José de Anchieta
MACHADO DE ASSIS
“Ocidentais” (1880)
“Ocidentais” (1880)
Esse que as vestes ásperas cingia,
E a viva flor da ardente juventude
Dentro do peito a todos escondia;
Que em páginas de areia vasta e rude
Os versos escrevia e encomendava
À mente, como esforço de virtude;
Esse nos rios de Babel achava,
Jerusalém, os cantos primitivos,
E novamente aos ares os cantava.
Não procedia então como os cativos
De Sião, consumidos de saudade,
Velados de tristeza, e pensativos.
Os cantos de outro clima e de outra idade
Ensinava sorrindo às novas gentes,
Pela língua do amor e da piedade.
E iam caindo os versos excelentes
No abençoado chão, e iam caindo
Do mesmo modo as místicas sementes.
Nas florestas os pássaros, ouvindo
O nome de Jesus e os seus louvores,
Iam cantando o mesmo canto lindo.
Eram as notas como alheias flores
Que verdejam no meio de verduras
De diversas origens e primores.
Anchieta, soltando as vozes puras,
Achas outra Sião neste hemisfério,
E a mesma fé e igual amor apuras.
Certo, ferindo as cordas do saltério,
Unicamente contas divulgá-la
A palavra cristã e o seu mistério.
Trepar não cuidas a luzente escala
Que os heróis cabe e leva à clara esfera
Onde eterna se faz a humana fala.
Onde os tempos não são esta quimera
Que apenas brilha e logo se esvaece,
Como folhas de escassa primavera.
Onde nada se perde nem se esquece,
E no dorso dos séculos trazido
O nome de Anchieta resplandece
Ao vivo nome do Brasil unido.
★★★
Camões
MACHADO DE ASSIS
“Ocidentais” (1880)
“Ocidentais” (1880)
I
Tu quem és? Sou o século que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A glória resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a
graça.
Que cantou ele? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lira alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penúria, ermo, desgraça.
Nobremente sofreu? Como homem forte.
Esta imensa oblação?... É-lhe devida.
Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte.
Chama-se a isto? A glória apetecida.
Nós, que o cantamos?... Volvereis à morte.
Ele, que é morto?... Vive a eterna vida.
II
Quando, transposta a lúgubre morada
Dos castigos, ascende o florentino
À região onde o clarão divino
Enche de intensa luz a alma nublada,
A saudosa Beatriz, a antiga amada,
A mão lhe estende e guia o peregrino,
E aquele olhar etéreo e cristalino
Rompe agora da pálpebra sagrada.
Tu, que também o Purgatório andaste,
Tu, que rompeste os círculos do Inferno,
Camões, se o teu amor fugir deixaste,
Ora o tens, como um guia alto e superno
Que a Natércia da vida que choraste
Chama-se Glória e tem o amor eterno.
III
Quando, torcendo a chave misteriosa
Que os cancelos fechava do Oriente,
O Gama abriu a nova terra ardente
Aos olhos da companha valorosa,
Talvez uma visão resplandecente
Lhe amostrou no futuro a sonorosa
Tuba, que cantaria a ação famosa
Aos ouvidos da própria e estranha gente.
E disse: "Se já noutra, antiga idade,
Troia bastou aos homens, ora quero
Mostrar que é mais humana a humanidade.
Pois não serás herói de um canto fero,
Mas vencerás o tempo e a imensidade
Na voz de outro moderno e brando
Homero."
IV
Um dia, junto à foz de brando e amigo
Rio de estranhas gentes habitado,
Pelos mares aspérrimos levado,
Salvaste o livro que viveu contigo.
E esse que foi às ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca imortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.
Assim, um homem só, naquele dia,
Naquele escasso ponto do universo,
Língua, história, nação, armas, poesia,
Salva das frias mãos do tempo adverso.
E tudo aquilo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.
★★★
Dante
(Inferno,
canto XXV)
MACHADO DE ASSIS
“Ocidentais” (1880)
“Ocidentais” (1880)
Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo
As mãos em figas, deste modo brada:
"Olha, Deus, para ti o estou
fazendo!"
E desde então me foi a serpe amada,
Pois uma vi que o colo lhe prendia,
Como a dizer: "não falarás mais
nada!"
Outra os braços na frente lhe cingia
Com tantas voltas e de tal maneira
Que ele fazer um gesto não podia.
Ah! Pistoia, por que numa fogueira
Não ardes tu, se a mais e mais impuros,
Teus filhos vão nessa mortal carreira?
Eu, em todos os círculos escuros
Do inferno, alma não vi tão rebelada.
Nem a que em Tebas resvalou dos muros.
E ele fugiu sem proferir mais nada.
Logo um centauro furioso assoma
A bradar: "Onde, aonde a alma danada?”
