6/29/2018

Temas Poéticos: MORTE - V


Pesadelo dos mortos

LUÍS DELFINO
“Íntimas e Aspásias” (1935)

Cismava. — Cai-me em pó de luar sombrio
A lembrança dos entes que hei amado!
Amor!! — Sombra de amor, um desvario,
Ao ser beijada em leito perfumado.

Como o dorso fantástico de um rio
Rola-os mortos em ritmo compassado!
O mar, que busca, vasto, ilimitado,
Ursos, que há dentro em nós, terá, e é frio?...

E foram moços, lúbricos, ardentes!
Vejo-os todos cobrindo o mesmo espaço!
E andamos juntos séculos contentes!...

E hei-los, que aí vão, arfando de cansaço,
Deitados sobre as vagas reluzentes,
Agora erguendo a perna, agora o braço!...

★★★

A filha morta
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
Lembro-me dela, quando então vivia:
Era suave e meigamente bela;
Santa em um nimbo, ao vê-la na janela,
De pé, dentro de um nicho, à luz do dia.

Pouco depois, meu Deus, quem o diria?
Inda estava formosa, inda era ela,
Mas fria já, já pálida a donzela,
Lírio morto, que em lágrimas floria...

Virgem de Sanzio, imaculada filha
De um sonho de ouro e da visão mais pura,
Quem, ante a imagem dela, não se humilha?

Foi uma estátua de esplendente alvura,
Feita só para um túmulo, em que brilha,
Imóvel, doce, em plácida postura...

★★★

Tal está morta...
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
Abriu a boca, e a rúbida golfada,
Que do seu peito exausto então rompia,
Desmanchava-se em rosas da alvorada
De um sol cor do lençol, que a cobriria.

Ofélia aflita sob a vaga fria,
Quebrando a nota da canção cantada;
Desdêmona no leito, amante e amada,
Idas? por quê? tão de repente um dia...

Dante e Beatriz, Romeu e Julieta,
Laura e Petrarca, Sanzio e Fornarina,
A coorte no céu, do amor eleita,

Guardam-na às portas da mansão divina,
Enquanto um anjo as asas brancas deita
De manso ao rosto, que ela ao colo inclina.

★★★

Estátua de Mausoléu
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
Tem a estatura regular da Milo,
E a alma dela também: foi de bem cedo
Que a vi como Imortal; e tive medo,
Parando em frente ao tétrico sigilo.

Embalde indago e tento descobri-lo:
É mais fácil ouvir de algum penedo,
Da dor que o imobiliza, o atroz segredo:
Houve um novo mistério em tudo aquilo.

Minha esperança está desenganada:
Mulher, — seu frio orgulho nada explica;
Deusa, — tem em desprezo o ser amada.

Ao dia, à noite aí vive, aí anda, aí fica,
Como por mãos de mestre esculturada
Num mausoléu, ao tempo, estátua rica...

★★★

Da Tijuca ao cemitério
(10 de Junho de 1878, na morte do velho amigo Luiz Antônio Alves de Carvalho)

LUÍS DELFINO
“Posse absoluta” (1941)

I
“That sleep, the loveliest, since it dreams the least”
BYRON – LARA

“Farewell — farewell to thee...”
THOMAS MOORE — LALLA ROOKH

Uma pequena mesa em frente ao mudo leito,
Branca toalha em cima e após a cruz de Cristo,
Num prantear confuso o próprio céu desfeito
E as lágrimas da cera acesa em torno disto.

Um ramo de alecrim em vaso de água benta
Numa cadeira ao pé: o mais se adivinhava...
Chorava pelo espaço a dor imensa e lenta...
E um lençol branco um vulto humano agasalhava.

O quarto era vazio... o quarto era deserto,
E ouvia-se não longe o choro das mulheres...
Que fazes tu sozinho aí todo coberto?
Sentes frio talvez? Ó diz-me o que queres?

Que pressinto no horror de tudo que não fala...
Ai! se o próprio silêncio aqui sinto que chora?
Das coisas vagamente a lágrima se exala!
Soluça o espaço todo em que ele dorme agora!...

Apontava-me o bosque a negra realidade:
As pedras que pisei gritavam-me lá fora:
Falou-me ao ouvido a porta aberta na metade!
Que és morto, ó meu amigo, ai! já ninguém ignora.

