LUIZ DELFINO
“A angústia do infinito” (1936)
★★★
Quinze de Novembro de Oitenta e Nove
À AMÉRICA
O BRASIL NOVO
Livre enfim dos seus
últimos ferros,
Das cadeias mais vis
desatado,
Calmo, forte,
invencível, ao lado
Dos irmãos desta
América o vês:
Livre, em pé, ante o
mar menos livre,
Não lhe enturva a
vergonha o semblante
De ter ele — tão
grande e possante —
Um senhor, que o
avassala, em seus reis.
Levantado em seus
monte e serras,
Do áureo plinto de
folha e granito,
A águia branca, que
roça o infinito,
Vê subir, e ele
inveja não tem:
Rubra aurora, que o
cinge, e o encontrava
Hirta a fronte,
empanada de pejo,
Sente que hoje,
imprimindo-lhe um beijo,
Beijo a fronte de um
livre também.
Já não mancha esta
América vasta
O Brasil, vasto,
enorme colosso,
Aço rude de escravo
ao pescoço,
No olhar largo de um
deus a pesar:
O farrapo de treva
deixado
Pelo tempo já ido, em
seu dorso,
Num momento, num
último esforço,
Sacudiu em mil voltas
no ar.
Renascemos pra
América livre:
Viva a América livre
e sem peias:
Fundam todos as
velhas cadeias,
Peso ignóbil na nossa
cerviz:
Tudo à forja;
renove-se tudo,
Da cidade ao recesso
da mata,
Desde as cristas dos
Andes ao Prata:
Arda em luz toda nova
o País.
Liberdade, ó gentil
foragida,
Deusa austera entre
as deusas austeras,
Tu chegaste e contigo
outras eras,
Outros sóis, outros
céus mais azuis:
Há no ambiente uns
aromas mais novos,
Bater de asas à borda
dos ninhos...
Listrões de ouro
bordando os caminhos:
Luz, mais luz...
muita luz... muita luz...
Há rosais pelas bocas
sangrentas
De suas rosas
cantando perfumes...
Dança louca de
estrelas e numes,
Dança louca de
ondinas e sóis...
Canta, envolto nas
algas e espumas,
O ombro nu, verde, um
pouco de fora,
Mesmo o oceano, que
ri e que chora,
Chora e ri, junto à
praia, entre nós.
Astros de ouro,
estrelados abismos,
Reis e deuses, é
livre quem pensa,
E não tem outra fé,
outra crença,
Outro amor e
esperança não tem,
Que não seja esta
luta perene,
Contra vós fatalmente
levada:
Deus, és tu,
Liberdade, e mais nada:
Céu, és tu, ó
conquista do Bem.
Viva a América livre
entre os povos,
Livre e só entre os
mais continentes:
Honra e glória ao
imortal Tiradentes;
O patíbulo hoje é o
seu pedestal:
Honra e glória aos
soldados da pátria;
Honra e glória a este
povo sublime,
Que dos reis, que dos
vis se redime,
Calmo ainda na ebriez
triunfal.
Ó Romano, a virtude é
só nome?
Tu negando-a,
afirmaste a virtude:
Dás na ação e na doce
atitude,
Brasil livre, e
senhor dos teus reis,
Um exemplo inda novo,
e não visto:
Esta terra, esta
gente, esta raça
Arroubada a este
sopro, que passa,
Ser o espanto do
tempo vereis.
Esta grande conquista
foi nossa...
Nossa enfim: nenhum
rei no-la tira:
Nem o poeta a renega
na lira,
Nem a história há de,
infame, a negar:
Fomos nós, que esta
pátria avivamos:
Fomos nós, que a
fizemos de novo:
Glória! Glória à
conquista do povo,
Que rompeu a prisão
secular.
Maldição sobre as
frontes vergadas,
Sobre as mãos
estendidas, buscando
Vida, sangue em
cadáveres, quando
Tudo é grande — olha
em torno e verás:
Tudo é grande, e
cascalham risadas,
Que andam rindo já
dentro da história,
Recolhendo este dia
de glória,
Obra nossa, e de
avós, e de pais...
Rei? Não mais: não
queremos; não vinga
Entre nós essa raça
maldita,
Que só crê, pensa, e
sonha, e medita
Ter no povo, que a
sofre, uma grei;
Planta exótica e má
de outras zonas,
De outro céus; de
outro sóis, de outra esfera...
Quem de um rei senão
ferros espera?
Bastou já: não
queremos mais rei.
Que é um rei? — É um
ídolo apenas
Que a ambição e a
ignorância levanta,
A que o bravo não
dobra uma planta,
Baixo culto dos
tímidos só:
Vulto erguido no meio
dos povos,
Como a sirte nos
mares deitada,
Onde a vaga, que a
toca, esmagada,
Não é mais vaga, é
uma nuvem de pó.
Sabeis vós, pobres
povos incautos?
Antes que um grande
povo apareça,
E o homem possa
erguer alto a cabeça,
Possa ver do alto
auroras e sóis,
Quanto ferro batido
no ferro,
Quanto sangue
inocente esgotou-se;
Como flores caídas à
fouce,
Quantas frontes
caíram de heróis!
Não queremos mais
rei; o mais sábio,
O mais justo, o mais
forte, o mais casto:
Salomão com juízo tão
vasto,
Com leis novas um
novo Moisés:
Mesmo Deus, que outra
vez se lembrasse
De ser rei, e entre
estrelas surgisse,
Belo, grande, amor
todo e meiguice,
Não golpeadas as
mãos, nem os pés.
Não — Ninguém tente a
empresa arriscada
De irritar o leão
generoso;
Ninguém tome o seu
calmo repouso,
Como falta de
audácia: olhai bem:
Pôr-lhe um rei hoje
ao alcance das garras!...
