6/28/2018

Temas Poéticos: MITOLOGIA V


Trilogia
OLAVO BILAC
“Tarde” (1919)
I
PROMETEU

Filhas verdes do mar, e ó nuvens, num incenso,
Beijai-me! e bendizei o meu sangue e o meu pranto!
Quando sucumbo e sou vencido, — exulto e venço:
A minha queda é glória e o meu rugido é canto!

Sob os grilhões, espero; escravizado, penso;
E, morto, viverei! Domando a carne e o espanto,
Invadindo de estrela a estrela o Olimpo imenso,
Roubei-lhe na escalada o fogo sacrossanto!
Forjando o ferro, arando o chão, prendendo o raio,
Dei aos homens o ideal que anima, e o pão que nutre...
Debalde o ódio, e o castigo, e as garras me consomem:

Quando sofro, maior, mais alto, quando caio,
Sou, entre a terra e o céu, entre o Cáucaso e o abutre,
— Sobre o martírio, o orgulho, e, sobre os deuses, homem!

II
HÉRCULES

Que vale o orgulho? A dor é, como a vida, eterna;
Mas a força defende, e a compaixão redime.
Sou, na humana floresta a planta heroica e terna:
Contra a violência um roble, e pura a prece um vime.
Por onde reviveu, silvando, a hidra de Lema,
Fuzilou no meu braço a cólera sublime;
Os monstros persegui de caverna em caverna,
Sufoquei de antro em antro a peste, a infâmia e o crime:

E, ó Homem, libertei-te!... E, enfim, depondo a clava,
Inerme semideus, sonhei, doce fiandeiro,
De roca e fuso, aos pés de Onfália, num arrulho...
Alma livre no assomo, e na piedade escrava,
Sou raio e beijo, ardor e alívio, águia e cordeiro,
— A força que liberta, e o amor que vence o orgulho!
III
JESUS
Mas sempre sofrerás neste vale medonho...
Que importa? Redentor e mártir voluntário,
Para a tua miséria um reino imaginário
Invento, glória e paz num futuro risonho.
Para te consolar, no opróbrio do Calvário,
Hóstia e vítima, a carne, o sangue e a alma deponho:
Nasce da minha morte a vida do teu sonho,
E todo o choro humano embebe o meu sudário.
Só liberta a renúncia. Ó triste! a sombra imensa
Dos braços desta cruz espalha sobre o mundo
A utopia celeste, orvalho ao teu suplício.
Sou a misericórdia ilusória da crença:
Sobre a força, a fraqueza; e, sobre o amor fecundo,
A piedade sem glória e o inútil sacrifício!

★★★

A IARA
OLAVO BILAC
“Tarde” (1919)
Vive dentro de mim, como num rio,
Uma linda mulher, esquiva e rara,
Num borbulhar de argênteos flocos, Iara
De cabeleira de ouro e corpo frio.
Entre as ninfeias a namoro e espio:
E ela, do espelho móbil da onda clara,
Com os verdes olhos úmidos me encara,
E oferece-me o seio alvo e macio.
Precipito-me, no ímpeto de esposo,
Na desesperação da glória suma,
Para a estreitar, louco de orgulho e gozo...
Mas nos meus braços a ilusão se esfuma:
E a mãe-d'água, exalando um ai piedoso,
Desfaz-se em mortas pérolas de espuma.

★★★

Faust
(A Valentim Magalhães)

AUGUSTO DE LIMA
“Contemporâneas” (1887)

O lívido Alquimista, à morna claridade
da sonhadora luz de uma lâmpada exótica,
cismava como Cristo, em torva ansiedade,
na câmara senil de arquitetura gótica.

Entre os livros de Hermes, aberto um alfarrábio,
ante o turvado olhar, voejando as mariposas,
na atitude febril de um saltimbanco, o sábio
prescrutava o segredo hermético das Coisas...

