Hino da manhã
ANTERO DE QUENTAL
“Sonetos” (1861)
Tu, casta e alegre luz da madrugada,
Sobe, cresce no céu, pura e vibrante,
E enche de força o coração triunfante
Dos que ainda esperam, luz imaculada!
Mas a mim pões-me tu tristeza imensa
No desolado coração. Mais quero
A noite negra, irmã do desespero,
A noite solitária, imóvel, densa,
O vácuo mudo, onde astro não palpita,
Nem ave canta, nem sussurra o vento,
E adormece o próprio pensamento,
Do que a luz matinal... a luz bendita!
Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
Imagem do repouso inalterável
E do esquecimento inviolável,
Que anseia o mundo, farto de sofrer...
Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
O nada universal o pensamento,
E despreza o viver e o seu tormento.
E olvida, como quem está já morto...
E, interrogando intrépido o Destino,
Como réu o renega e o condena,
E virando-se, fita em paz serena
O vácuo augusto, plácido e divino...
Porque a noite é a imagem da Verdade,
Que está além das coisas transitórias.
Das paixões e das formas ilusórias,
Onde somente há dor e falsidade...
Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és símbolo tu? do eterno engano,
Que envolve o mundo e o coração humano
Em rede de mil malhas, misteriosa!
Símbolo, sim, da universal traição,
D'uma promessa sempre renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida e mãe da Ilusão...
Outros estendam para ti as mãos,
Suplicantes, com fé, com esperança...
Ponham outros seu bem, sua confiança
Nas promessas e a luz dos dias vãos...
Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
E que tortura ainda não provada
Hoje me ensinará esta alvorada?
E digo: Por que nasce mais um dia?
Antes tu nunca fosses, luz formosa!
Antes nunca existisses! e o Universo
Ficasse inerte e eternamente imerso
Do possível na névoa duvidosa!
O que trazes ao mundo em cada aurora?
O sentimento só, só a consciência,
D'uma eterna, incurável impotência,
Do insaciável desejo, que o devora!
De que são feitos os mais belos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? de ilusões, de dores,
De misérias, de mágoas, de agonias!
O sol, inexorável semeador,
Sem jamais se cansar, percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes inúmeras da dor!
Oh! como cresce, sob a luz ardente,
A seara maldita! como treme
Sob os ventos da vida e como geme
Num sussurro monótono e plangente!
E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
Em ondas de cruel fecundidade,
Com a força e a sutil tenacidade
Invencível das plantas venenosas!
De podridões antigas se alimenta,
Da antiga podridão do chão fatal...
Uma fragrância mórbida, mortal
Lhe reçuma da seiva peçonhenta...
E é esse aroma lânguido e profundo,
Feito de seduções vagas, magnéticas,
De ardor carnal e de atrações poéticas,
É esse aroma que envenena o mundo!
Como um clarim soando pelos montes,
A aurora acorda, plácida e inflexível,
As misérias da terra: e a hoste horrível,
Enchendo de clamor e horizontes.
Torva, cega, colérica, faminta,
Surge mais uma vez e arma-se à pressa
Para o bruto combate, que não cessa,
Onde é vencida sempre e nunca extinta!
Quantos erguem nesta hora, com esforço,
Para a luz matinal as armas novas,
Pedindo a luta e as formidáveis provas,
Alegres e cruéis e sem remorso,
Que esta tarde há de ver, no duro chão
Caídos e sangrentos, vomitando
Contra o céu, com o sangue miserando,
Uma extrema e importante imprecação!
Quantos também, de pé, mas esquecidos,
Há de a noite encontrar, sós e encostados
A algum marco, chorando aniquilados
As lágrimas caladas dos vencidos!
E por quê? para quê? para que os chamas,
Serena luz, ó luz inexorável,
Á vida incerta e à luta inexpiável,
Com as falsas visões, com que os inflamas?
Para serem o brinco d'um só dia
Na mão indiferente do Destino...
Clarão de fogo-fátuo repentino,
Cruzando entre o nascer e a agonia...
Para serem, no páramo enfadonho,
Á luz de astros malignos e enganosos,
Como um bando de espectros lastimosos,
Como sombras correndo atrás d'um sonho...
Oh! não! luz gloriosa e triunfante!
Sacode embora o encanto e as seduções,
Sobre mim, do teu manto de ilusões:
A meus olhos, és triste e vacilante...
A meus olhos, és baça e lutuosa
E amarga ao coração, ó luz do dia,
Como tocha esquecida que alumia
Vagamente uma cripta monstruosa...
Surges em vão, e em vão, por toda a parte,
Me envolves, me penetras, com amor...
Causas-me espanto a mim, causas-me horror,
E não te posso amar — não quero amar-te!
Símbolo da Mentira universal,
Da aparência das coisas fugitivas,
Que esconde, nas moventes perspectivas,
Sob o eterno sorriso o eterno Mal,
Símbolo da Ilusão, que do infinito
Fez surgir o Universo, já marcado
Para a dor, para o mal, para o pecado,
Símbolo da existência, sê maldito!