Dize ao raio,
buscando-te: — espera:
Passa ileso através
da cratera:
Mas não tente esse
crime ninguém!
Norte e sul num
amplexo eviterno,
Num delírio de crença
e igualdade,
Jurem todos por ti,
Liberdade,
Jurem todos viver ou
morrer:
E se um dia, no campo
da luta
Alguém ouse atacá-lo,
cobarde!
Saiba o culto que na
alma nos arde,
Sinta como é cumprido
um dever.
Brasileiros,
guardemos unidos
O torrão desta pátria
querida:
Demos tudo que é seu,
alma e vida;
Tudo à pátria é
preciso entregar:
Tudo é dela: a ela
tudo devemos:
Esta pátria hoje é
nossa de todo;
Arrancou-se este
escrínio de lodo,
Arrancou-se esta
pérola ao mar.
Velhos reis
medievais, velhas raças,
Entre anseio, entre
susto, entre pasmo,
O Brasil, com seu
calmo entusiasmo,
Grande assim, não
podíeis supor:
Vistes, forte,
explosir de improviso,
Quem vós críeis tão
baixo e tão nulo!...
Assim rompe de negro
casulo
Flor aérea de
esplêndida cor.
Assim rompe uma
estrela a Colombo,
Outros sóis se
constelam no espaço,
E dentre algas,
corais, e sargaço,
Outro mundo aparece a
Cabral;
Assim surge essa nova
bandeira
De repente por terras
e mares...
Dize aos povos, por
onde passares,
Que és de um povo já
livre o fanal.
Levas tu uma nesga
vermelha,
Que recorde o ser
livre o que custa?
Muito sangue, que a
raça robusta
Deu à terra, e que à
terra há de dar:
Preito ao sangue de
heróis deslembrados,
Nos calvários das
forcas trepando:
É assim, pavilhão
venerando,
Que ir tu deves por
terra e por mar.
És a paz, ó bandeira
da pátria?
És a paz: — mas a paz
aconselha
Que o clarão dessa
aurora vermelha
Deve em todos os céus
resplender:
Mostras nele a
lembrança do sangue,
Que, se agora não foi
derramado,
Rios dele há no tempo
custado,
E inda há sangue,
inda há sangue a perder!...
Que cadeias nos
cercam, que fios
Invisíveis, como hera
selvagem,
Que entre fendas
buscando passagem
Muros prende, que em
torno abrangeu:
Que heras doidas
envolvem nossa alma!
Somos livres, mas
fomos escravos;
E inda temos as
pontas dos cravos
Que pregaram em cruz
Prometeu.
E inda resta essa
velha atitude
Da alma humana
esmagada e vencida:
Triste, sim!
Liberdade querida,
Largo tempo esse
gesto hás de ver:
Bate a malho Canova o
carrara,
Becerril bate a prata
a martelo;
Cada golpe é o vagido
do belo;
Na alma humana é
preciso bater.
E a alma humana
desperta, e festeja
Seu primeiro triunfo:
ela sente
Ser levada por nova
torrente,
Haustos sorve de vida
auroral:
Tem a terra ante si
dilatada,
Tem o céu brasileiro
o mais puro...
Como é grande o seu
grande futuro,
Liberdade, ao teu
grande ideal!...
Furacões de jasmins e
açucenas,
Céus, que arranco dos
céus nos pedaços,
Sóis inquietos, que
prendo em meus braços,
Ígneas rosas, cecéns
da manhã,
Veigas de ouro em
retalhos trazendo
Rios de ouro em dois
dedos de mata...
O meu hino isto tudo
desata
A teus pés, pátria
minha louçã.
Sim! é livre o
Brasil!... E ainda ontem,
Libertado do escravo,
se ouvia
Louco brado de louca
alegria
Soar no mundo: — essa
nódoa era vil,
Larga, extensa,
profunda, horrorosa!...
A dos reis, mais
hedionda, restava!
Bravo à terra não
deles escrava!...
Bravo! Bravo!... Está
livre o Brasil.
Tiradentes: O grande mártir
Tiradentes, figura
auroral, grande, eterna
Iluminando toda a
Ilíada moderna,
Pousada ao limiar do
século ficou:
Bem como águia, que
cimo e cimo sobe o monte,
E das asas, que espalha,
enche todo o horizonte,
Do patíbulo toda a
história iluminou.
Cada degrau foi um
cimo, que ele transpondo,
O atirou pelo céu
amplíssimo e redondo:
Levantaram-no tanto,
a pô-lo junto aos sóis,
O cadafalso foi-lhe a
pirâmide imensa,
Que quanto mais se
observa, e quanto mais se pensa,
Só lhe podiam dar os
velhos faraós...
Os reis só podem ter
a ideia onipotente
De Balbecs erguer
pelo deserto ardente,
De impérios circular
de muros perenais,
De palácios meter
dentro de uma montanha,
Ou de arrancar-lhe a
rocha à palpitante entranha,
E esburacar o céu à
cruz das catedrais:
Porque eles sabem
como um povo se encadeia,
E podem realizar
qualquer monstruosa ideia,
Debaixo dos seus pés
um mundo inteiro pôr,
Servindo, sem
desdéns, o seu faustoso orgulho,
Os astros fazem pelo
espaço mais barulho
Do que faz todo um
povo escravo e sem pudor.
Arrastar todo um povo
ao mesmo iníquo trilho,
Prender ao mesmo jugo
o pai ao pé do filho,
E a alma espremer de
um reino em cima dos Kremlins,
Um rei podia ter
desses projetos grandes:
Transformar numa
estátua enormíssima os Andes,
Soltar Babéis no ar,
rir dos sóis nos festins.
