A farsa dos mortos
LUÍS DELFINO
"Algas e Musgos" (1927)
Quando a Aurora ao surgir ia ensopando o
espaço
De aromas bons, parou: — que fez parar a
Aurora?
Fugiram-lhe, em remoinho, as pombas do regaço,
Caíram-lhe do cinto as rosas de ouro em fora.
Os pássaros, que prende à tenda, que decora,
Poisavam-lhe, cantando, à coma, ao ombro, ao
braço;
E em pé, de um lírio viu, a nau que o mar
devora
Há três dias, rosnando ante astrágalos de aço.
E onda a onda entoava uma odisseia ignota;
E os cadáveres rindo um riso alvar de idiota,
Mostrando os dentes e movendo os olhos tortos,
Rolavam numa dança insana e persistente:
E o velho oceano os via, e zombava igualmente
Da ironia dos céus e da farsa dos mortos...
★★★
A Morte
CRUZ E SOUZA
“Últimos
Sonetos”
(1905)
Oh! que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem...
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!
Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trêmulos decorrem...
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como faróis da humana Desventura.
Descem então aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Com os velhos corações tantalizados.
Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da morte ondeando, uivando...
★★★
Caveira
CRUZ E SOUZA
“Faróis” (1900)
I
Olhos que foram
olhos, dois buracos
Agora, fundos, no
ondular da poeira...
Nem negros, nem
azuis e nem opacos.
Caveira!
II
Nariz de linhas,
correções audazes,
De expressão
aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos
virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!
III
Boca de dentes
límpidos e finos,
De curve leve,
original, ligeira,
Que é feito dos
teus risos cristalinos?!
Caveira! Caveira!!
Caveira!!!
★★★
Música da Morte...
CRUZ E SOUZA
“Faróis” (1900)
A música da morte,
a nebulosa,
Estranha, imensa
música sombria,
Passa a tremer pela
minh’alma e fria
Gela, fica a
tremer, maravilhosa...
Onda nervosa e
atroz, onda nervosa,
Letes sinistro e
torvo da agonia,
Recresce a
lancinante sinfonia,
Sobe, numa volúpia
dolorosa...
Sobe, recresce,
tumultuando e amarga,
Tremenda, absurda,
imponderada e larga,
De pavores e trevas
alucina...
E alucinando e em
trevas delirando,
Como um Ópio letal,
vertiginando,
Os meus nervos,
letárgica, fascina...
★★★
Visita à sepultura de meu irmão
BERNARDO GUIMARÃES
"Cantos da Solidão" (1852)
“A noite sempiterna
Que tu tão cedo vistes,
Cruel, acerba e triste
Sequer da tua idade não te dera
Que lograsses a fresca primavera?”
CAMÕES
Não vês nessa
colina solitária
Aquela ermida, que
sozinha alveja
O esguio
campanário aos céus erguendo,
Como garça, que em
meio das campinas
Alça o colo de
neve?
E junto a ela um
tosco muro cinge
A pousada dos
mortos nua e triste,
Onde, plantada em
meio, a cruz se eleva,
A cruz, bússola
santa e venerável
Que nas tormentas
e vaivéns da vida
O porto indica da
celeste pátria...
Nem moimento, nem
piedosa letra
Vem aqui iludir a
lei do olvido;
Nem árvore funérea
aí sussurra,
Prestando pia
sombra ao chão dos mortos;
Nada quebra no
lúgubre recinto
A paz sinistra que
rodeia os túmulos:
Ali reina sozinha
Na hedionda nudez
calcando as campas
A implacável
rainha dos sepulcros;
E só de quando em
quando
Vento da soidão
passa gemendo,
E levanta a poeira
dos jazigos.
Aqui tristes
lembranças dentro d'alma
Eu sinto que se
acordam, como cinza,
Que o vento de
entre os túmulos revolve;
Meu infeliz irmão,
aqui me surges,
Como a imagem de
um sonho esvaecido,
E no meu coração
sinto ecoando,
Qual débil som de
suspirosa aragem,
Tua voz querida a
murmurar meu nome.
Pobre amigo! — no
albor dos anos tenros,
Quando a esperança
com donoso riso
Nos braços te
afagava,
E desdobrava com
brilhantes cores
O painel do futuro
ante os teus olhos,
Eis que sob teus
passos se abre súbito
O abismo do
sepulcro...
E aquela fronte juvenil
e pura,
Tão prenhe de
futuro e d'esperança,
Aquela fronte que
talvez sonhava
Ir no outro dia, —
ó irrisão amarga!
Repousar docemente
em níveo seio,
Entre os risos de
amor adormecida,
Vergada pela
férrea mão da morte,
Caiu lívida e fria
No duro chão, em
que repousa agora.
