6/27/2018

Temas Poéticos: MORTE - III


A farsa dos mortos

LUÍS DELFINO
"Algas e Musgos" (1927)

Quando a Aurora ao surgir ia ensopando o espaço
De aromas bons, parou: — que fez parar a Aurora?
Fugiram-lhe, em remoinho, as pombas do regaço,
Caíram-lhe do cinto as rosas de ouro em fora.

Os pássaros, que prende à tenda, que decora,
Poisavam-lhe, cantando, à coma, ao ombro, ao braço;
E em pé, de um lírio viu, a nau que o mar devora
Há três dias, rosnando ante astrágalos de aço.

E onda a onda entoava uma odisseia ignota;
E os cadáveres rindo um riso alvar de idiota,
Mostrando os dentes e movendo os olhos tortos,

Rolavam numa dança insana e persistente:
E o velho oceano os via, e zombava igualmente
Da ironia dos céus e da farsa dos mortos...

★★★

A Morte

CRUZ E SOUZA
“Últimos Sonetos” (1905)

Oh! que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem...
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!

Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trêmulos decorrem...
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como faróis da humana Desventura.

Descem então aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Com os velhos corações tantalizados.

Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da morte ondeando, uivando...

★★★

Caveira

CRUZ E SOUZA
“Faróis” (1900)

I
Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!

II
Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!

III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curve leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
Caveira! Caveira!! Caveira!!!

★★★

Música da Morte...

CRUZ E SOUZA
“Faróis” (1900)

A música da morte, a nebulosa,
Estranha, imensa música sombria,
Passa a tremer pela minh’alma e fria
Gela, fica a tremer, maravilhosa...

Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
Letes sinistro e torvo da agonia,
Recresce a lancinante sinfonia,
Sobe, numa volúpia dolorosa...

Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
Tremenda, absurda, imponderada e larga,
De pavores e trevas alucina...

E alucinando e em trevas delirando,
Como um Ópio letal, vertiginando,
Os meus nervos, letárgica, fascina...

★★★

Visita à sepultura de meu irmão

BERNARDO GUIMARÃES
"Cantos da Solidão" (1852)

“A noite sempiterna
Que tu tão cedo vistes,
Cruel, acerba e triste
Sequer da tua idade não te dera
Que lograsses a fresca primavera?”
CAMÕES