Na louca embriaguez
do seu poder insano
As ondas castigar,
vergastear o oceano,
Dar leis ao furacão,
castrar o temporal;
Atear incêndio em
Roma, e dele ao reverbero
Cantar à lira ebúrnea
uma estrofe de Homero,
Vendo o povo fundir,
como ao fogo o metal...
Foi, pois, um rei
também que ergueu o monumento,
Que pôs de pé e dele
em cima um só momento
O Encélado revolto,
em castigo exemplar:
Levantou essa enorme
obra de ódio e vingança,
Que pelo tempo
adiante estendeu, e que avança
Como uma cordilheira
armada num altar.
Nisso o triângulo vil
tornou-se, ó patriota,
Ó raça de Titão, que
esconde oculta grota,
E aparece de chofre
indômito e de pé,
E tudo muda em torno
inopinadamente,
E que entre si o
vendo, o povo de repente
Pergunta, quer saber:
— donde veio? quem é?
Tu vieste da dor
indômita da vida:
Foi tua mãe primeira
a lágrima dorida,
Que te queimou a tez
ao triste som de um ai:
Um dia os laços vis
da escravidão rompendo,
Sublime, como um
deus, colérico, tremendo!...
Teu pulso livre foi o
teu primeiro pai...
Tu vieste da dor
humana revoltada...
Vens da sombra da
história, ó alma sublimada:
Vens do fundo do
tempo e do primeiro horror:
Vens de tudo que faz
sofrer, esmaga e oprime:
Vomitou-te a justiça
irada contra o crime.
Contra todo poder,
contra todo senhor...
Contra Deus, contra o
céu, contra o que te rodeia!
É tua alma a revolta;
a tua alma está cheia
De reserva e furor; e
um ódio te ficou
Desta longa miséria à
vida humana atada:
Mesmo atrás de uma
flor esconde-se a emboscada:
Natureza, quem és?
Ai! eu mesmo quem sou?
Tu vieste de um
triste acorrentado ao mundo,
Que caiu sob o céu
inclemente e profundo,
Que sentiu a opressão
primeira, e que gemeu:
Foi contra o céu
portanto a primeira investida:
Foi contra a própria
dor, foi contra a própria vida,
Titão grande e
infeliz, raça de Prometeu.
Alas: abre-te,
história; alas: dai-lhe passagem:
Fê-lo herói, fê-lo
grande a indômita coragem:
Fez-lhe mais alto a
forca a fronte levantar;
E a fronte levantou
para encontrar um cimo:
— Sou um Cristo,
pensou, — morro, porém redimo:
Meu sangue há de
também um povo resgatar. —
Também a inundação da
nova ideia veio
Pôr um fogo divino e
grande em vosso seio,
Cabe o que é grande
em nosso inda maior país:
Seu coração agita um
nobre entusiasmo:
Em pouco tempo o
mundo há de ouvir dele pasmo
Que livre soube ser,
e sabe ser feliz.
Subindo a forca, não
amaldiçoava a gente,
Que boa pode ser, sem
poder ser clemente;
Ninguém ataca em vão
as velhas tradições:
Há códigos que só
pode rasgar um povo;
Tudo é crime e
castigo onde houver fato novo:
E é a glória
afrontá-lo à voz das maldições.
Lei igual e fé livre
eis o progresso todo:
Mas era um criminoso,
era um perverso, um doido;
Meter numa revolta
assim toda a nação:
A Liberdade só
continha em si tudo isto;
Tiradentes na forca,
era à cruz Jesus Cristo:
Era o novo porvir,
era a revolução.
Eterniza os heróis e
os modela a virtude.
Ele guardou na vida e
na morte a atitude
Do arcanjo, que inda
aos pés pisa o dragão do mal:
Têmpera firme, como o
bronze estatuário,
Igual no tempo bom,
igual no tempo vário,
Deu aos homens um
tipo ingênuo e colossal:
O Brasil, essa terra
em que nasceu, a terra
Que tudo quanto é
rico, e bom, e grande encerra,
A terra que não tem
noutras terras rival...
Deixá-la em breve?
como a entranha o lanceava!...
Sim! morria por ver
livre a formosa escrava...
E como é bom morrer
por um grande ideal!
O não morrer seria
amaldiçoar a sorte
Que faz sair um Deus
vivo da própria morte;
É ventura encontrá-la
em seu caminho e ter
Ocasião de dar por
uma ideia a vida:
A morte afirma a
ideia, afirma e a consolida...
Por um grande ideal
oh! como é bom morrer!...
Aprendamos com ele o
ódio à tirania:
No sangue, que
correu, quando o algoz o feria,
Pôs a história o
buril vibrante de emoção,
E cinzelou, chorando,
o lirial poema:
Juremos em punhais
fundir a sua algema
Contra quem outra vez
nos force à escravidão.
Em tela, em ouro, em
ferro, em mármore, em granito
Mostrá-lo é, pois,
dever, o olhar nos astros fito,
A cabeleira ao vento,
adivinhada a voz:
Solta em aro de sóis,
fulgindo-lhe ao pescoço,
A corda infame, e aos
pés a forca, onde o colosso
Subiu herói e deus
transformou-se entre nós.
Serás, ó Liberdade, a
revolta perene:
Armada sempre em
guerra, ereta, enfim solene,
Não podes descansar,
nem poderás dormir:
O dormir é deixar em
paz o pensamento,
Ficar o oceano sem a
agitação do vento,
Sem nova ideia e sem
alma nova o provir!...
★★★
O Grande Mártir
Não foi só a intuição
clara da liberdade
O que foi grande
nele; o que à posteridade
Em turbilhão de luz o
arrebatou; — não foi:
O que aureola sua
existência, o que imprime
Esse nimbo divino em
seu busto sublime,
Aos vulgares heróis
dar a história não sói.
