Amazona
LUÍS
DELFINO
“Algas
e Musgos”
(1927)
Oh! Era
uma amazona verdadeira,
Quando
montava o seu gentil cavalo:
Vinha-lhe
em luz ao rosto o fundo abalo,
Que ia
beber na rápida carreira!
Chapéu
preto emplumado; a cabeleira
Lá
dentro, como um sol dentro de um valo:
Um
chicotinho só para guiá-lo...
Antes
raio de luz na mão faceira.
Buscava
ao longe as veigas mais secretas:
Acordava
ao galope a gruta rouca,
Olhavam-na
as estrelas inquietas...
E ela
voava assim como uma louca,
Dentro
dos olhos carregando as setas,
Levando
o arco atravessado à boca.
★★★
No Olimpo
LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)
Sonhei. — No Olimpo imenso e resplendente,
Do turbilhão dos deuses o ruído
Era enorme: era o nu belo e atrevido,
Que ali anda num bródio permanente...
Lisonjeado Jove onipotente,
Falaz sempre, porém jamais vencido,
Cada um dos imortais farto e bebido
Vai deixando o triclínio de repente.
Todos, dançando em derredor da mesa,
Gritam: — Viva o amor! Viva a Beleza! —
Está toda a companhia ou ébria, ou louca.
E eu: — Ganimedes, mais... mais ambrosia —
Mas a cratera, pela qual bebia,
Era tua boca, Helena, em minha boca.
★★★
Íxion
LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)
Não podes ser a pérola da veiga,
Nem branca névoa, filha da alvorada,
Que se esgarça e flutua e fica em nada,
Se põe nela os pés de ouro o sol que chega.
Quero-te, Helena, para ser amada,
Modelo em carne de uma pedra grega,
Rainha de Sabá, ridente e meiga,
Que desce um trono ao ser por mim enleada.
Seria um sonho mau, sonho importuno,
Ser Íxion, amar com desespero a Juno,
E ir abraçar a deusa onipotente
E uma nuvem tão só ter abraçado,
E ser ainda ao Orco condenado
A mover uma roda eternamente...
★★★
A orgia dos duendes
BERNARDO GUIMARÃES
"O Elixir do Pajé" (1875)
I
Meia-noite soou na
floresta
No relógio de sino
de pau;
E a velhinha,
rainha da festa,
Se assentou sobre
o grande jirau.
Lobisomem apanhava
os gravetos
E a fogueira no
chão acendia,
Revirando os
compridos espetos,
Para a ceia da
grande folia.
Junto dele um vermelho
diabo
Que saíra do antro
das focas,
Pendurado num pau
pelo rabo,
No borralho
torrava pipocas.
Taturana, uma
bruxa amarela,
Resmungando com ar
carrancudo,
Se ocupava em
frigir na panela
Um menino com
tripas e tudo.
Getirana com todo
o sossego
A caldeira da sopa
adubava
Com o sangue de um
velho morcego,
Que ali mesmo
co’as unhas sangrava.
Mamangava frigia
nas banhas
Que tirou do
cachaço de um frade
Adubado com pernas
de aranha,
Fresco lombo de um
frei dom abade.
Vento sul sobiou
na cumbuca,
Galo-Preto na
cinza espojou;
Por três vezes
zumbiu a mutuca,
No cupim o macuco
piou.
E a rainha co’as
mãos ressequidas
O sinal por três
vezes foi dando,
A corte das almas
perdidas
Desta sorte ao
batuque chamando:
"Vinde, ó
filhas do oco do pau,
Lagartixas do rabo
vermelho,
Vinde, vinde tocar
marimbau,
Que hoje é festa
de grande aparelho.
Raparigas do monte
das cobras,
Que fazeis lá no
fundo da brenha?
Do sepulcro
trazei-me as abobras,
E do inferno os
meus feixes de lenha.
Ide já procurar-me
a bandurra
Que me deu minha
tia Marselha,
E que aos ventos
da noite sussurra,
Pendurada no
arco-da-velha.
Onde estás, que
inda aqui não te vejo,
Esqueleto gamenho
e gentil?
Eu quisera
acordar-te c’um beijo ]
Lá no teu
tenebroso covil.
Galo-preto da
torre da morte,
Que te aninhas em leito
de brasas,
Vem agora esquecer
tua sorte,
Vem-me em torno
arrastar tuas asas.
