A Luís de Camões: Leão Alado
LUÍS DELFINO
"Algas e Musgos" (1927)
Como um leão, que volta, e vem do firmamento,
Tinta a boca de luz dos astros imortais,
E que na fulva garra — ousado e famulento, —
Arranca ao céu azul pedaços colossais...
E sacudindo a crina e as asas de ouro ao
vento,
Como às girafas dos seus pátrios areais,
Das estrelas no colo — indômito e violento, —
Mete o dente... e revoa em procura de mais...
Seu gênio assim — Leão alado da harmonia, —
Roubava as ideais estrelas da poesia,
Pendurando-as da pátria aos múltiplos
florões...
Quem não ouve o fremir dos mundos fulgurosos,
Nos ombros carregando os versos sonorosos
Do canto secular que nos legou Camões?!
★★★
Dai-me o vosso rumor, indiânicos mares,
Vosso aroma e verdor, matas orientais,
Vossa voz, ó leões, vossa sombra, ó palmares,
Ó céus, o vosso azul, e os sóis, com que
brilhais;
Fragrâncias de Ceilão, que volitais nos ares,
Macau em cuja gruta inda ecoam seus ais,
Eu desejo somente encher-lhe os seus altares
Da luz, da voz, do amor com que inda o
festejais.
Ó rei, maior que os reis da nação que
cantaste,
E que de eterna luz a cova alumiaste
Da terra onde estendeste as estreladas mãos...
Ergueste o sólio augusto em penhas de
Calvário,
Ó poeta imortal, três vezes centenário,
Mendigo que tiveste os sóis por teus irmãos.
★★★
Enquanto ao fogo intenso, em que o peito te
ardia,
Do teu grande padrão fundias o metal,
Enquanto o eterno molde a tua fantasia
Riscava do poema enorme e colossal...
Enquanto o monumento acabado saía
Selado por teu gênio olímpico e imortal,
Enquanto a eternidade a tua obra envolvia,
E punhas ante Homero o seu maior rival...
Enquanto se ebriava a terra a ler teus versos,
E vinham do horizonte ouvir povos diversos
A epopeia do mar e da navegação...
Ó Luís de Camões, ó grande sombra morta,
Nas ruas de Lisboa um jau de porta em porta
Para seu amo esmola um pedaço de pão.
A Luís de Camões
Devias ter colhido estrelas luminosas
Para fazer o fogo enorme e criador,
E o bronze preparar das formas grandiosas
Da estátua do feroz e horrendo Adamastor.
Devias ter bebido às curvas graciosas
Do céu o leite doce e cheio de vigor,
Que sai dos seios nus das cintilantes rosas,
Para pintar Inês — a pérola do amor.
Devias ter sorvido as lágrimas da aurora,
Para a Vênus gentil pintar, quando ela chora
Perturbando no Olimpo os deuses imortais.
Mas para encher de sóis teu canto imorredouro
Devias ter roubado ao Deus a pena de ouro,
Com que ele pinta o azul a traços colossais.
★★★
E para responder, a sombra despertando,
Quando lhe foram lá por ele perguntar,
Dos braços nus terror e anos gotejando,
A fronte levantou da pedra tumular.
Tinha terrenas cãs, o aspecto venerando,
Maciça noite de três séculos no olhar,
Estrelas nos rasgões do fato miserando,
E o silêncio que canta em noites de luar.
E disse: — Quando o Eterno ergueu o
firmamento,
Nos sóis e turbilhões fixou seu pensamento,
E escondeu-se detrás de sua obra imortal.
Por que buscais Camões num túmulo sombrio?
Jesus também deixou seu túmulo vazio,
E o túmulo de um Deus é a alma universal.
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