano de
Medicina, Antônio José Gonçalves Júnior)
LUÍS DELFINO
"Poesias Líricas" (1934)
Da sacro cineri
flores.
DO TÚMULO DE
SANNAZARO
I
Omnis glória
ejus...
PSALMUS
Um século de
glórias e esperanças
Naquela fronte,
como um régio almafre,
Imenso balouçava;
E sob a selva dos
cabelos densos,
Como um rio
escondido nas florestas
A ideia
borbulhava.
Homens, vós não
sabíeis quem ele era!
Da noite à boca do
mancebo inglório
Parásseis um
momento:
Detrás da escura
selva desse crânio
Se erguera um dia,
em trono chamejante,
Do seio nebulento.
Como inunda de
fogo a flor do oceano
O sol, — ele
inundava o seu futuro
De claridão
tamanha.
Eram rastos de
chama os dias dele!
Dos loureiros à
sombra um sol dormia
Atrás de uma
montanha
Era um nimbo de
esfera vaporosa
Embaciando as
lâmpadas celestes,
Que pesava no
mundo!
Seu pensamento: —
um dia condensado
De cima do seu
crânio cairia,
Como oceano
profundo!
Amanhã rangeria
aquela porta!
E ao entreabrir-se
aquela língua de ouro,
Do céu, onde alma
voara,
Aerólito, como um
anjo em fogo,
Embuçado nas
roupas de mil anos,
Numa ideia rolara.
Assim de chofre o
espaço engole um mundo:
Cem cidades assim
desaparecem
Nos campos de
Senaar;
E como a cruz de
um morto, uma coluna
Lá fica apenas
sobre a cova delas
Seus ossos a
apontar!
II
Nulli
flebilior, quam tibi...
HORÁCIO — ODES
Que vistes dele? —
Nada. Descansava
Sobre os seus louros,
à manhã da vida.
O jovem sonhador!
Sobre o feixe, que
abate das florestas,
Também, antes de o
erguer, por um momento
Descansa o
lenhador.
Tinha afiada a
adaga. A hora do alarma
Parecia estalar;
sob a armadura
Do combate parou:
Viu o campo:
estendeu à larga as rédeas:
Mas da vida o
corcel, que ele montava,
Caiu e tropeçou.
Ó meu amigo!... E
o que perdeste, ó Pátria!....
Que pedra das
abóbadas da glória
Rolou, se
espedaçando!
Escárnio dessa
turba de mancebos,
— Raça de vermes!
— sobre o pó da terra
Esmagava-os,
passando.
Se assoberba o
ginete relinchando,
Quando a escarpa
do Abila o árabe arrasa
Após a hiena e o
leão:
A vida dele era um
corcel fogoso:
E o corcel, que
engolia abismo e escarpa,
Caiu: mas ele não.
No Cusistão
daquele peito em brasa
Da liberdade a
rosa florescia
Fechada em botão lindo,
Era no meio do
mais belo fogo
Que vingava a
roseira, onde orvalhada
Cada flor ia
abrindo.
Que naufrágio
espantoso! Eram só de ouro
Os sonhos que essa
mente carregava
Aos vagalhões da
vida:
Que nau perdida
sobre o mar tormenta
Esperdiçou os
louros do poeta,
Em noite
desabrida!
Pátria, curva-te
ao céspede de um filho:
Ontem por ti
morreu: hoje ao seu túmulo,
Não te pejes,
baixando:
Cristo era a
pátria do universo inteiro
E, sobre a cova de
um amigo, Cristo
Se prosternou,
chorando.
III
... ore
tremente....
OVÍDIO —
TRISTIUM
E como o rosto é
pálido, e fanadas
Rosas, que um dia
abriram purpurinas
À doce luz da
vida!
Assim a ruína de
cidade morta
Em noite de luar,
por entre a relva,
Dorme meio
escondida.
O meu coração não
pulsa! Entre ruínas
Para o viajor.
Pompeia está dormindo...
Dorme, sem
ressonar!
Seu coração — o
povo que palpita, —
Caído sob as
carnes das cidades,
Não... não pode
pulsar!
Morto, que vale a
vida? O diga Homero,
O cego Homero, que
esmolou, trocando,
De cidade em
cidade,
Por um alpendre e
por um pão, os cantos
Que à Grécia
antiga e antigos povos davam
História e
eternidade.
A vida é isso: é
vaga, que arremessa
Colombo ardente à
entrada do oceano,
Donde surge com um
mundo,
E torna a arremessá-lo
a mesma vaga,
E ele encontra o
grilhão, a treva, a morte
Do ergástulo no
fundo.
E que há pois do
outro lado do sepulcro?
A pedra tumular
que arcano esconde?
Que segredo ali
jaz?
Quando o alvião a
rasga, a ossada alveja:
Silenciosamente o
verme mexe,
Eis tudo... e nada
mais!...
Mudo o vento da
morte entorna as ruínas
Sobre o corpo, e o
movimento que mutila,
Por grandioso que
seja,
Prostra-se aos
séculos, que vão vindo, e passam:
Parte-se a lousa e
em um riso alvar o crânio
Parece que
graceja....