Quem és tu, pois, visão, sombra, fantasma, vento
Leve com pés de bronze, implacável, terrível,
Que gritavas: — morreu?!... És tu, pressentimento?
Em vão tremia... em vão te gritava: — impossível!

Tu me envolvias todo em teu hálito impuro:
Eu senti a passar tuas visguentas asas:
Parecia-me ouvir na confusão, no escuro,
Chiar de água que cai sobre candentes brasas...

E entrava a jorro o dia: os pássaros cantavam;
Vinham na viração olores da floresta,
E entre os raios do sol, que as portas penetravam,
A rorida manhã vestia-se de festa.

Desfolhava na alcova esplêndidos sorrisos
Sobre o corpo que jaz, a imortal natureza,
Tal um bobo feroz que faz soar seus guizos,
E tripudia e ri nas cenas de tristeza.

Como uma águia do céu sentia-se a matéria
Cair, lançar-se alegre em lúbrico festejo:
E escutava-se o arfar da boca deletéria,
E ouvia-se o estalido enorme do seu beijo!

Contrito ajoelhei. De cima do seu leito
Ergui o lençol branco e vi seu belo rosto:
Já lhe tinham cerrado os olhos, sobre o peito
As duas mãos em cruz também lhe tinham posto.

Que lividez na face!... e a esplêndida brancura
Dos cabelos em torno em pálidas madeixas!
Que calma! que sossego em toda essa figura,
Que nem ouve o rumor das soluçadas queixas!

Seu lábio roxo, donde uma ligeira espuma
Saía, como se inda o peito respirasse,
E a lividez da fronte e alguns pontos em suma
Negros sobre o palor da veneranda face...

Pareciam mostrar os sítios osculados
Pelos beijos fatais da sombra, que o invadia:
Dos pássaros da morte ao cadáver lançados
Ouvia-se chegar a multidão sombria.

Noventa anos a fronte em rugas lhe cavaram,
Que lhe abriram decerto abras à eternidade,
Como as vagas de um rio as pedras desataram,
Para poder lançar-se ao mar... à imensidade.

Calmo, sublime, doce, era a sua grandeza
O amor do honesto e bom, sem aparato e custo:
Fazer bem seu brasão de sólida nobreza:
Tudo nele era grande... até o horror do injusto!

Entre a neve que luz dos seus cabelos brancos
Repousa calmamente a sua imagem pura,
É um doce luar, que dorme sobre os flancos
De água alvadia e triste em nesga da espessura.

Como a gente respira esta serenidade!
Como se sente bem a gente a estar contigo!
Porém logo será mais funda esta saudade,
Velho, que tanto amei... ó tu, meu velho amigo!...

Quando a entranha da terra abrir a feroz boca,
Onde se há de lançar teu corpo venerando,
Ali te há de dizer a minha voz já rouca:
— Adeus, meu velho amigo... adeus pois... e até quando?

II
“... ne´er shall bowers of sarth...
never more.”
HERMANS — MISC. LYRICS

Giraste como um sol na vida transitória,
Como o sol tu tiveste auroras e ocidente:
Foi tua vida longa escrita em breve história,
Como a vida do que viveu honradamente.

Essas fundas paixões que as almas arrebatam,
Que, como furacões, passam numa existência,
Que iluminam uma hora e noutra hora desatam
Nuvens e escuridões à flor da consciência...

Nunca ouviste, a chiar, encher os teus ouvidos,
De gritaria atroz, de lôbrega fanfarra,
A avareza que mancha as mãos, mais que os vestidos,
Mais a alma, que o corpo... oh! não te pôs a guerra.

Eras uma figura alegre e delicada,
Enquadrada nos teus cabelos cor de neve,
Calma, capaz de estar em seu lugar sentada
Entre figuras de um idílio ameno e breve.

O sol que é sol, também tem manchas e não deixa
De ser o rei da luz, o criador fecundo:
Quem contra a luz do sol por ter manchas, se queixa?
Tão puro como o sol, passaste pelo mundo.

Podes dormir em paz: está teu leito aberto;
Desce à sombra perpétua e funda do jazigo:
Teu leito, como outrora, enfim vai ser coberto:
E o teu lençol de terra é leve, ó! meu amigo.