Sapo-inchado, que
moras na cova
Onde a mão do
defunto enterrei,
Tu não sabes que
hoje é lua nova,
Que é o dia das
danças da lei?
Tu também, ó
gentil Crocodilo,
Não deplores o
suco das uvas;
Vem beber
excelente restilo
Que eu do pranto
extraí das viúvas.
Lobisomem, que
fazes, meu bem
Que não vens ao
sagrado batuque?
Como tratas com
tanto desdém,
Quem a c’roa te
deu de grão-duque?”
II
Mil duendes dos
antros saíram
Batucando e batendo
matracas,
E mil bruxas
uivando surgiram,
Cavalgando em
compridas estacas.
Três diabos
vestidos de roxo
Se assentaram aos
pés da rainha,
E um deles, que
tinha o pé coxo,
Começou a tocar
campainha.
Campainha, que
toca, é caveira
Com badalo de
casco de burro,
Que no meio da
selva agoureira
Vai fazendo
medonho sussurro.
Capetinhas,
trepados nos galhos
Com o rabo
enrolado no pau,
Uns agitam sonoros
chocalhos,
Outros põem-se a
tocar marimbau.
Crocodilo roncava
no papo
Com ruído de
grande fragor:
E na inchada
barriga de um sapo
Esqueleto tocava
tambor.
Da carcaça de um
seco defunto
E das tripas de um
velho barão,
De uma bruxa
engenhosa o bestunto
Armou logo feroz
rabecão.
Assentado nos pés
da rainha
Lobisomem batia a
batuta
Co’a canela de um
frade, que tinha
Inda um pouco de
carne corruta.
Já ressoam
timbales e rufos,
Ferve a dança do
cateretê;
Taturana, batendo
os adufos,
Sapateia cantando
— o le rê!
Getirana, bruxinha
tarasca,
Arranhando fanhosa
bandurra,
Com tremenda
embigada descasca
A barriga do velho
Caturra.
O Caturra era um
sapo papudo
Com dois chifres
vermelhos na testa,
e era ele, a
despeito de tudo,
O rapaz mais
patusco da festa.
Já no meio da roda
zurrando
Aparece a
mula-sem-cabeça,
Bate palmas, a
súcia berrando
— Viva, viva a
Sra. Condessa!...
E dançando em
redor da fogueira
vão girando,
girando sem fim;
Cada qual uma
estrofe agoureira
Vão cantando
alternados assim:
III
TATURANA
Dos prazeres de
amor as primícias,
De meu pai entre
os braços gozei;
E de amor as
extremas delícias
Deu-me um filho,
que dele gerei.
Mas se minha
fraqueza foi tanta,
De um convento fui
freira professa;
Onde morte morri
de uma santa;
Vejam lá, que tal
foi esta peça.
GETIRANA
Por conselhos de
um cônego abade
Dois maridos na
cova soquei;
E depois por
amores de um frade
Ao suplício o
abade arrastei.
Os amantes, a quem
despojei,
Conduzi das
desgraças ao cúmulo,
E alguns filhos,
por artes que sei,
Me caíram do
ventre no túmulo.
GALO-PRETO
Como frade de um
santo convento
Este gordo toutiço
criei;
E de lindas
donzelas um cento
No altar da
luxúria imolei.
Mas na vida beata
de ascético
Mui contrito
rezei, jejuei,
‘Té que um dia de
ataque apoplético
Nos abismos do
inferno estourei.
ESQUELETO
Por fazer aos
mortais crua guerra
Mil fogueiras no
mundo ateei;
Quantos vivos
queimei sobre a terra,
Já eu mesmo
contá-los não sei.
Das severas
virtudes monásticas
Dei no entanto
piedosos exemplos;
E por isso cabeças
fantásticas
Inda me erguem
altares e templos.
MULA-SEM-CABEÇA
Por um bispo eu
morria de amores,
Que afinal meus
extremos pagou;
Meu marido,
fervendo em furores
De ciúmes, o bispo
matou.
Do consórcio
enjoei-me dos laços,
E ansiosa quis
vê-los quebrados,
Meu marido piquei
em pedaços,
E depois o comi
aos bocados.
Entre galas,
veludo e damasco
Eu vivi, bela e
nobre condessa;
E por fim entre as
mãos do carrasco
Sobre um cepo
perdi a cabeça.