Ó meu amigo, irmão
nos mesmos sonhos,
Já me arrependo de
acordar-te ao leito,
Para dar-te estas
flores:
As lâmpadas do céu
velam-te as noites:
Chora-te, e
sempre, à madrugada, à cova
A estrela dos
amores.
Amanhã o teu pai
sorri, mancebo:
Amanhã tua mãe
beija outro filho:
Amanhã entra o
mundo!
E as estrelas do
céu, da aurora o orvalho
Amanhã velarão a
sós no berço
O teu sono
profundo.
IV
..... flentem
flens...
OVÍDIO — TRISTIUM
Perdão, ó pais,
perdão: a frase gela:
Mas há cá dentro o
horror de um cataclisma,
Que me fez
desumano;
E arrebentou-me a
estrofe à flor dos lábios,
Como os vulcões
nas asas alevantam
Uma ilha no
oceano.
Vós não o
esquecereis, não! Infelizes!
A eternidade de
uma dor paterna,
Quem a pode
sondar?
Ártico polo, que
aglomera o gelo,
Quem por cima de
lágrimas tão densas
Vai-lhe os seios
prumar?
A glória me há de
aureolar a fronte:
Apesar de homens
vis, que tudo arrancam
Vingai, louros,
vingai:
Minha mãe, ó
Brasil, ó pátria, é dele
Este loureiro; é
dele: — ide ao seu túmulo
De joelho o
plantai...
V
Vox ferrea.
VIRGÍLIO —
ENEIDA
Homens, é tempo:
agora eu me levanto:
Limpei o rosto; —
as lágrimas secaram:
Glória, que nos
vens dar?
Reis, lá estão os
lauréis da vida bela!
Jovens, as rosas
caem das roseiras,
Sem o tempo as
murchar.
De tanta vida que
o inundou, que resta?
A noite sem
estrelas do sepulcro!
A luz do
lampadário
Da vida, ainda
transbordando a enchente
Do óleo, que a
seiva aviventou, não arde
No leito
mortuário.
Pálida cruz, que
os braços seus distende,
Como um soldado de
além-mundo vela
Imbele e
desarmado:
Roem-lhe os vermes
a terrosa planta,
E não retira o pé,
único ele,
Do arraial
desprezado.
Ecbatana, — a
princesa, — se coroava
Com o sol do
Oriente, recostada às selvas,
Sobre o almatrá do
Oronte:
Seu penacho de
templos grimpejava,
Como um cocar de
variadas plumas,
Na cimeira da
fronte....
Ontem. De sobre
escombros de ossos hoje,
No meio de pireus
cinereados,
Sobre um roto
divã,
Como enrolada em
faixas de uma múmia,
Sem trono, a
fronte sem cocar de plumas,
Rói-lhe a entranha
Hamadã...
★★★
A
cova
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
Faz mais larga essa cova, estúpido coveiro;
Pois
não vês que são dois buscando o mesmo leito?
É
preciso que caiba um longo travesseiro,
Para
dormirem face a face, e peito a peito.
Virei
deitar-me em tempo: hoje não, não me deito
Sem
que nos braços meus a carregue primeiro:
Quero
cobri-la bem, pôr-lhe o tronco direito;
Que
é muito longo sempre o sono derradeiro.
Guarda
do cemitério, o jardineiro aí fica,
Quero
roseiras só, quero muitas roseiras;
Que
ardam rosas em que seu corpo multiplica.
Que
os pássaros aqui cantem horas inteiras:
Que
esta leiva, em que está da terra a flor mais rica,
Seja
o teu ninho, amor, quando um ninho, amor, queiras.
★★★
No limiar da morte
OLAVO BILAC
"Sarças de fogo" (1888)
"Sarças de fogo" (1888)
"Grande lascivo! espera-te a
voluptuosidade do nada."
MACHADO DE ASSIS, BRÁS
CUBAS
Engelhadas as faces, os cabelos
Brancos, ferido, chegas da jornada;
Revês da infância os dias; e, ao revê-los,
Que fundas mágoas na alma lacerada!
Paras. Palpas a treva em torno. Os gelos
Da velhice te cercam. Vês a estrada
Negra, cheia de sombras, povoada
De atros espectros e de pesadelos...
Tu, que amaste e sofreste, agora os passos
Para meu lado moves. Alma em prantos,
Deixas os ódios do mundano inferno...
Vem! que enfim gozarás entre meus braços
Toda a volúpia, todos os encantos,
Toda a delícia do repouso eterno!
Brancos, ferido, chegas da jornada;
Revês da infância os dias; e, ao revê-los,
Que fundas mágoas na alma lacerada!
Paras. Palpas a treva em torno. Os gelos
Da velhice te cercam. Vês a estrada
Negra, cheia de sombras, povoada
De atros espectros e de pesadelos...
Tu, que amaste e sofreste, agora os passos
Para meu lado moves. Alma em prantos,
Deixas os ódios do mundano inferno...
