Dies Irae
GONÇALVES DIAS
“Novos
Cantos” (1857)
Já o mundo
corrupto! – a terra ingrata
Frutos de
maldição produz somente;
E enquanto os
homens ao mercado afluem,
Vazio o templo
do Senhor se enluta,
Empoeira-se o
altar, e pelas naves,
Gretadas, rotas
pela mão do tempo,
De cânticos e
preces deslembradas,
A voz de Deus já
não reboa imensa!
Tudo porém
conserva o manso aspecto:
O sol girando, e
na aparência o mesmo,
Do ano as
quadras compassado alterna;
E os astros,
seus irmãos, gravitam sempre
D’abóbada
celeste. A terra é a mesma;
As águas pelos
vales se deslizam,
Ou d’alpestres
montanhas se despenham
Co’os mesmos
sons, co’a mesma queda: as brisas
Inda conversam
nos soturnos bosques;
A mulher, a mais
bela criatura,
Nas suas
próprias perfeições compraz-se,
Como quando, no
Éden, as pulcras formas
Pasmou de ver
representadas n’água,
E de as ver se
ufanou. Inda conserva
O mesmo orgulho
e inteligência o homem,
O rei da
criação, o deus criado,
De quando
vinham, por pedir-lhe os nomes,
Cetáceos, aves e
os répteis e aquelas
Criaturas-montanhas,
que passaram
Entre Adão e Noé
à flor da terra!
Tudo o mesmo se
mostra; mas a alma,
Esse mundo
interior, esse outro templo,
Onde gravara o
próprio Deus seu nome,
Como os templos
de pedra, jaz sem lume,
Jaz como o
prédio a desfazer-se em ruínas.
Onde um guarda
solícito não mora,
E entregue às
aves más, que em chilros pregam,
Que ali, na
ausência do Senhor imperam.
Da divina
bondade cheio o vaso
Já transborda de
cólera e justiça
E o largo rio do
perdão saudável,
Que mais não
corra, empece: Santas águas
Por cuja causa
os séculos já viram,
Sem justa
punição, ofensas graves;
Que o Senhor
consentisse persistirem
Os maus no mal,
à espera d’emendá-los;
Que triunfasse a
malvadez; e o crime,
Vexando os bons,
senhoreasse a terra.
Mas Deus, que
fora outrora pai clemente,
Dando começo ao
reino da justiça,
Em austero juiz
se há convertido.
Como um carro,
que vai d’encontro ao abismo,
Perfaz o sol
precípite o seu giro,
Indo a tocar a
temerosa meta
Prevista dos
profetas. Um arcanjo
Como mão robusta
inda retém os elos
Da cadeia do
tempo, enquanto a outra
Da vida o livro
volumoso sela
Com sete
brônzeos selos. Deus ofeso
Tira os olhos do
mundo, e o mundo há sido!
Quem pudera
pintar as discordâncias
Em que labora a
natureza! Crescem
Da terra ígneos
vapores, sufocando
O que respira, o
que tem vida: os montes
Em crateras se
rasgam, que vomitam
Fumo e lava
incessante; o mar s’empola
E em fúria
ardendo, arroja os altos cimos
Cruzados
vagalhões, qual se tentara
Sovertê-los; os
ventos se contrastam!
Novos prodígios,
novos monstros surgem!
O mar se torna
em sangue, o sol em fogo,
O Universo em
mansão d’aflitas dores,
O homem sofre,
blasfema e desespera,
E vendo os
mundos desabar precípites,
Um grito solta
d’horroroso transe,
Como de nau, que
em alto mares afunda
E rola os restos
n’amplidão das águas.
Satisfaz-se o
Senhor. Que resta? – o caos,
O horror, a
confusão, o vulto enorme
Do tempo, que
escurece o fundo abismo,
Onde por todo o
sempre jaz cativo;
E da morte o
cadáver gigantesco
Quase ocupando a
superfície inteira
Dum mar de
chumbo, escuro e sem rumores.
Da glória do
Senhor um raio apenas,
Fere da morte o
rosto macilento
De tudo quanto
foi, o quanto existe!
★ ★★
Deus
Of Heaven, and
from eternal splendours flung
For his
revolt...
(Milton —
“Paradise Lost")PA
LUÍS DELFINO
“Rosas
Negras” (1938)
Deus existe? — ou
é Deus somente um nome vão?...
E bato às portas
de ouro e de opala da aurora,
Donde o sol —
velho leão — noite e estrelas devora;
E às estrelas da
noite em louco turbilhão...
Ao mar, ao
vento, ao raio, ao tempo, ao abismo em fora,
Ao argueiro, e à
montanha, às lavas, e ao vulcão,
Ao passado, ao
porvir, ao berço, à cova.. Embora!...
Cala-se a
natureza ou me responde: — Não.
Subo à minha
alma então: chamo-a, interrogo-a... Nada...
E ela fica a
oscilar, no abismo pendurada,
Vendo o espaço
afundar-se em outro espaço sem fim...
Só entre o
torvelim dos caos em labirinto,
Como com seu
bordão na areia um cego, — o instinto
Sobre a poeira
dos sóis grava um trêmulo — Sim.