Oh! não! não é de um
deus qualquer sua estatura,
Tem um outro estalão,
pois que tem outra altura:
Os Hesíodos dão-lhe,
em céu novo, um lugar;
Só acendeu seu sangue
uma ideia alta e vasta,
Mas o pouco que coube
em seu destino basta
Para a glória de um
povo e as glórias de um altar.
Bastara para dar uma
eterna memória
A cem heróis e encher
muitas nações de glórias;
Há Panteão que ainda
heróis não recebeu;
Para a Ilíada dera um
canto único a Homero,
Moisés a um
Buonarroti em mármore severo,
Pois da forca — um
Horeb — ele a lei nova deu.
Guardar pura a
grandeza intemerata de alma,
Seu triunfo foi esse,
essa foi sua palma.
Aspiração, trabalho,
obra, fim, ideal:
A virtude, que faz
dos homens deuses, talha
O soco, que os eleva,
e estreleja a mortalha,
Que o tempo lança
sobre uma ação imortal.
Quando, um dia,
vencido o olhar passou em torno,
Não viu mais chefes:
tudo era um silêncio morno,
E, na infame mudez,
ninguém estava de pé:
Faltou-lhes fé, que a
dor trai, prende, ilude, engana:
E ele a teve: ele
criou na liberdade humana,
Guardou, como a
Vestal no altar pagão, a fé.
Ele apenas soldado,
apenas companheiro,
Ele, o último, a fé o
fez grande e primeiro:
Nele o caráter foi
força, heroísmo, ação:
E pensava, subindo a
forca: — um povo exalto:
E essa augusta
bandeira há de ondular mais alto
Do que a forca: —
Ei-la! ondula... O herói teve razão.
***
Caiu o pavilhão no
lodo da devassa:
Venceram-no: assim
vence o sol nuvem que passa.
A nuvem passa, e fica
a grande flor de luz:
Não há nuvem por mais
sanguinolenta e grossa,
Que ofuscar o clarão
da liberdade possa:
Com Judas ela está;
ela está com Jesus.
Ela é toda a
existência e a humanidade toda:
Nero a amou; Otão
deu-lhe uma alma ebriosa e doida:
Como o deles, ó
deusa, é nosso amor igual:
A diferença é que
Nero e Otão na mente insana,
Pensavam nela ter uma
mulher romana,
Ela!... da
consciência a alma universal!...
Como um bom
pensamento é alegre e aligeira:
Um óleo santo e puro
em seus cabelos cheira;
Abrem-lhe asas no
céu, como um cisne no mar:
Quando alguém pensa
ter-te, ó alma, ó mãe, voaste:
O que ele agora
aperta é uma inútil haste:
A bandeira, que és
tu, canta e assobia ao ar.
***
Monstruosa loucura,
oh! cegueira! oh! demência!
Cada ser, pobre
algoz, não tem uma existência,
Como a tua, de amor e
cóleras capaz?
Anda o olhar da
revolta em cada coisa, em tudo!
Roubas a alma de um
povo, e o povo há de ser mudo!...
Lanças o vento ao
oceano, e o oceano há de ter paz?!...
Não ouves tu, não
vês, que assim que o mar acorde,
Ira-se, e ulula, e
ronca, e espuma, e salta, e morde,
E ao seio amplo de
fera aspa o teu corpo nu?
E que o povo também,
pegão que redemoinha,
Quando quer fazer seu
o que por seu já tinha,
Ruge feroz e então
mais feroz do que tu?
***
Este povo inocente,
esta criança obscura,
Que ódio a tudo que
sobe a um acre horror mistura,
Um eterno Caim ante
um eterno Abel,
Tem a noite em sua
alma, a dor em sua entranha,
Sabe que toda sombra
é de toda montanha,
E diz que busca o
templo e só acha o bordel.
Tem a revolta, como o
mar o movimento,
Basta a uma a
centelha, ao outro basta o vento;
Havendo em ambos
ódio, há em ambos furor:
Basta, para embalar o
mar, a tênue brisa;
Mas o povo é da luz
da instrução que precisa:
Tem na ciência a paz,
tem na abundância o amor.
Pobre, a tua miséria
é do rico a miséria:
Para todos a vida é
questão triste e séria;
Tudo acaba e
desfaz-se, o raio, como a flor;
O palácio de Creso, a
mesa de Luculo;
Glória, ambição,
poder, domínio... é tudo nulo
Ante a sede, ante a fome, ante a cloaca, ante a
dor.
Sim! dor, fraqueza,
engano, ilusão, erro, luto...
É por isso que sofro?
É por isso que luto?
Pobre verme, que
inchou a crença alvar que é deus!
Pesando o céu e leis
à eternidade impondo,
Querem atar ao dedo
este universo hediondo,
Sobem, vermes, ao
céu, ao chão vêm, Prometeus!...
A indigência, a
cegueira... o eterno Édipo cego,
O naufrágio na terra,
o naufrágio no pego,
E um desdém, com que
a entranha enche de ar a ambição...
Mas... é isso que faz
a raça humana grande;
Tem asas a loucura,
asas vastas, que expande
À busca de ideais,
que talvez busca em vão!...
***
Diz consigo o tirano:
— Eu abro o calabouço:
Eu a voz da verdade e
a voz do amor não ouço;
Prendo à fronte a
calúnia, onde um nimbo há de abrir:
Eu arvoro a mentira
em bandeira de guerra,
Faço o sangue correr,
embebo dele a terra;
Mesmo em leivas de
sangue há rosais a florir.
Que espero da
hecatombe, e da viuvez que espero?