Marema não terá tamanha soma
De reptis quanta vi que lhe ouriçava
O dorso inteiro desde a humana coma.
Junto à nuca do monstro se elevava
De asas abertas um dragão que enchia
De fogo a quanto ali se aproximava.
"Aquele é Caco, — o Mestre me dizia, —
Que, sob as rochas do Aventino, ousado
Lagos de sangue tanta vez abria.
Não vai de seus irmãos acompanhado
Porque roubou malicioso o armento
Que ali pascia na campanha ao lado.
Hércules com a maça e golpes cento,
Sem lhe doer um décimo ao nefando,
Pôs remate a tamanho atrevimento."
Ele falava, e o outro foi andando.
No entanto embaixo vinham para nós
Três espíritos que só vimos quando
Atroara este grito: "Quem sois
vós?"
Nisto a conversa nossa interrompendo
Ele, como eu, no grupo os olhos pôs.
Eu não os conheci, mas sucedendo,
Como outras vezes suceder é certo,
Que o nome de um estava outro dizendo,
"Cianfa aonde ficou?" Eu, por que
esperto
E atento fosse o Mestre em escutá-lo,
Pus sobre a minha boca o dedo aberto.
Leitor, não maravilha que aceitá-lo
Ora te custe o que vais ter presente,
Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo.
Eu contemplava, quando uma serpente
De seis pés temerosa se lhe atira
A um dos três e o colhe de repente.
Com os pés do meio o ventre lhe cingira,
Com os da frente os braços lhe peava,
E ambas as faces lhe mordeu com ira.
Os outros dois às coxas lhe alongava,
E entre elas insinua a cauda que ia
Tocar-lhes os rins e dura os apertava.
A hera não se enrosca nem se enfia
Pela árvore, como a horrível fera
Ao pecador os membros envolvia.
Como se fossem derretida cera,
Um só vulto, uma cor iam tomando,
Quais tinham sido nenhum deles era.
Tal o papel, se o fogo o vai queimando,
Antes de negro estar, e já depois
Que o branco perde, fusco vai ficando.
Os outros dois bradavam: "Ora pois,
Agnel, ai triste, que mudança é essa?
Olha que já não és nem um nem dois!"
Faziam ambas uma só cabeça,
E na única face um rosto misto,
Onde eram dois, a aparecer começa.
Dos quatro braços dois restavam, e isto,
Pernas, coxas e o mais ia mudado
Num tal composto que jamais foi visto.
Todo o primeiro aspecto era acabado;
Dois e nenhum era a cruel figura,
E tal se foi a passo demorado.
Qual camaleão, que variar procura
De sebe às horas em que o sol esquenta,
E correndo parece que fulgura,
Tal uma curta serpe se apresenta,
Para o ventre dos dois corre acendida,
Lívida e cor de um bago de pimenta.
E essa parte por onde foi nutrida
Tenra criança antes que à luz saísse,
Num deles morde, e cai toda estendida.
O ferido a encarou, mas nada disse;
Firme nos pés, apenas bocejava,
Qual se de febre ou sono ali caísse.
Frente a frente, um ao outro contemplava,
E à chaga de um, e à boca de outro, forte
Fumo saía e no ar se misturava.
Cale agora Lucano a triste morte
De Sabelo e Nasídio, e atento esteja
Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.
Cale-se Ovídio e neste quadro veja
Que, se Aretusa em fonte nos há posto
E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.
Pois duas naturezas rosto a rosto
Não transmudou, com que elas de repente
Trocassem a matéria e o ser oposto.
Tal era o acordo entre ambas que a serpente
A cauda em duas caudas fez partidas,
E a alma os pés ajuntava estreitamente.
Pernas e coxas vi-as tão unidas
Que nem leve sinal dava a juntura
De que tivessem sido divididas.
Imita a cauda bífida a figura
Que ali se perde, e a pele abranda, ao passo
Que a pele do homem se tornava dura.
Em cada axila vi entrar um braço,
A tempo que iam esticando à fera
Os dois pés que eram de tamanho escasso.
Os pés de trás a serpe os retorcera
Até formarem-lhe a encoberta parte,
Que no infeliz em pés se convertera.
Enquanto o fumo os cobre, e de tal arte
A cor lhes muda e põe à serpe o velo
Que já da pele do homem se lhe parte,
Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcê-lo
Aquele torvo olhar com que ambos iam
A trocar entre si o rosto e a vê-lo.
Ao que era em pé as carnes lhe fugiam
Para as fontes, e ali do que abundava
Duas orelhas de homem lhe saíam.
E o que de sobra ainda lhe ficava
O nariz lhe compõe e lhe perfaz
E o lábio lhe engrossou quanto bastava.