Somente a tua noite é longa... é muito longa!...
Não te há de amanhecer tão cedo o sol de novo;
E sobre o leito em que teu sono se prolonga,
Hão de achar-te a dormir mil gerações de um povo.

Hão de achar-te a dormir!... E quem sabe se um dia
Nem uma pedra só do erguido monumento
Reste a quem o buscar!... Que possa esta elegia
Salvar teu nome honrado ao eterno esquecimento.

III
“Nel monte, che si leva più...”
DANTE – PARAÍSO

Do lago a cavaleiro e às abas de um abismo
Sob alegres festões dominando os espaços,
Entre os raios da luz do sol — toda lirismo —
Ergue a capela branca em cruz os seus dois braços.

A porta principal de par em par aberta,
O altar-mor vê-se ao longe aceso e preparado,
E no centro da nave a essa está coberta
De um pano preto e em cima o caixão do finado.

Acesos os brandões sobre os grandes tocheiros
Rodeiam gravemente o triste monumento,
Crepita a luz e fuma a cera, e aos derradeiros
Gemidos se mistura e à surda voz do vento.

O olhar vago e empanado, a fronte augusta em sangue
Inclinada pra o peito e entre espinhos em coroa,
Braços pregados, surdo e cego, e morto e langue
Jesus da própria sombra esta mansão povoa.

Cheguei-me ao morto e lenço ergui, e vi seu rosto
Mais pálido talvez... talvez inda mais frio!...
Chorava? acompanhava o íntimo desgostoso
De tanta voz chorosa e tanto olhar sombrio?!...

Os escravos fiéis, alguns pobres vizinhos,
Filhas e esposa só, que o mais estava ausente,
Sobre o lençol do morto o véu dos seus carinhos
Lançavam pranteando aflita e amargamente...

A alva roupa da morte estendida cobria
Da noite eterna o rosto e quase o acarinhava;
Era o pobre arcabouço um ninho em que estendia
Asas para voar a alma que livre estava.

De mil nobres ações que ninguém conhecia,
Surgia a história e a lenda em lágrimas contada,
E a sua morte assim de chofre parecia
De estrelas a milhões a noite iluminada.

IV
“Terraque securae sit super ossa levis.”
TIBULLO – ELEGIA

Sentia lentamente as lágrimas caídas
Correrem no meu rosto em par, duas a duas!
Como sempre apertei-lhe aquelas mãos queridas,
Com minhas mãos peguei com todo o ardor as suas.

E enquanto contemplava o rosto macilento,
E a tez de novo mole e azul eu lhe palpava:
Soou mais alto o choro, e ao sopé do movimento,
O grave sacerdote os salmos recitava.

Aos salmos sucedendo os golpes do martelo
Que estrugiam, lançando os ecos na montanha,
Entravam por nós dentro, assim como um cutelo,
Que nos fosse cortando entranha por entranha.

Cerrava-se o caixão que o cadáver continha,
Que nunca mais de então pra vê-lo se abriria:
Ia deixar enfim esta terra maninha
Pelo país azul de um puro e eterno dia.

Ergueu-se o choro mais e mais: pela floresta
Começou de cortar o fúnebre cortejo.
E da longa existência, o que hoje apenas resta?
Tu, saudade, através da qual somente o vejo!...

V
“... obscura nocte per umbram...”
VIRGÍLIO – ENEIDA

Quando o enterro cortava o flanco das florestas,
Serpenteando ao longo a curva das colinas,
Das cercas de espinhais pelos milhões de frestas
Punham fora a cabeça as rútilas boninas.

A coroa do arvoredo agitada do vento
Lançava no caixão do morto odoras flores:
O sol já no ocidente, em leito sonolento,
Estendia com tédio os últimos fulgores.

A relva luzidia, o raio tíbio e morno,
Do sol era o tapete, a alfombra aveludada,
Por onde íamos nós acompanhando em torno
O féretro descendo a tortuosa estrada.

Como os pássaros já buscassem, pipitando,
Do bosque onde dormir, o galho, a folha, o ninho,
Sobre o caixão do morto alguns de quando em quando
Pousaram, revoando às silvas do caminho.