Há de tudo esbarrar
em meu silêncio austero:
Amo aquilo por que
vós tendes tanto horror:
Chamo inércia ao que
vós chamais assassinato:
À força de ser forte,
o meu poder resgato:
Obra de arte, eis-me
aqui: o povo é meu autor.
É o povo que inventa
a idolatria, e chama
Ao fetiche seu Deus;
e o vitória, e o aclama,
E o serve, escravo e
vil, sem nenhuma altivez:
Falais de mim? Falai
só do gênero humano,
Que se escraviza a um
sonho e arranca-lhe um tirano,
Quando inda a
cobardia um tirano não fez? —
***
O tigre de Ceilão,
negro, ousado levanta
A cabeça orgulhosa em
torno: o vento canta:
Do mar lhe vem
tinindo um cheiro quente, o olor
De homens, que,
trauteando uma usual barcarola,
Fazem dançar a fusta
à flor da água, que a rola,
Num balanço de
almeia, à praia aberta em flor:
O tigre espera a
malta adrede armada, insciente,
E eriçado: — ele tem
a força, a garra, o dente,
Prudência, agilidade,
audácia, e assim não sai
Da atitude, em que o
tem o instinto, e a argúcia rara:
Contra o ataque, que
chega, ele o salto prepara...
Mas o fogo rompeu...
ele rui, ele cai.
Não rugiu, não lutou:
ele esperava a luta;
Venceu, quando deixou
por vez primeira a gruta:
Onças, águias, leões,
panteras combateu:
A luta corpo a corpo,
a luta dente a dente,
A luta leal do forte,
essa esperou somente!...
Não lutou, e caiu: —
não lutou, e morreu!...
Devia assim tombar o
nosso herói!... Um dia
Sem luta e sem
combate era vencido: e via
Um clarão levantar-se
ao longe no porvir,
E vir-lhe até a
fronte, e, auréola divina,
Rodeá-la, cingi-la,
enquanto ele se inclina
No patíbulo augusto,
e é próxima a cair...
***
Foi contra a tirania,
ó Mártir, teu martírio:
Do teu sangue emergiu
a brancura de um lírio;
É em ti que na hora
angustiosa, nós
Vimos pedir conselho,
ensino, ânimo, exemplo;
A ti, que tens nossa
alma em festa, como um templo,
Nós, que ouvimos da
Pátria a queixa em tua voz.
Jamais soube enfeixar
vesga mediocridade
A um grande
pensamento uma grande vontade,
À força de um
princípio a força da razão:
Falta-lhe tudo,
agulha, e mar, e vento, e porto:
Povo, que um
timoneiro assim conduz, está morto,
E anda de um vagalhão
em outro vagalhão.
Tirano, paz. — Por
que não ouvir a harmonia
Da harpa interna, que
canta em nós? Paz vos daria:
O canto de Davi dava
paz a Saul:
É da justiça, e paz,
e luz que nasceu a auréola:
Por que não procurais
dar-nos paz — essa pérola —
Por que não meteis na
alma a bondade — esse azul?...
***
Não se iluda ninguém
que encarcera uma ideia:
Não tem a consciência
ou clausura ou cadeia:
Não para o raio à voz
de qualquer aguazil:
Sangue, batalha,
forca, exílio... o que quiseres...
Basta, para
vencer-te, o grito das mulheres;
Basta, para
esmagar-te a lágrima infantil.
Cansa ver, ruma e
ruma, os corpos mortos: cansa
A voz rouca do
ancião, e o choro da criança:
Para espalhar o mal,
sem temê-lo, quem sois?
A asinha desta mosca,
o ferrão deste inseto
Não vos deixa um
instante, e andais irado, e inquieto...
E irritais todo um
povo e adormeceis depois?
Dormir!... dormir!...
Que nome a tirania entrega
Ao mundo, à história,
ao tempo! A humanidade o nega,
Confessa o crime, e o
acusa; a inocência o maldiz!
Ah! se existe na
terra o infeliz, que presumo,
Destino, enche-o de
luz, razão, muda-lhe o rumo...
Que não há infeliz
maior que este infeliz.
Não: de todo não
perde o sentimento nobre
De ser grande: não há
povo nenhum, que dobre,
Cobarde — infamemente
a um seide a cerviz:
Jamais o pensamento
humano prisioneiro
Procurando sair,
disse ao seu carcereiro:
Olha: a porta aqui está
na lâmina de um cris.
E sai de qualquer
modo inopinadamente,
Como o raio ao cair,
como ao encher a torrente,
Terrível, ameaçador,
implacável, fatal...
Sai. — Vem da lei que
rege o espírito e a matéria:
É a boca da fome a
cuspir a miséria,
É a ferida enfim, que
vomita o punhal.
***
Austera Liberdade,
amor, paixão, respeito,
Ó companheira
ilustre, eu dei-te à mesa, ao leito,
Nos turbilhões, a
sós, sempre amante teu fui;
Jamais eu lamentei
por ti uma loucura:
És a virgem madona,
és a madona pura,
Que afla o meu
coração, e em meu ser todo influi.
A este amor
corresponde o ódio à tirania,
Ódio que cria heróis,
ódio que deuses cria,
Ódio que na medalha é
o anverso do amor:
E este ódio é deixa
antiga à força bruta e cega:
Este ódio o tempo
aumenta, engrossa, e ao tempo entrega:
É o ódio do oprimido
ao ódio do opressor.
***
Ó minha Pátria, ó
terra, ó resplendente Hebe,
De joelhos meus ais e
lágrimas recebe:
Não és a morta, que
cobre um branco lençol:
O teu último dia, ó
mãe, ó mãe, não veio;
Há um rasto de sangue
a jorrar do teu seio:
Mancha o teu
horizonte ensanguentado sol...