Vem! que enfim gozarás entre meus braços
Toda a volúpia, todos os encantos,
Toda a delícia do repouso eterno!
★★★
Marcha fúnebre
OLAVO BILAC
“Tarde” (1919)
“Tarde” (1919)
“Thamuz,
Thamuz, panmegas tethneke!...”
Como se ouviu no
Epiro, outrora, o extremo grito
"Pã morreu!", — na amplidão reboe o meu lamento:
Torpe a ambição, perdido o amor, inane o alento,
Nestas baixas paixões de um século maldito!
"Pã morreu!", — na amplidão reboe o meu lamento:
Torpe a ambição, perdido o amor, inane o alento,
Nestas baixas paixões de um século maldito!
Rolem trenos no oceano
e elegias no vento!
Concentrai-vos na dor do funerário rito,
O asas e ilusões num miserere aflito,
E, ó flores num responso, e, ó sonhos num memento!
Concentrai-vos na dor do funerário rito,
O asas e ilusões num miserere aflito,
E, ó flores num responso, e, ó sonhos num memento!
Bocas, bradando
ao céu de minuto em minuto,
Olhos, velando a terra em sudários de pranto,
Corações, num rufar de tambores em luto,
Olhos, velando a terra em sudários de pranto,
Corações, num rufar de tambores em luto,
Guaiai, carpi,
gemei! e ecoai de porto a porto,
De mar a mar, de mundo a mundo, a queixa e o espanto:
O grande Pá morreu de novo! O Ideal é morto!
De mar a mar, de mundo a mundo, a queixa e o espanto:
O grande Pá morreu de novo! O Ideal é morto!
★★★
O
derradeiro adeus
(Ao amigo, Dr. Aureliano Coutinho)
(Ao amigo, Dr. Aureliano Coutinho)
BRASÍLIO MACHADO
“Madressilvas” (1876)
“Madressilvas” (1876)
“Mais feliz do que nós...
Não
sentirás neste areal deserto
—
Na morte d'alma a vida;
No
vivo coração tua própria tumba!”
JOSÉ BONIFÁCIO
Na sala mortuária, em meio de soluços,
pálida, fria, morta, em fúnebre caixão,
ela estava estendida. Aos olhos semiabertos
lançava branca luz das velas o clarão.
E o Cristo ali curvava o lívido semblante,
como um pai contemplando a filha agonizante.
Ninguém chegava ali, qual fria testemunha
de quanto o desespero tem de esmagador...
Ao pé daquela morta erguia-se a saudade
e se achava pequena em frente de uma dor!...
tanto soube cavar da morte a mão escura
num tálamo de amor. — profunda sepultura...
Mas quem sucumbe assim? quem desce para os
mortos
pisando sobre o chão que umedecido está
desse orvalho da dor, que lágrima se chama,
do espontâneo chorar que o sentimento dá?
Quem volve ao céu banhada em luzes de uma
estrela
e deixa o pobre lar em lágrimas por ela?
Oh! não, não pergunteis... É o anjo da
família
que as azas recolheu e vai-se debruçar
aonde não mais desce o hálito da vida,
aonde a eternidade estende o longo mar...
e deixa após de si a noite no seu pouso
por mãe dos filhos seus, por anjo de um
esposo!
É a ave que do ninho erguido entre perfumes
caiu ferida ao chão... depois não mais se
ergueu;
e veio o pobre esposo achar o ninho — frio,
e os filhinhos chorando ao pé do leito
seu...
Desfolharam-se a um tempo as coroas da
ventura,
quando ela, esposa e mãe, descia à
sepultura...
Não mais daquele seio estanque pela morte
Deus há de abrir o foco esplêndido do amor:
duas vezes na vida aos lábios não se leva
deste néctar divino o cálix sedutor.
Se flores der o vale — o frio há de
tolhê-las,
ha de a nuvem passar — se surgem as
estrelas!
No entanto é vinda a hora! a eterna
despedida!
o beijo derradeiro, o derradeiro adeus!
e à porta um vulto negro, e trêmulo,
chorando,
repentino assomou por entre os filhos seus.
Silêncio... era ele, o esposo estremecido e
terno,
que ia à morta dizer o seu adeus eterno!
Quando ele apareceu, e foi a passos lentos
caminhando, e do esquife ao pé mudo parou,
ergueu convulso a ponta ao mortuário crepe,
e, sublime na dor, o beijo desatou...
E o derradeiro olhar caiu tão doloroso!
último voo d'alma, e d'alma de um esposo!...
Depois, quando ele ergueu a pequenina filha
que também vinha ali da mãe se despedir,
e pelo seu semblante a dor caiu em lágrimas,
que então foi mais tremenda a hora do
partir:
houve um momento ali de comoção tão forte,
que, se não fora tarde, abalaria a morte!...
Depois tudo findou-se. A virgem da saudade,
de goivos coroada, às súplicas conduz
ao Cristo que, suspenso ao muro solitário,
parecia dizer: — já não estou só na cruz!
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