Não vês nessa colina solitária
Aquela ermida, que sozinha alveja
O esguio campanário aos céus erguendo,
Como garça, que em meio das campinas
Alça o colo de neve?
E junto a ela um tosco muro cinge
A pousada dos mortos nua e triste,
Onde, plantada em meio, a cruz se eleva,
A cruz, bússola santa e venerável
Que nas tormentas e vaivéns da vida
O porto indica da celeste pátria...
Nem moimento, nem piedosa letra
Vem aqui iludir a lei do olvido;
Nem árvore funérea aí sussurra,
Prestando pia sombra ao chão dos mortos;
Nada quebra no lúgubre recinto
A paz sinistra que rodeia os túmulos:
Ali reina sozinha
Na hedionda nudez calcando as campas
A implacável rainha dos sepulcros;
E só de quando em quando
Vento da soidão passa gemendo,
E levanta a poeira dos jazigos.
Aqui tristes lembranças dentro d'alma
Eu sinto que se acordam, como cinza,
Que o vento de entre os túmulos revolve;
Meu infeliz irmão, aqui me surges,
Como a imagem de um sonho esvaecido,
E no meu coração sinto ecoando,
Qual débil som de suspirosa aragem,
Tua voz querida a murmurar meu nome.
Pobre amigo! — no albor dos anos tenros,
Quando a esperança com donoso riso
Nos braços te afagava,
E desdobrava com brilhantes cores
O painel do futuro ante os teus olhos,
Eis que sob teus passos se abre súbito
O abismo do sepulcro...
E aquela fronte juvenil e pura,
Tão prenhe de futuro e d'esperança,
Aquela fronte que talvez sonhava
Ir no outro dia, — ó irrisão amarga!
Repousar docemente em níveo seio,
Entre os risos de amor adormecida,
Vergada pela férrea mão da morte,
Caiu lívida e fria
No duro chão, em que repousa agora.
E hoje que venho no aposento lúgubre
Verter piedoso orvalho de saudade
Na planta emurchecida,
Ah! nem ao menos nesse chão funéreo
Os vestígios da morte encontrar posso!
Tudo aqui é silêncio, tudo olvido,
Tudo apagou-se sob os pés do tempo...
Oh! que é consolo ver ondear a coma
Duma árvore funérea sobre a lousa,
Que escondeu para sempre a nossos olhos
Dum ente amado inanimados restos.
Cremos que a anima o espírito do morto;
Nos místicos rumores da folhagem
Cuidamos escutar-lhe a voz dorida
Alta noite gemendo, e em sons confusos
Mistérios murmurando d'além-mundo.
Desgrenhado chorão, cipreste esguio,
Funéreas plantas dos jardins da morte,
Monumentos de dor, em que a saudade
Em nênia perenal vive gemendo,
Parece que com lúgubre sussurro
Ao nosso dó piedosos se associam,
E erguendo ao ar os verde-negros ramos
Apontam para o céu, sagrado asilo,
Refúgio extremo a corações viúvos,
Que colados à pedra funerária,
Tão fria, tão estéril de consolos,
O seu dorido luto em vãos lamentos
Arrastam pelo pó das sepulturas.
Mas — nem um goivo, nem funérea letra,
Amiga mão plantou neste jazigo;
Ah! ninguém disse à árvore dos túmulos
— Aqui sobre esta campa
Cresce, ó cipreste, e geme sobre ela,
Qual minha dor, em murmúrio eterno! —
Sob essa grama pálida e enfezada
Entre os outros aqui perdido jazes
dormindo o teu eterno e fundo sono...
Sim, pobre flor, sem vida aqui ficaste,
Envolta em pó, dos homens esquecida.
"Dá-me tua mão, amigo,
Marchemos juntos nesta vida estéril,
Vereda escura que conduz ao túmulo;
O anjo da amizade desde o berço
Nossos dias urdiu na mesma teia;
Ele é quem doura os nossos horizontes,
E a nossos pés alguma flor esparge...
Quais dois regatos, que ao cair das urnas
Se encontram na valada, e num só leito
Se abraçam, se confundem,
E quer volvam serenos, refletindo
O azul do céu e as florejantes ribas,
Quer furiosos ronquem
Em boqueirões sombrios despenhados,
Sempre unidos num só vão serpeando
‘Té se perderem na amplidão dos mares,
Tais volvam nossos dias;
A mesma taça no festim da vida
Para ambos sirva, seja fel ou néctar:
E quando enfim, completo o nosso estádio,
Formos pedir um leito de repouso
No asilo dos finados,
A mesma pedra nossos ossos cubra!"
É assim que tu falavas
Ao amigo, que aos cândidos acentos
De teu falar suave atento ouvido
Inclinava sorrindo:
E hoje o que é feito desse sonho ameno,
Que nos dourava a ardente fantasia?
Dessas palavras de magia cheias,
Que em melíflua torrente deslizavam
De teus lábios sublimes?
São vagos sons, que me murmuram n'alma,
Qual reboa gemendo no alaúde
A corda que estalara.
Ledo arroio que vinhas da montanha
Descendo alvo e sonoro,
O sol abraseado do deserto
Num dia te secou as ondas límpidas,
E eu fiquei só, trilhando a escura senda,
Sem tuas puras águas
Para orvalhar-me os ressequidos lábios,
Sem mais ouvir o trépido murmúrio,
Que em tão plácidos sonhos m'embalava...
Mas — cessem nossas queixas, e curvemo-nos
Aos pés daquela cruz, que ali se exalça,
Símbolo sacrossanto do martírio,
Fanal de redenção,
Que na hora do extremo passamento
Por entre a escura sombra do sepulcro
Mostra ao cristão as portas radiantes
Da celeste Solima, — ei-la que fulge
Como luz de esperança ao caminhante,
Que transviou-se em noite de tormenta;
E alçada sobre as campas
Parece estar dizendo à humanidade:
Não choreis sobre aqueles que aqui dormem;
Não mais turbeis com vossos vãos lamentos
O sono dos finados.
Eles foram gozar bens inefáveis
Na pura esfera, onde d'aurora os raios
Seu brilho perenal jamais extinguem,
Deixando sobre a margem do jazigo
A cruz dos sofrimentos.
Adeus, portanto, fúnebre recinto!
E tu, amigo, que tão cedo vieste
Pedir pousada na mansão dos mortos,
Adeus! — foste feliz, — que a senda é rude,
O céu é tormentoso, e o pouso incerto.


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