Mas o tempo virá, e a
hora vitoriosa...
O mar, verde
esmeralda, o sol, vermelha rosa,
Calçando esse os teus
pés, o outro à fronte a luzir,
Hás de ser a matrona
americana e bela,
Dando sob o teu céu,
— estrelejada umbela —
Arras à Liberdade,
amplo asilo ao porvir.
***
Mártir de um grande
ideal, tens no mundo o teu plinto.
Ante o conspecto teu
eu não sei o que sinto
De augusto, e santo,
e nobre, e de altivez, em mim!
Não!... Se tu foste,
e eu sei que tu foste, acabou-se
O reinado do crime:
um reinado mais doce
Nunca mais entre nós
há de agora ter fim.
Seu puro e meigo
olhar, quando à forca subia,
Era o perdão, que
olhava, a bênção, que saía;
Misturava a carícia
ao queixume esse olhar:
Oh! esse olhar
piedoso e negro de tristeza
Do céu tinha a
amplidão, do mar a profundeza,
E inda os lumes do
céu, e inda os saibos do mar.
Nas horas de miséria,
em que esgoto a vergonha
Do que vai nelas, dá
que em ti meus olhos ponha,
Para ver o caminho, e
nele o sol e a luz:
Vai adiante de mim,
sombra heroica e sublime,
Se amar a Liberdade
hoje ainda for crime,
E se o crime de
amá-la ainda à infâmia conduz.
★★★
Hino
(Ao Protomártir Tiradentes)
Ele o Brasil
entrevendo
Escravo, inerte, ao
abandono,
Arroja um brado
tremendo:
— Não tem senhor, não
tem dono.
Tiradentes se
levanta,
Livre o Brasil há de
ser,
Liberdade! a causa é
santa:
Viver por ela, ou
morrer,
Esta pérola tão
linda,
Esta pérola sem par
Brilhava na c’roa
ainda
Dos senhores de além
mar.
Tiradentes se
levanta,
A sua entranha era de
ouro,
Seu corpo verde e
robusto:
Era o mais rico
tesouro
Ganho ao oceano sem
custo.
Tiradentes se
levanta,
A flor das terras
escrava!
E a Liberdade sorria
Em cada sol, que
raiava,
Nas visões de cada
dia.
Tiradentes se
levanta,
Como uma águia
prisioneira
Ele estava a
estranhos pés:
Da cadeia a voz
primeira
Tentou tirá-la aos
anéis.
Tiradentes se
levanta,
Foi Ele o único
embora,
Que o crime seu
confessara,
Crime, em que entra
uma aurora,
Que um lírio branco
acabara.
Tiradentes se
levanta,
Tinha em si da pátria
a imagem,
Tinha em si da pátria
o amor
Onde bebeu a coragem,
Donde lhe veio o
valor.
Tiradentes se
levanta,
Não recuou dos
tormentos,
Não negou, não foi
cobarde;
Foi sua bandeira aos
ventos,
— Liberdade, inda que
tarde.
Tiradentes se
levanta,
Tiranias... quis
vencê-las;
Ficou em luta Ele só:
Deitaram-no sobre
estrelas,
Crendo arremessá-lo
ao pó.
Tiradentes se
levanta,
Para amortalhar a
aurora
Não há na terra
lençol:
Deu luz, e nos dá
agora,
O que prometia — o
sol.
Tiradentes se
levanta,
Hoje o grande
visionário
Corda ao colo, às
mãos a palma,
Tem na história um
santuário,
Tem um sacrário em
nossa alma.
Tiradentes se
levanta,
Livre o Brasil há de
ser,
Liberdade: a causa é
santa:
Viver por ela, ou
morrer.
★★★
O Crime
Cobarde, não se
prende um povo livre,
Como se prendem
multidões de escravos;
Nem se transforma
exército de bravos
Em carcereiro vil de
uma nação:
Cada soldado que te
serve, infame,
Sabe que é cidadão e
brasileiro,
E que seu sangue
verterá primeiro
Contra quem deu ao
povo a escravidão.
Nenhum deles é teu: é
desta pátria,
Que ontem mesmo arrancamos
das cadeias:
Nenhum deles é teu:
traidor, não creias
Que o Brasil caia
imbele à tua voz:
Em cada coração pula
a revolta,
Gira um combate em
cada pensamento:
E o vento, que entra
em teu palácio, o vento
Leva um punhal de
cada um de nós.
Confiamos-te um dia a
Liberdade:
Nosso ideal, nossa
fé, nosso direito
Entregou-se à tua
honra: há maior preito?
Pensamos ter honesto
guarda em ti.
Tu juraste à
República, em seu berço,
Que a cobrias com tua
nobre espada:
Alma de lodo, que
traição danada:
Hoje bradaste ao
mundo enfim: — Menti!
Eras o infame déspota
escondido
Dentro da roupa
astral da Liberdade:
Ousaste nela pôr as
mãos: não há de
Ceder vencida a ti,
como um senhor:
Da América a alma
ainda está com ela:
Tem ela em cada
brasileiro um filho;
E antes dela perder a
força, e o brilho,
Hás de tu aos seus
pés cair, traidor!
Pensar no crime e não
recuar... Na vida
Quem esse dia te
escarrou aziago?
O teu olhar feroz,
inquieto e vago
Nos diz que era
melhor voltar atrás:
Mas é tarde: a
impoluta espada agora
Até aos copos te
rolou no lodo:
E sobre ela passasse
o oceano todo,
Pura, inda assim, não
a tornara mais.