De um lado o macrocosmo, onde dos mundos a alma
se agita, e do outro, sobre uns sinais cabalísticos,
uma caveira ri-se ao luar que lhe espalma,
na fronte erguida, a luz dos devaneios místicos.

Sonha o sábio alemão com minotauros, grifos,
e evoca do Caldeu a mítica magia;
enquanto, em cima, paira entre mil hieróglifos
o vulto de Satã na abóbada sombria.

Na espelhenta parede umedecida, donde
pendem drogas letais e ressequidos ramos,
divisam-se iniciais de algum antigo conde
e o rugoso perfil do austero Nostradamus.

Lá fora, o etéreo azul se ilumina, arqueado,
como um sonho a pairar por sobre as catedrais,
que, no sono do Tempo, escondem o sagrado
depósito senil dos túmulos reais.

Nos álamos perpassa a viração tranquila,
como a sombra fugaz de uma Valquíria pálida,
e sobre o azul vapor píncaros cintila
a lua, a rebentar, a esplêndida crisálida.

Um bando de aldeões crestados pelo dia
em banhos de luar esquecem as fadigas,
expandindo em canções a rústica alegria,
esperando a sazão fecunda das espigas.

Mas não lhe importa, ao velho, ao sábio misantropo
que o mundo se divirta e que o trabalho cante,
a ele, que só vive a ver pelo horóscopo
o Nada universal, abrindo a goela hiante...

Ó Fausto, sonhador Quixote da ciência,
quando buscavas ler no livro do Futuro,
nos antros da Matéria, o verbo da Existência,
mais absurdo que tu, mais sibilino e escuro;

Talvez no seu jardim, mais bela das mulheres,
entre os risos azuis da Natureza nua,
regasse a Margarida os brancos malmequeres,
que depois desfolhou por ti, à luz da lua.

★★★

A morte de Safo

AUGUSTO DE LIMA
“Contemporâneas” (1887)

Do píncaro sagrado da alterosa
Leucade, solta a cabeleira ao vento,
as crespas ondas do úmido elemento
Safo contempla triste e lacrimosa.

Orna-lhe a fronde víride coroa;
gotas de pranto as meigas faces lhe ornam,
como bagas de orvalho, que se entornam
na flor, que o aroma à luz desabotoa.

Que mágoa aflige a musa das Helenas,
por que prantos de mágoa assim derrame-os?
Não mais os festivais epitalâmios...
Fechai-vos, portas da sonora Atenas.

Emudeceram com acerbas dores
as cordas dessa lira,
em que outrora suaves desferira
tantas odes de amor, ternos amores.

Cessam do vento, as querulas endeixas,
as ondas mansas se unem, se misturam,
e umas às outras, a passar, murmuram
flebilíssimas queixas;

Queixas, que apenas nascem, logo expiram,
efêmeras, no espaço em brando choro,
notas eólias, que na lira de ouro
“Faon”... leves suspiram.

“Faon”... E Safo numa angústia horrível,
Pítia de Delfos, desgrenhada e louca,
o olhar incerto, enlivecida a boca,
“Faon”... exclama, erguendo-se terrível!

“Belo nume, por quem debalde chamo,
filho de Vênus, a outro amor entregue,
fatal destino a sorte me persegue:
– busco-te, e foges, foges-me, e eu mais te amo.

Beijos ardentes, que os desejos fingem,
queimam meus lábios e meu rosto abrasam,
e em minhas veias vazam
chamas, que todo o coração cingem.

Trêmulo o seio em ânsia convulsiva,
turvos os olhos, sinto a língua presa,
e, num desmaio lânguido, cativa,
arde minha alma em teu amor acesa.

Quando em sonhos te bebo o amante bafo,
e aperto-te a meu peito que lateja,
até no Olimpo os deuses têm inveja
à venturosa Safo.

Sonhos? Mentira é tudo quando acordo,
menos o teu desprezo e o meu martírio,
e me entregando ao fervido delírio,
em amorosa raiva o lábio mordo!