★★★
Alegoria da manhã
RONALD DE CARVALHO
"Poemas e
Sonetos" (1919)
Terra cheia de
luz, para o teu esplendor
Ergo as mãos, num
tremor de desejo e de glória!
E na paz de um
jardim misterioso e pagão,
Onde passeia o sol
como um velho pintor,
Numa ingênua
canção dou-te a minha memória,
E num beijo
aromal, dou-te o meu coração.
Coroada de
jasmins, de pâmpanos e rosas,
Coberta de trigais
maduros, sobre os rios
A tua imagem real
veste-se de cristais;
E em teus braços,
que são as estradas gloriosas,
Cantam fontes
rolando entre juncos esguios,
Estremecem bambus
e verdes laranjais.
Entre as latadas
de uva, e as framboesas vermelhas,
Há brilhos de
rubis, e reflexos de prata;
E no trêmulo véu
veludoso das parras
Um bando
transparente e sonoro de abelhas,
Como um fio de
mel, ondula e se desata
Sobre a folhagem
de ouro, os cravos e as cigarras.
Range no poço
antigo a polilha da corda,
Sobre os tanques
de opala as arvores recurvas
Boiam, no espelho
azul da água fresca e parada.
Cortam pássaros o
ar; pelas granjas, acorda
O moinho que
volteia as grandes asas curvas,
E em cada face, o
olhar que esvoaça, é uma bailada.
Terra cheia de
luz, nos pomares o outono
Incendeia e
arredonda a vinha hospitaleiro,
As ânforas que vão
no ombro das raparigas
Têm perfumes que
dão volúpia e que dão sono;
Nas bilhas,
espumando, o leite morno cheira,
E a campina é um
clarão de papoulas e espigas.
Na dourada manhã,
sobre a paz infinita
Das colinas azuis,
e dos jardins pagãos,
Para o teu
esplendor, terra nobre e bendita,
Ao sol que se
levanta, ergo-te as minhas mãos!
★★★
Passeio
matinal
LUÍS
DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
“Rosas Negras” (1938)
Como
és formosa em frente da alvorada
Trepando
as altas serras pedregosas:
Tu
tens a idade dela, e estás coroada,
Como
ela está, de lírios e de rosas.
Um
pajem pronto; a égua aparelhada;
Vais
ser a luz das veigas deleitosas:
Montas
no meio de uma revoada
De
sons de agrestes frautas ramalhosas.
Um
fio de água esfuma-se distante,
Cinde
a montanha: o céu vidrado cheira,
Céu
que a Boêmia poliu em rocha iriante.
Por
ver-te, parte em grita a cachoeira,
E
da floresta espiam-te o semblante
Titãs
em grupo, faunos da carreira...
★★★
Oração da manhã
(À filha do meu amigo Magalhães Coutinho)
BULHÃO PATO
BULHÃO PATO
"Versos" (1862)
Vem reflorindo a aurora;
A voz do rouxinol,
Mais inspirada agora,
Saúda a luz do sol.
A perfumada aragem
Beija no campo a flor;
Tudo sorri à imagem,
Do nosso criador.
No bosque as avezinhas
Soltam os hinos seus;
No berço as criancinhas
Rezam também a Deus.
Por minha mãe, por ela,
E por meu pai, Senhor!
Dai-lhes propícia estrela,
Glória, ventura, amor!
Cercai de mil delícias,
A sua vida enfim,
Como eles de carícias
Me tem cercado a mim.
As preces da inocência
No céu ouvidas são;
E a minha, oh Providência,
Parte do coração,
Parte ao florir da aurora,
Com a voz do rouxinol,
Que se desprende agora
Saudando a luz do sol!
Vem reflorindo a aurora;
A voz do rouxinol,
Mais inspirada agora,
Saúda a luz do sol.
A perfumada aragem
Beija no campo a flor;
Tudo sorri à imagem,
Do nosso criador.
No bosque as avezinhas
Soltam os hinos seus;
No berço as criancinhas
Rezam também a Deus.
Por minha mãe, por ela,
E por meu pai, Senhor!
Dai-lhes propícia estrela,
Glória, ventura, amor!
Cercai de mil delícias,
A sua vida enfim,
Como eles de carícias
Me tem cercado a mim.
As preces da inocência
No céu ouvidas são;
E a minha, oh Providência,
Parte do coração,
Parte ao florir da aurora,
Com a voz do rouxinol,
Que se desprende agora
Saudando a luz do sol!
★★★
Manhã d’estio
CRUZ E SOUZA
“Missal” (1893)
O azul hoje amanheceu numa melodiosa canção, duma consoladora carícia veludosa de arminho, duma doce e suavíssima frescura de maçã rosada – brunido, reluzente, como um raro bronze florentino finíssimo, vivamente cheirando a violetas, a jasmins e a rosas machucadas.