Tinha chovido muito à noite antecedente:
Estava o chão empapado, a argila escorregava,
E os pobres animais desciam lentamente,
E o préstito de quando em vez também parava.

As pedras soltas que caíram dos outeiros,
Arrancadas do alvéolo ao alvião da enxurrada
Demoravam também a marcha e os derradeiros
Rofos raios do sol deixavam erma a estrada.

Soprava agora um vento úmido e frio, vindo
Das extensões do mar por cima das colinas,
Que ramos, folhas, flor dos troncos sacudindo,
Tornavam cego o chão de um bosque verde em ruínas.

Ora a sombra caía em cheio no caminho;
Mais dura, mais espessa; ora a luz o inundava,
Conforme ia voltando o préstito sozinho
A montanha e de um lado ou de outro ela avultava.

De vez em quando, ao viso, o aspérrimo cabeço
Nu, como um osso escapo a um grande incêndio, e mudo
Como um fantasma, diz num gesto: — eu te conheço: —
Guardando imóvel, como um sábio, o crânio rudo.

Pelo breve cairel de altos despenhadeiros,
Fartos de sombra e arruído e gritos de torrentes,
Donde por vezes sobe onda de suaves cheiros,
Donde cipós briareus erguem braços florentes...

No olho de água a espiar do fundo da barroca,
Vê-se a morte a brincar nos seixos descuidada;
Rufa sobre um tambor, sombras de um torno evoca,
Sai do abismo o terror de enorme gargalhada.

E o fúnebre cortejo, a passos tíbios, lentos
Dos animais tirando os carros, acompanha
O morto, para quem o abismo tem lamentos,
E padres em oração, nos troncos, — a montanha.

VI
“Supremum  vale...”
OVÍDIO – METAMORPHOS

Como a noite surgisse, as sombras oscilantes
Pareciam cair dos bosques em cardumes,
E lançar sobre nós esqueletos gigantes,
Com o incerto e intermitente olhar dos vaga-lumes.

Ninguém falava: a dor e o respeito que vota
Ao cadáver o vivo, impunham mudez grande;
Um respirar mais rude é tudo que se nota...
A natureza só fantástica se expande.

Ela, que se prepara e enfeita pra os noivados,
Que sabe rir ao berço e rir a dois amantes,
Que conhece melhor a cor para os finados,
E é triste à viuvez, quando era alegre dantes!...

Quando chegamos, à bocaina do monte,
Vimos ao longe... ao longe... em vaga claridade,
Sair, como de um lago, à borda do horizonte,
Milhões de olhos de luz da esplêndida cidade.

Mas ao pé da montanha, aí onde ela acaba
E o vale começa, ao nosso, outro cortejo aliou-se:
E ambos num só, bem como a vaga une-se à vaga,
Deram um novo adeus ao morto, amargo e doce.

Quase uma hora depois em fuga estrepitosa
O cortejo batia as pedras da calçada:
Passávamos de noite a cidade orgulhosa,
Buscando enfim da morte a última pousada.

Chegamos. — Ecoou o sino: a porta aberta
Largamente, entrou nela o cortejo funéreo:
Os ciprestes de pé, fantásticos, alerta,
Pareciam passar em ronda o cemitério.

Adeus, meu bom amigo, adeus, pois!  De passagem
A tua vida narro em largo e simples traço:
Quem não gosta de ouvir histórias de viagem?
Da tua última... a história em lágrimas eu faço!

VII
“... blessed be that tear
It falls for one who cannot weep.”
BYRON OCCASSIONAL PIECES

Ó mausoléu marmóreo, em cuja cripta escura
Ele não pode ouvir chorar, nem também chora:
Sobre esta nobre ruína, em lágrima mais pura
Deixo a um friso o meu canto... um pobre canto embora.

Em arco esbelto e roto, em pano de muralha
A meio derrocada, às vezes, vinga a planta,
E as raízes estende, alarga, afunda, entalha
Na rocha colossal e a coma ao sol levanta.

No Coliseu há disto: — Ó célebres ruínas,
De vossos muros sobre um tronco inda enfezado,
Que ao sol da primavera esfolha-se em boninas,
E eterno vive como um plinto mutilado.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...