A boca estende o que por terra jaz
E as orelhas recolhe na cabeça,
Bem como o caracol às pontas faz.
A língua, que era então de uma só peça,
E prestes a falar, fendida vi-a,
Enquanto a do outro se une, e o fumo cessa.
A alma, que assim tornado em serpe havia,
Pelo vale fugiu assobiando,
E esta lhe ia falando e lhe cuspia.
Logo a recente espádua lhe foi dando
E à outra disse: "Ora com Buoso mudo,
Rasteje, como eu vinha rastejando!"
Assim na cova sétima vi tudo
Mudar e transmudar; a novidade
Me absolva o estilo desornado e rudo.
Mas que um tanto perdesse a claridade
Dos olhos meus, e turva a mente houvesse,
Não fugiram com tanta brevidade,
Nem tão ocultos, que eu não conhecesse
Puccio Sciancato, única ali vinda
Alma que a forma própria não perdesse;
O outro chorá-lo tu, Gaville, ainda.
★★★
Ovídio
LUÍS DELFINO
"Algas e Musgos” (1927)
"Algas e Musgos” (1927)
Com que dor tu deixaste Roma, e em Roma
O coração, que em ti foi tudo, ó poeta!
A glória ia a embalar-te a vida inquieta,
E um belo sol de amor, que a doira, a soma.
Teu plectro a Orfeu os sons mais doces toma;
Tem o teu surto incircunscrita meta;
A inveja, um cão sem asas, jamais doma
A uma águia o voo, a um gênio obra que
enceta.
Ao exílio embora o ódio te sagra, o exílio
Dá mais doçura ao hexâmetro latino;
Há todo um campo em flor num teu idílio.
Na dor, que em ti pranteia, alvora um hino;
Fulge a lágrima dele em cílio e cílio;
Cantar, sofrer, ser deus, foi teu destino.
★★★
Álvares de Azevedo
(Ao Sr.
Dr. M. A. D'almeida)
MACHADO DE ASSIS
“Poesias Dispersas”
“Poesias Dispersas”
Vejo em fúnebre cipreste
Transformada a ovante palma!
PORTO ALEGRE.
Morrer, de vida transbordando ainda,
Como uma flor que ardente calma abrasa!
Águia sublime das canções eternas:
Quem no teu voo espedaçou-te a asa?
Quem nessa fronte que animava o gênio,
A rosa desfolhou da vida tua?
Onde o teu vulto gigantesco? Apenas
Resta uma ossada solitária e nua!
E contudo essa vida era abundante!
E as esperanças e ilusões tão belas!
E no porvir te preparava a pátria
Da glória as palmas e gentis capelas!
Sim, um sol de fecunda inteligência
Sobre essa fronte pálida brilhava,
Que à face deste século de indústria
Tantos raios ardentes derramava!
E pôde a morte destruir-te a vida!
E dar à tumba a tua fronte ardente!
Pobre moço! saudaste a estrela d’alva,
E o sol não viste a refulgir no Oriente!
Morrer, de vida transbordando ainda,
Como uma flor que ardente calma abrasa!
Águia sublime das canções eternas:
Quem no teu voo espedaçou-te a asa?
Voltaste à terra só — Não morrem Byrons,
Nem finda o homem na friez da campa!
Homem, tua alma aos pés de Deus fulgura,
Teu nome, poeta, no porvir se estampa!
Não morreste! estalou a fibra apenas
Que a alma à vida de ilusões prendia!
Acordaste de um negro pesadelo,
E saudaste o sol do eterno dia!
Mas cá fica no altar do pensamento
Teu nome como um ídolo pomposo,
Que a fama com o turíbulo dos tempos
Perfuma de um incenso vaporoso!
E ao ramalhete das brasílias glórias,
Mais uma flor angélica se enlaça,
Que a brisa ardente do porvir passando
Trêmula beija e a murmurar abraça!
Byron da nossa terra, dorme embora
Envolto no teu fúnebre sudário,
Murmure embora o vento dos sepulcros
Junto do teu sombrio santuário.
Resta-te a c’roa santa de poeta,
E a mirra ardente da oração saudosa,
E pelas noites calmas do silêncio
Os séculos da lua vaporosa!
Ela te chora, e ali com ela a pátria,
Pobre órfã de teus cânticos divinos,
E das brisas na voz misteriosa,
Da saudade e da dor sagram-te os hinos!
Dorme junto de Chatterton, de Byron,
Frontes sublimes, pra sonhar criadas,
Almas puras de amor e sentimento,
Harpas santas, por anjos afinadas!
Dorme na tua fria sepultura
Guarda essa fronte vaporosa, ardente,
Tu, que apenas saudaste a estrela-d'alva
E o sol não viste a refulgir no Oriente!
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