★ ★★
Deus
ANTERO DE QUENTAL
“Sonetos Completos” (1886)
“Sonetos Completos” (1886)
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Deus do Ideal e da paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
★ ★★
Deus em ti
MACHADO DE ASSIS
“Poesias Dispersas”
“Poesias Dispersas”
É quando eu
sinto embriagar-me o peito
Um místico
vapor,
E à luz fecunda
desses olhos belos
Da minha alma
ter vida e alento — a flor;
É quando as
tranças dessa fronte loura
Prendem o meu
olhar,
E sinto o
coração tremer ardente.
Como uma flor aos
zéfiros do mar;
É ao ouvir-te as
místicas ideias
Tão cheias de
paixão,
Nessa eloquência
lânguida e profunda
Que fala ao
coração;
É ao sentir as
tuas asas brancas,
Ó meu anjo de
amor,
Que eu reconheço
a mão do rei da terra
E creio no
Senhor!
★ ★★
Deus
ALEXANDRE HERCULANO
“A
Harpa do Crente” (1838)
Nas horas do
silêncio, à meia-noite,
Eu louvarei o
Eterno!
Ouçam-me a terra,
e os mares rugidores,
E os abismos do
inferno.
Pela amplidão
dos céus meus cantos soem,
E a lua
resplendente
Pare em seu
giro, ao ressoar nesta harpa
O hino do
Onipotente.
Antes de tempo
haver, quando o infinito
Media a
eternidade,
E só do vácuo as
solidões enchia
De Deus a
imensidade,
Ele existia, em
sua essência envolto,
E fora dele o
nada:
No seio do
Criador a vida do homem
Estava ainda
guardada:
Ainda então do
mundo os fundamentos
Na mente se
escondiam
De Jeová, e os
astros fulgurantes
Nos céus não se
volviam.
Eis o Tempo, o
Universo, o Movimento
Das mãos solta o
Senhor:
Surge o Sol,
banha a terra, e desabrocha
Nesta a primeira
flor:
Sobre o
invisível eixo range o globo:
O vento o bosque
ondeia:
Retumba ao longe
o mar: da vida a forca
A natureza
anseia!
Quem,
dignamente, ó Deus, há de louvar-te,
Ou cantar teu poder?
Quem dirá de teu
braço as maravilhas,
Fonte de todo o
ser,
No dia da
Criação; quando os tesouros
Da neve
amontoaste;
Quando da terra
nos mais fundos vales
As águas
encerraste?!
E eu onde
estava, quando o Eterno os mundos,
Com destra
poderosa,
Fez, por lei
imutável, se librassem
Na mole
ponderosa?
Onde existia
então? No tipo imenso
Das gerações
futuras;
Na mente do meu
Deus. Louvor a Ele
Na terra e nas
alturas!
Oh, quanto é
grande o rei das tempestades,
Do raio, e do
trovão!
Quão grande o
Deus, que manda, em seco estio,
Da tarde a
viração!
Por sua
providência nunca, embalde,
Zumbiu mínimo
inseto;
Nem volveu o
elefante, em campo estéril,
Os olhos
inquieto.
Não deu Ele à
avezinha o grão da espiga,
Que ao ceifador
esquece;
Do norte ao urso
o sol da Primavera,
Que o reanima e
aquece?
Não deu Ele à
gazela amplos desertos,
Ao certo a amena
selva,
Ao flamingo os
pauis, ao tigre o antro,
No prado ao
touro a relva?
Não mandou Ele
ao mundo, em luto e trevas,
Consolação e
luz?
Acaso em vão
algum desventurado
Curvou-se aos
pés da cruz?
A quem não ouve
Deus? Somente ao ímpio
No dia da
aflição,
Quando pesa
sobre ele, por seus crimes,
Do crime a
punição.
Homem, ente
imortal, que és tu perante
A face do
Senhor?
És a junta do
brejo, harpa quebrada
Nas mãos do
trovador!
Olha o velho
pinheiro, campeando
Entre as neves
alpinas:
Quem irá
derribar o rei dos bosques
Do trono das
colinas?
Ninguém! Mas ai
do abeto, se o seu dia
Extremo Deus
mandou!
Lá correu o
aquilão: fundas raízes
Aos aves lhe
assoprou.
Soberbo, sem
temor, saiu na margem
Do caudaloso
Nilo,
O corpo
monstruoso ao sol voltando
Medonho
crocodilo.
De seus dentes em
roda o susto habita;
Vê-se a morte
assentada
Dentro em sua
garganta, se descerra
Aboca afogueada:
Qual duro arnês
de intrépido guerreiro
É seu dorso
escamoso;
Como os últimos
ais de um moribundo
Seu grito
lamentoso:
Fumo e fogo
respira quando irado;
Porém, se Deus
mandou,
Qual do norte
impelida a nuvem passa,
Assim ele
passou!
Teu nome ousei
cantar! Perdoa, ó Nume;
Perdoa ao teu
cantor!
Dignos de ti não
são meus frouxos hinos
Mas são hinos de
amor.
Embora vis
hipócritas to pintem
Qual bárbaro
tirano:
Mentem, por
dominar com férreo cetro
O vulgo cego e
insano.
Quem os crê é um
ímpio! Recear-te
É maldizer-te, ó
Deus;
É o trono dos
déspotas da terra
Ir colocar nos
céus.
Eu, por mim,
passarei entre os abrolhos
Dos males da
existência
Tranquilo, e sem
terror, à sombra posto
Da tua
Providência.
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