César — anão, a
pátria te renega:
Ninguém mais
reconhece em ti seu guarda;
Quebra esse gládio,
despe-te da farda
Que há de vestir
qualquer soldado leal:
Tu mereces a roupa e
a marca em fogo
Dos ladrões que se
apanham pela estrada;
Tu não mereces mais
cingir a espada,
Que foi o nosso
orgulho e o teu fanal.
Nesse dia de opróbrio
e de vergonha,
Repetiram-se as
páginas da história:
Subiu mais uma vez à
tona a escória
Dos que só reconhecem
quem venceu.
Algema-se a nação?
Isso que importa?
Trai-te a pátria? é
só para engrandecê-la:
E sob o influxo de
maligna estrela,
Da baixeza e traição
fez-se o himeneu.
Seguiu-se a isso uma
mudez sem trégua:
E esse silêncio que a
cidade exala
Sobe ao teu lar,
caminha, enche-te a sala,
Vai-te a alcova sem
dó dizer: — traidor! —
Desse agitado sono,
que não dormes,
Esse silêncio
aumenta-lhe a amargura:
Esse silêncio é a
única armadura
De que arma a
Liberdade o nosso amor.
É a página em branco
esse silêncio:
É o cenário ainda sem
atores,
Onde o idílio traçado
ontem com flores,
Vai trocar-se por
drama de ódio e fel:
Esse drama vai ter
teu nome infame:
E atrás de ti e a um
lado, e de outro, e em frente,
Olha, a vingança aí
vem atroz, fremente,
Montada em
rapidíssimo corcel.
Que loucura
arrastou-te a tal fraqueza?
Não se trai sem
castigo um povo inerme:
Ele é o colosso e tu
agora o verme:
Desceste tanto,
quanto ele subiu.
Sitiou-te o Direito e
a Liberdade,
Mesmo no meio aí dos
teus soldados:
Nós não somos,
canalha, os sitiados:
Nunca o crime durou,
jamais venceu.
Quando o dia maior da
nossa história
Viu-te montado em
frente à nossa ideia,
Não era dele de que
estava cheia
A tua alma ignorante,
erma e banal:
Foste apenas um chefe
inconsciente,
Seguindo uma bandeira
desfraldada,
Que para ti não
respondia a nada,
Desconhecido o
esplêndido ideal.
Aventureiro entre os
heróis lançado,
Mediram-te eles pela
sua altura:
Deles o brilho
eleva-te a estatura,
Deles a alma
emprestou-te a luz: depois
Deram-te o nome, a
honra, a glória, os louros,
Os louros seus
triunfais: mas quem sabia,
Que eras só um truão?
Naquele dia,
Que eras tu um herói,
quem não supôs?
Vendeste a pátria? A
pátria não se; vende:
Trair a Liberdade?
Enfim que prova?
Ela sai sempre das
prisões mais nova:
Trai-te, quem a
trair: foi teu condão
Não poder esconder ao
tempo, aos homens,
À virtude, ao
heroísmo, à história, ao mundo
Tua alma: e
despertaste o horror profundo
Que acorda sempre em
todos a traição.
Mas, desgraçado,
sabes que há na história
Jaulas eternas, onde
ruge o crime?
Que é feroz Talião, e
esmaga e oprime
Quem oprimiu? Ignoras
tu talvez
Que há torturas, que
para sempre infligem
Os Tácitos no seu
austero estilo?
Compreendes tu aquele
inferno, aquilo
Que Dante abriu, criou
e eterno fez?
Não percorreste os
círculos, aonde
Brama a traição
desordenadamente?
Alma imbecil, tua
alma enfim não sente
Num carro negro o
anátema que vem?
Como acode à minha
alma um dó profundo,
Quando te vejo na
cloaca urrando...
Ó infeliz, ó triste,
ó miserando,
Quem te pode salvar?
Que horror!... Ninguém.
Amanhã luzirá sobre o
horizonte
O sol sem nuvem de
uma paz florida,
E a Liberdade, em
fundo azul, vestida
Como uma noiva
esplêndida e feliz.
Amanhã as canções do
espaço infindo
Hão de encher de alegria
e luz os prados:
E os janizaros vis,
os teus soldados
Hão de ser amanhã o
teu juiz.
Hão de encher de
baldões o teu jazigo,
E do teu nome
guardará memória,
Num canto escuro,
lamentando a história,
Como de um vil, que o
orgulho cega: e após
Te lançaremos podre
ao esterquilínio,
Ideal sinistro do
traidor cobarde:
Esta nação te
conheceu bem tarde:
Mas inda é tempo: —
arreda-te de nós.
Separar, dividir um
grande povo,
Como um faisão, que à
mesa se retalha:
Fazer um largo campo
de batalha
Do campo, onde sorria
a messe e a paz...
Na água tranquila e
azul dos nossos mares
Sangue mesclar numa
caudal corrente;
Lançar no lar a
guerra de repente...
Que crime... E foi
teu crime esse ato audaz.
Cobriu de pejo o
rosto a Liberdade:
A traição enfiou-se
de vergonha,
Porque ela mesmo,
ela, a traição medonha,
Sentiu-se menos forte
e infame e vil.
Deste a beber, em
taça de ouro à Pátria,
Em vez de néctar, um
letal veneno;
E a espada, que se
creu às mãos de Breno,
Caiu nas mãos de um
malabar senil.
Houve quem o aplaudisse
então: não houve
Quem aplaudisse
outrora Heliogabalo,
E a orgia infrene?
Houve quem foi coroá-lo...
Em todo o tempo houve
a ambição vulgar:
Esses estão aqui,
ali, fervilham;
Vós, se inda tendes
ou pudor ou medo,
Forrai a cara; é
tempo, inda há lajedo
Com que podeis
cobri-la à luz — e andar.
