6/20/2018

Temas Poéticos: DEUS - I


Dies Irae

GONÇALVES DIAS
“Novos Cantos” (1857)

Já o mundo corrupto! – a terra ingrata
Frutos de maldição produz somente;
E enquanto os homens ao mercado afluem,
Vazio o templo do Senhor se enluta,
Empoeira-se o altar, e pelas naves,
Gretadas, rotas pela mão do tempo,
De cânticos e preces deslembradas,
A voz de Deus já não reboa imensa!

Tudo porém conserva o manso aspecto:
O sol girando, e na aparência o mesmo,
Do ano as quadras compassado alterna;
E os astros, seus irmãos, gravitam sempre
D’abóbada celeste. A terra é a mesma;
As águas pelos vales se deslizam,
Ou d’alpestres montanhas se despenham
Co’os mesmos sons, co’a mesma queda: as brisas
Inda conversam nos soturnos bosques;
A mulher, a mais bela criatura,
Nas suas próprias perfeições compraz-se,
Como quando, no Éden, as pulcras formas
Pasmou de ver representadas n’água,
E de as ver se ufanou. Inda conserva
O mesmo orgulho e inteligência o homem,
O rei da criação, o deus criado,
De quando vinham, por pedir-lhe os nomes,
Cetáceos, aves e os répteis e aquelas
Criaturas-montanhas, que passaram
Entre Adão e Noé à flor da terra!

Tudo o mesmo se mostra; mas a alma,
Esse mundo interior, esse outro templo,
Onde gravara o próprio Deus seu nome,
Como os templos de pedra, jaz sem lume,
Jaz como o prédio a desfazer-se em ruínas.
Onde um guarda solícito não mora,
E entregue às aves más, que em chilros pregam,
Que ali, na ausência do Senhor imperam.
Da divina bondade cheio o vaso
Já transborda de cólera e justiça
E o largo rio do perdão saudável,
Que mais não corra, empece: Santas águas
Por cuja causa os séculos já viram,
Sem justa punição, ofensas graves;
Que o Senhor consentisse persistirem
Os maus no mal, à espera d’emendá-los;
Que triunfasse a malvadez; e o crime,
Vexando os bons, senhoreasse a terra.

Mas Deus, que fora outrora pai clemente,
Dando começo ao reino da justiça,
Em austero juiz se há convertido.
Como um carro, que vai d’encontro ao abismo,
Perfaz o sol precípite o seu giro,
Indo a tocar a temerosa meta
Prevista dos profetas. Um arcanjo
Como mão robusta inda retém os elos
Da cadeia do tempo, enquanto a outra
Da vida o livro volumoso sela
Com sete brônzeos selos. Deus ofeso
Tira os olhos do mundo, e o mundo há sido!

Quem pudera pintar as discordâncias
Em que labora a natureza! Crescem
Da terra ígneos vapores, sufocando
O que respira, o que tem vida: os montes
Em crateras se rasgam, que vomitam
Fumo e lava incessante; o mar s’empola
E em fúria ardendo, arroja os altos cimos
Cruzados vagalhões, qual se tentara
Sovertê-los; os ventos se contrastam!
Novos prodígios, novos monstros surgem!
O mar se torna em sangue, o sol em fogo,
O Universo em mansão d’aflitas dores,
O homem sofre, blasfema e desespera,
E vendo os mundos desabar precípites,
Um grito solta d’horroroso transe,
Como de nau, que em alto mares afunda
E rola os restos n’amplidão das águas.

Satisfaz-se o Senhor. Que resta? – o caos,
O horror, a confusão, o vulto enorme
Do tempo, que escurece o fundo abismo,
Onde por todo o sempre jaz cativo;
E da morte o cadáver gigantesco
Quase ocupando a superfície inteira
Dum mar de chumbo, escuro e sem rumores.
Da glória do Senhor um raio apenas,
Fere da morte o rosto macilento
De tudo quanto foi, o quanto existe!

★ ★★

Deus

Of Heaven, and from eternal splendours flung
For his revolt...
(Milton — “Paradise Lost")PA

LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)

Deus existe? — ou é Deus somente um nome vão?...
E bato às portas de ouro e de opala da aurora,
Donde o sol — velho leão — noite e estrelas devora;
E às estrelas da noite em louco turbilhão...

Ao mar, ao vento, ao raio, ao tempo, ao abismo em fora,
Ao argueiro, e à montanha, às lavas, e ao vulcão,
Ao passado, ao porvir, ao berço, à cova.. Embora!...
Cala-se a natureza ou me responde: — Não.

Subo à minha alma então: chamo-a, interrogo-a... Nada...
E ela fica a oscilar, no abismo pendurada,
Vendo o espaço afundar-se em outro espaço sem fim...

Só entre o torvelim dos caos em labirinto,
Como com seu bordão na areia um cego, — o instinto
Sobre a poeira dos sóis grava um trêmulo — Sim.