CROCODILO
Eu fui papa; e aos
meus inimigos
Para o inferno
mandei c’um aceno;
E também por
servir aos amigos
té nas hóstias
botava veneno.
De princesas
cruéis e devassas
Fui na terra
constante patrono;
Por gozar de seus
mimos e graças
Opiei aos maridos
sem sono.
Eu na terra
vigário de Cristo,
Que nas mãos tinha
a chave do céu,
Eis que um dia de
um golpe imprevisto
Nos infernos caí
de boléu.
LOBISOMEM
Eu fui rei, e aos
vassalos fiéis
Por chalaça
mandava enforcar;
E sabia por modos
cruéis
As esposas e
filhas roubar.
Do meu reino e de
minhas cidades
O talento e a
virtude enxotei;
De michelas,
carrascos e frades
Do meu trono os
degraus rodeei.
Com o sangue e
suor de meus povos
Diverti-me e criei
esta pança,
Para enfim, urros
dando e corcovos,
Vir ao demo servir
de pitança.
RAINHA
Já no ventre
materno fui boa;
Minha mãe, ao
nascer, eu matei;
E a meu pai, por
herdar-lhe a coroa
Eu seu leito co’as
mãos esganei.
Um irmão mais
idoso que eu,
C’uma pedra
amarrada ao pescoço,
Atirado às ocultas
morreu
Afogado no fundo
de um poço.
Em marido nenhum
achei jeito;
Ao primeiro, o
qual tinha ciúmes,
Uma noite co’as
colchas do leito
Abafei para sempre
os queixumes.
Ao segundo, da
torre do paço
Despenhei por me
ser desleal;
Ao terceiro por
fim num abraço
pelas costas
cravei-lhe um punhal.
Entre a turba de
meus servidores
Recrutei meus
amantes de um dia;
Quem gozava meus
régios favores
Nos abismos do mar
se sumia.
No banquete
infernal da luxúria
Quantos vasos aos
lábios chegava,
Satisfeita aos
desejos a fúria,
Sem piedade depois
os quebrava.
Quem prática
proezas tamanhas
Cá não veio por
fraca e mesquinha,
E merece por suas
façanhas
Inda mesmo entre
vós ser rainha.
IV
Do batuque
infernal, que não finda,
Turbilhona o fatal
rodopio;
Mais veloz, mais
veloz, mais ainda
Ferve a dança como
um corrupio.
Mas eis que no
mais quente da festa
Um rebenque
estalando se ouviu,
Galopando através
da floresta
Magro espectro
sinistro surgiu
Hediondo esqueleto
aos arrancos
Chocalhava nas
abas da sela;
Era a morte, que
vinha de tranco
Amontada numa égua
amarela.
O terrível
rebenque zunindo
A nojenta canalha
enxotava;
E à esquerda e à
direita zurzindo
Com voz rouca
desta arte bradava:
"Fora, fora!
esqueletos poentos,
Lobisomens, e
bruxas mirradas!
Para a cova esses
ossos nojentos!
Para o inferno
essas almas danadas!”
Um estouro rebenta
nas selvas,
Que recendem com
cheiro de enxofre;
E na terra por
baixo das relvas
Toda a súcia
sumiu-se de chofre.
V
E aos primeiros
albores do dia
Nem ao menos se
viam vestígios
Da nefanda,
asquerosa folia,
Dessa noite de
horrendos prodígios.
E nos ramos
saltavam as aves
Gorjeando canoros
queixumes,
E brincavam as
auras suaves
Entre as flores
colhendo perfumes.
E na sombra
daquele arvoredo,
Que inda há pouco
viu tantos horrores,
Passeando sozinha
e sem medo
Linda virgem
cismava de amores.
★★★
Ícaro
AUGUSTO DE LIMA
“Contemporâneas” (1887)
Busco embalde, librado em minhas asas,
do espaço o fim num desvario louco:
ao calor de não sei que olhar em brasas,
vão elas derretendo pouco a pouco.
A universal orquestra das esferas
nas orgias da luz retumba em festas,
e o éter inebria as primaveras,
que vêm adormecer pelas florestas.
É possível que, em cima, haja a secreta
chave do enigma místico e profundo,
que nos cerca, e que possa algum planeta
informar-me o que somos neste mundo.
Mas não posso subir! O crânio ardente,
sempre no globo agrilhoado e preso!
– Orgulhosa razão, és impotente,
minhas asas de cera, eu vos desprezo.
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