E hoje que venho
no aposento lúgubre
Verter piedoso
orvalho de saudade
Na planta
emurchecida,
Ah! nem ao menos
nesse chão funéreo
Os vestígios da
morte encontrar posso!
Tudo aqui é
silêncio, tudo olvido,
Tudo apagou-se sob
os pés do tempo...
Oh! que é consolo
ver ondear a coma
Duma árvore
funérea sobre a lousa,
Que escondeu para
sempre a nossos olhos
Dum ente amado
inanimados restos.
Cremos que a anima
o espírito do morto;
Nos místicos
rumores da folhagem
Cuidamos
escutar-lhe a voz dorida
Alta noite
gemendo, e em sons confusos
Mistérios
murmurando d'além-mundo.
Desgrenhado
chorão, cipreste esguio,
Funéreas plantas
dos jardins da morte,
Monumentos de dor,
em que a saudade
Em nênia perenal
vive gemendo,
Parece que com
lúgubre sussurro
Ao nosso dó
piedosos se associam,
E erguendo ao ar
os verde-negros ramos
Apontam para o
céu, sagrado asilo,
Refúgio extremo a
corações viúvos,
Que colados à
pedra funerária,
Tão fria, tão
estéril de consolos,
O seu dorido luto
em vãos lamentos
Arrastam pelo pó
das sepulturas.
Mas — nem um
goivo, nem funérea letra,
Amiga mão plantou
neste jazigo;
Ah! ninguém disse
à árvore dos túmulos
— Aqui sobre esta
campa
Cresce, ó
cipreste, e geme sobre ela,
Qual minha dor, em
murmúrio eterno! —
Sob essa grama
pálida e enfezada
Entre os outros
aqui perdido jazes
dormindo o teu
eterno e fundo sono...
Sim, pobre flor,
sem vida aqui ficaste,
Envolta em pó, dos
homens esquecida.
"Dá-me tua
mão, amigo,
Marchemos juntos
nesta vida estéril,
Vereda escura que
conduz ao túmulo;
O anjo da amizade
desde o berço
Nossos dias urdiu
na mesma teia;
Ele é quem doura
os nossos horizontes,
E a nossos pés
alguma flor esparge...
Quais dois
regatos, que ao cair das urnas
Se encontram na
valada, e num só leito
Se abraçam, se
confundem,
E quer volvam
serenos, refletindo
O azul do céu e as
florejantes ribas,
Quer furiosos
ronquem
Em boqueirões
sombrios despenhados,
Sempre unidos num
só vão serpeando
‘Té se perderem na
amplidão dos mares,
Tais volvam nossos
dias;
A mesma taça no
festim da vida
Para ambos sirva,
seja fel ou néctar:
E quando enfim,
completo o nosso estádio,
Formos pedir um
leito de repouso
No asilo dos
finados,
A mesma pedra
nossos ossos cubra!"
É assim que tu
falavas
Ao amigo, que aos
cândidos acentos
De teu falar suave
atento ouvido
Inclinava
sorrindo:
E hoje o que é
feito desse sonho ameno,
Que nos dourava a
ardente fantasia?
Dessas palavras de
magia cheias,
Que em melíflua
torrente deslizavam
De teus lábios
sublimes?
São vagos sons,
que me murmuram n'alma,
Qual reboa gemendo
no alaúde
A corda que
estalara.
Ledo arroio que
vinhas da montanha
Descendo alvo e
sonoro,
O sol abraseado do
deserto
Num dia te secou
as ondas límpidas,
E eu fiquei só,
trilhando a escura senda,
Sem tuas puras
águas
Para orvalhar-me
os ressequidos lábios,
Sem mais ouvir o
trépido murmúrio,
Que em tão
plácidos sonhos m'embalava...
Mas — cessem
nossas queixas, e curvemo-nos
Aos pés daquela
cruz, que ali se exalça,
Símbolo
sacrossanto do martírio,
Fanal de redenção,
Que na hora do
extremo passamento
Por entre a escura
sombra do sepulcro
Mostra ao cristão
as portas radiantes
Da celeste Solima,
— ei-la que fulge
Como luz de
esperança ao caminhante,
Que transviou-se
em noite de tormenta;
E alçada sobre as
campas
Parece estar
dizendo à humanidade:
Não choreis sobre
aqueles que aqui dormem;
Não mais turbeis
com vossos vãos lamentos
O sono dos
finados.
Eles foram gozar
bens inefáveis
Na pura esfera,
onde d'aurora os raios
Seu brilho perenal
jamais extinguem,
Deixando sobre a
margem do jazigo
A cruz dos
sofrimentos.
Adeus, portanto,
fúnebre recinto!
E tu, amigo, que
tão cedo vieste
Pedir pousada na
mansão dos mortos,
Adeus! — foste
feliz, — que a senda é rude,
O céu é
tormentoso, e o pouso incerto.
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