Na cristalina sonoridade do côncavo páramo aberto há uma etérea música
que passa em fios sutilíssimos de luz e de aroma pela sua transparência diamantina
e velada, como um líquido radioso e fragrante através duma primorosa safira.
E o canto de um pássaro, que além atravessa o céu é mais brando, é mais
tenro, então, mais harmonioso e sereno, prende, emociona e arrebata mais porque
vai cheio desta ambiente fluidez matinal, desta vaporosa e delicada tonalidade
aérea, deste fino sentimento amoroso de impoluto noivado dos elementos naturais
animados, destes, enfim, deliciosos tons alegres que dão um rico sabor à terra,
uma vibração luminosa aos aspectos e um mais meigo encanto imaculado aos frutos
que pendem das árvores e às flores que coloram, dulcificam tudo com a graça, a
inefável candidez de sorrisos.
Os arvoredos recortam nitidamente no ar as suas ramagens intensas, cujo
verde orvalho cintila, e as palmeiras, que mais de perto avisto, altas,
sobrepujando os outros arvoredos, como a afirmação soberana do poder
germinativo, aprumam-se, firmes, desdobrando no alto as suas verdejantes plumas
que tremeluzem nas arfantes aragens.
Na pradaria florida os gorjeios crescem, trinados festivamente cortam o
espaço, voos, rumores d’asas, claros e argentinos ruídos frescos de rios,
chiantes carros dormentes de lavouras tomando o vermelho e risonho atalho
murmuroso dos campos relvosos, entre a implorativa plangência mugidora dos
tardos bois melancólicos; movimentos agrícolas de enxadas, de sachos e arados,
todos os instrumentos e aparelhos rurais, cavando, mondando, preparando a terra
para as culturas, avigorando-a e adubando-a, dando-lhe a larga força nutriente
aos germes para que ela opere e produza, farte infinitamente a todos de
sazonadas colheitas.
E toda essa orquestração da Natureza e do trabalho, todas essas
impetuosas, palpitantes correntes da Vida, enchem o ar de alvoroço, de alarido,
duma religiosa bênção panteísta e de um cântico enlevador que desce
consolativamente sobre as coisas – como se toda a seiva, vegetal e humana,
estivesse na gestação poderosa, da fecunda elaboração de mundos virgens e
novos.
Nós, artistas, que dissipamos toda a nossa mais bela e opulenta porção
de glóbulos rubros para arrancar à Natureza a sua latente verdade; que nos
embevecemos na contemplação, no misticismo do céu; que de tudo ansiamos pelas
recônditas, encantadas origens; que tanta vez nos mergulhamos no azedume e na
inclemente maresia do tédio, achando a vida gasta, acabada, falazes e mentidos
os seus lantejoulados, fascinantes enlevos, trememos de comoção, ficamos
extasiados quando essas perspectivas se nos antolham assim d’esplendor,
trazendo ainda à nossa desvirilizada e já quase decadente estrutura moral um
pouco de alento, heroísmo e força, de sagrada virtude de pensamento e gloriosa
envergadura espiritual para a luta, hauridos a plenos sorvos nos abundantes
mananciais de luz, na soberba caudal imensa da Natureza fecunda e generosa.
Porque só a Natureza, germinalmente só ela, nos sabe dar à alma e ao
corpo esta nobre saúde, estas estoicas atitudes épicas; porque só ela nos
comunica os seus emotivos impressionismos, nos penetra os seus evangélicos,
pensativos silêncios e recolhimentos alpestres, tão empiricamente transvasados
no neblinoso luar dos Sonhos e tão relicariamente votados ao culto como os
santuários; só é dela que vem a crença robusta que nos põe no peito como que
afiadas lâminas de espada para destruirmos bizarros as mil venenosas cabeças da
formidável serpente da Dúvida; só ela nos veste dessa flamante irradiação de
aurora da qual emergimos vitoriosos, no fluido ouro resplandecente da aurora da
Vida; e só ela, enfim, nos lava do mal, nos purifica como a salitrosa salsugem
do mar glauco nas salutares e matinais travessias d’alacridade picante, quando
se volta das ondas numa eflorescência pagã de Tritão marinho, no luminoso
frescor primaveril e sonoro dum viçoso ramo silvestre ruflante de revoadas de
coleiros e gaturamos cantando.
Um clarim, uma trompa de caça que por aqui vibrasse, como numa pastoral
da idade média, nesta formosa manhã perfumada, apanharia, tomaria destes
murmúrios todos, pelo fenômeno acústico da recepção e transladação dos sons,
como em placas fonográficas, todos os profundos e vagos ecos e os levaria então
para longe – derramando-os, espalhando-os em cada placidez sedentária de sítio,
em cada remanso bonançoso de campo, fazendo renascer a brava cultura ingênita
das terras, palpitar o rijo pulmão d’aço do movimento incessante, pulsar,
latejar vinculativamente as artérias da fecundidade e circular em todo o sangue
oxigenado, ardoroso e produtivo que gera e fortalece tudo e que não é mais do
que o Sol eletricamente entranhado nas mais profundas raízes de tudo.
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