Sepulta, Iônio mar, este tormento,
Alceu, teus hinos imortais se calem,
Lira de Lesbos, com minha alma estalem
todas as tuas cordas num momento!!!”

Disse: e do alto rochedo se arrojando,
caiu no mar. E as aves que passavam,
suaves murmuravam
os queixumes da amante em choro brando.

A náiades formosas
vão levando em triunfo a lira de ouro;
enquanto no azulado sorvedouro
embalam Safo ondinas lacrimosas,

crescentes arcos desenhando na água,
em caprichoso giro;
e o manso vento, portador de mágoa,
leva a Faon seu último suspiro...

★★★

A herança de Prometeu

AUGUSTO DE LIMA
“Contemporâneas” (1887)

Na veia de aço que as nações irmana,
sangue de luz, corre a veloz fagulha,
como um fragmento da razão humana;
e a palavra que a ideia desabrocha,
corta os ares, no pélago mergulha,
rompe as geleiras, vence a dura rocha
e, galgando os abismos mais profundos,
liga os polos e abraça os cinco mundos!

Nem mais rápido, ó sol, ferira o lume
de teu nascente raio
o inacessível cume
do montanhoso píncaro himalaio;
nem mais brilha, dos trópicos
entre os vales ciclópicos,
na mica cintilante ou no ouro raro,
teu intenso fulgor em dia claro.

Sumiu-se o sol no ocaso?
Vaga o luto sombrio
na vastidão da noite? – O débil fio,
como serpente, enrosca-se e conduz
secreta força a misterioso vaso...
e em elétrico jorro esguicha a luz!
Ao clarão desta aurora,
(pasmai, povos antigos, deuses novos,
pasmai, futuros povos!)
na membrana, metálica, sonora,
vivo papiro, página animada,
Edison guarda a Tradição falada...

Houve outrora, no Caucaso, um proscrito,
diz a legenda grega,
que um dia subtraíra,
no páramo infinito,
a sagrada faísca à eterna pira,
porque ao homem guiasse a razão cega.

Pois bem! tempo há de vir em que o Deus Homem,
no anseio dos esforços que o consomem,
busque tocar no sideral assento,
cavalgando um condor de asas de arame;
irá restituir a chama ao céu
e obter indulto para o audaz gravame;
porém, não há de achar mais firmamento.

Serás, então, vingado, ó Prometeu!
Enquanto, na ara sacra, o ázimo pão elevas
ante o estático olhar da crente multidão,
e, alma feita de lodo, alma feita de trevas,
finges seguir piedoso os Passos da Paixão;

A gangrena roaz dos sôfregos instintos
imprime-te no corpo asinino e suado,
os beijos sensuais, tantálicos, famintos,
da impureza carnal, do lúbrico pecado.

Sacrílego, onde tens recôndita a consciência,
onde abrigas, Tartufo, a misteriosa fé,
por que erijas em crime as normas da Existência,
e calques a virtude honesta com teu pé?

Prostituis a mulher, e a chamas Madalena,
perdoas o adultério e condenas o berço,
maculando do amor a grande alma serena,
que forma o panteísmo imenso do universo.

Olha, torpe embaidor das vãs consciências cegas,
mocho da escuridão no século da luz,
enquanto na tribuna a caridade pregas,
pregas o Salvador segunda vez na cruz!

Debaixo da aparência humílima e bondosa,
(e não falta, aliás, quem, ínclita, proclame-a!)
ocultas uma jaula escura e pavorosa,
em que ruge, sangrenta, a pantera da infâmia!

Tivesses tu poder, e este formoso mundo,
que avista agora a luz de um sol prometedor,
não passaria, então, de um pantanal imundo,
do qual serias, sapo, o único ditador.

E, nesse esgar canino, hidrófobo nefário,
cobririas, até, se o pudesses, de rastros,
com a tua roupeta o espaço planetário,
só para os Galileus não descobrirem astros.


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