Oh! que vergonha de
ser homem, quando
O torvelim das almas
de repente
Melancolicamente,
estranhamente
Verga ao vento que
passa, e verga e cai;
Quando um soldado,
doido da vertigem
De um poder que
jamais sonhara, pensa
Ter nas mãos
enfeixada a rédea imensa,
Que embrida um povo e
o embrida sem um ai...
Oh! que dor de ser
homem! Ver um homem,
Que rouba, ilude,
mente, trai, falseia
A nossa imagem mesmo,
e a nossa ideia;
Que passa austero e
finge, como um clown,
Que arranca a
gargalhada, o triunfo, o aplauso
À turba a rir, que,
em torno à arena, assiste!...
Lúgubre é isto, como
o espasmo triste
Que abre a boca das
covas pelo chão...
Das entranhas dos
séculos arranca
Todas as queixas,
todos os gemidos:
A voz eterna, o grito
dos vencidos,
Da raça humana
escrava a dor fatal!
Tudo quanto há
custado a Liberdade!
E enquanto a casa e o
campo em lutas arde
Que achemos para ti
perdão, cobarde?
Deixar no ninho a
cobra, é natural?
Oh! não podemos
perdoar-lhe... Ele era
Quem tinha às mãos a
Liberdade nossa:
Ele a prendeu,
traidor: há pois quem possa
Lavá-lo desse crime
enorme? — Não.
Os brancos lírios
virginais do vale,
As estrelas, que ao
céu a noite lança,
A alma sem ódio e
pura da criança,
A luz, as flores
negam-lhe perdão.
Rios, que passam
refletindo montes,
Os penhascos nos
mares debruçados,
Ouvindo os hartos,
soluçosos brados
Das ondas sobre fulva
areia em mó,
Sentem por ti o
escárnio dos que sabem
Que têm por si a
eternidade e o espaço:
E que em breve hão de
ver-te em longo abraço
Na enxurrada, que às
praias lança o pó.
Pagou-te o povo o que
lhe parecia
Ter-te devido no
momento augusto,
Quando inda cheias de
palor do susto,
Ouvindo farfalhar o
vendaval
Da revolução, as mães
buscam seus filhos,
Tu, com teu gládio
esplêndido o continhas;
E cavavas com ele as
grandes linhas
Entre a idade moderna
e a medieval.
Enalteceu-te. — E tu
mentiste ao povo,
Que te pôs à nação de
sentinela:
Tu não quiseste crer
nas forças dela,
Julgaste-a sem
virtude e sem pudor.
Parou surpresa. —
Espera, ela há de erguer-se,
Para vingar-se e
dar-te horas amargas:
Para esmagar-te,
abrindo as asas largas,
Vai-te do alto cair,
como um condor.
Quando amanhã, retido
como fera,
Dentro dos seus
reparos derradeiros,
Fores tu, por teus
próprios companheiros,
Posto em sítio, como
hoje eles estão;
Muito acima da
própria vida a pátria,
Guardado intato o seu
caráter rijo,
Arrancarem-te fora do
esconderijo...
Que pensarás dessa
áspera lição?
Que te estará dizendo
inda o remorso
De bico adunco e
garra lacerante,
Inda há pouco
colérico e gigante,
Agora... agora já
humilde e réu?
É que uma pátria não
se ataca embalde,
E de repente à noite
o céu olhando,
Nem saberás se os
astros estão chorando,
Se neles ri-te o
escárnio em todo o céu.
Não ouves já o
cliquete das armas,
E o rumor surdo,
ultriz, que se avizinha?
Como a poeira de
vozes, que remoinha
E lança o povo em
iras de pegão?
É ele! vem: sim, há
de vir! não tarda:
Um povo não se vinga
de outra sorte,
Ou star por ele
condenado à morte,
Ou ele morre; vivo e
escravo, não.
Quando, do azul
voltando, o fogo trouxe,
Que devera animar-lhe
a argila fria;
Quando o divino
Prometeu um dia
Disse à estátua: —
caminha: e ela o entendeu:
Foi, como escrínio
que se entorna; e enchia
O ar do ouro da voz e
o ouro da trança:
Viu-a um deus da floresta,
e ao vê-la, a alcança,
E ei-lo a imitar no
roubo a Prometeu.
Toma-lhe a chama que
a animava: e logo
Pôs-se a correr,
gritando, o bosque todo:
Queimou-o um beijo;
um beijo pô-lo doido,
E o eterno ardor
consigo eterno traz:
O povo, que osculou a
Liberdade,
Sentindo dela o
ardor, jamais a deixa:
E o eterno fogo em
que anda e a eterna queixa
É de quem, arda
embora, inda quer mais.
Se tu tiveras, como o
povo sente,
Sentido a chama dessa
luz divina,
Perante a qual o
próprio céu se inclina
E o homem põe freio
ao mar, doma os tufões,
Não a terias nunca
atraiçoado:
Oh! não pensares tu,
oh! não supores,
Que inda para os
maiores salteadores
São já grandes demais
hoje as nações...
Mas tu só foste
escuro e ignaro chefe,
Que outros chefes
guiavam no caminho:
Essa Ilíada imensa tu
sozinho
Não souberes pensar e
construir:
Faltou-te o gênio,
que vê longe e cria:
Só compreendeste a maquinal
vitória:
Num corcel negro
chegarás à história,
E há de, como um
jogral, ter-te o porvir.
Traidor! há de
chamar-te a Liberdade:
Há de todo o país
traidor chamar-te:
Morre, traidor,
envilecido parte,
Deixando a história
trêmula de horror:
Como a vaga de praia
em praia, rola
De idade em idade,
réprobo e maldito;
Morre, infame; e ao
morrer o último grito
Ouve, convulso,
hirto, a tremer: Traidor!...
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