★ ★★

Deus

ANTERO DE QUENTAL
“Sonetos Completos” (1886)



Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Deus do Ideal e da paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

★ ★★

Deus em ti

MACHADO DE ASSIS
“Poesias Dispersas”

É quando eu sinto embriagar-me o peito
Um místico vapor,
E à luz fecunda desses olhos belos
Da minha alma ter vida e alento — a flor;

É quando as tranças dessa fronte loura
Prendem o meu olhar,
E sinto o coração tremer ardente.
Como uma flor aos zéfiros do mar;

É ao ouvir-te as místicas ideias
Tão cheias de paixão,
Nessa eloquência lânguida e profunda
Que fala ao coração;

É ao sentir as tuas asas brancas,
Ó meu anjo de amor,
Que eu reconheço a mão do rei da terra
E creio no Senhor!

★ ★★

Deus

ALEXANDRE HERCULANO
“A Harpa do Crente” (1838)

Nas horas do silêncio, à meia-noite,
Eu louvarei o Eterno!
Ouçam-me a terra, e os mares rugidores,
E os abismos do inferno.
Pela amplidão dos céus meus cantos soem,
E a lua resplendente
Pare em seu giro, ao ressoar nesta harpa
O hino do Onipotente.

Antes de tempo haver, quando o infinito
Media a eternidade,
E só do vácuo as solidões enchia
De Deus a imensidade,
Ele existia, em sua essência envolto,
E fora dele o nada:
No seio do Criador a vida do homem
Estava ainda guardada:
Ainda então do mundo os fundamentos
Na mente se escondiam
De Jeová, e os astros fulgurantes
Nos céus não se volviam.

Eis o Tempo, o Universo, o Movimento
Das mãos solta o Senhor:
Surge o Sol, banha a terra, e desabrocha
Nesta a primeira flor:
Sobre o invisível eixo range o globo:
O vento o bosque ondeia:
Retumba ao longe o mar: da vida a forca
A natureza anseia!

Quem, dignamente, ó Deus, há de louvar-te,
Ou cantar teu poder?
Quem dirá de teu braço as maravilhas,
Fonte de todo o ser,
No dia da Criação; quando os tesouros
Da neve amontoaste;
Quando da terra nos mais fundos vales
As águas encerraste?!

E eu onde estava, quando o Eterno os mundos,
Com destra poderosa,
Fez, por lei imutável, se librassem
Na mole ponderosa?
Onde existia então? No tipo imenso
Das gerações futuras;
Na mente do meu Deus. Louvor a Ele
Na terra e nas alturas!

Oh, quanto é grande o rei das tempestades,
Do raio, e do trovão!
Quão grande o Deus, que manda, em seco estio,
Da tarde a viração!
Por sua providência nunca, embalde,
Zumbiu mínimo inseto;
Nem volveu o elefante, em campo estéril,
Os olhos inquieto.
Não deu Ele à avezinha o grão da espiga,
Que ao ceifador esquece;
Do norte ao urso o sol da Primavera,
Que o reanima e aquece?
Não deu Ele à gazela amplos desertos,
Ao certo a amena selva,

Ao flamingo os pauis, ao tigre o antro,
No prado ao touro a relva?
Não mandou Ele ao mundo, em luto e trevas,
Consolação e luz?
Acaso em vão algum desventurado
Curvou-se aos pés da cruz?
A quem não ouve Deus? Somente ao ímpio
No dia da aflição,
Quando pesa sobre ele, por seus crimes,
Do crime a punição.

Homem, ente imortal, que és tu perante
A face do Senhor?
És a junta do brejo, harpa quebrada
Nas mãos do trovador!
Olha o velho pinheiro, campeando
Entre as neves alpinas:
Quem irá derribar o rei dos bosques
Do trono das colinas?
Ninguém! Mas ai do abeto, se o seu dia
Extremo Deus mandou!
Lá correu o aquilão: fundas raízes
Aos aves lhe assoprou.
Soberbo, sem temor, saiu na margem
Do caudaloso Nilo,
O corpo monstruoso ao sol voltando
Medonho crocodilo.
De seus dentes em roda o susto habita;
Vê-se a morte assentada
Dentro em sua garganta, se descerra
Aboca afogueada:
Qual duro arnês de intrépido guerreiro
É seu dorso escamoso;
Como os últimos ais de um moribundo
Seu grito lamentoso:
Fumo e fogo respira quando irado;
Porém, se Deus mandou,
Qual do norte impelida a nuvem passa,
Assim ele passou!

Teu nome ousei cantar! Perdoa, ó Nume;
Perdoa ao teu cantor!
Dignos de ti não são meus frouxos hinos
Mas são hinos de amor.
Embora vis hipócritas to pintem
Qual bárbaro tirano:
Mentem, por dominar com férreo cetro
O vulgo cego e insano.
Quem os crê é um ímpio! Recear-te
É maldizer-te, ó Deus;
É o trono dos déspotas da terra
Ir colocar nos céus.
Eu, por mim, passarei entre os abrolhos
Dos males da existência
Tranquilo, e sem terror, à sombra posto
Da tua Providência.


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