O Dilúvio
“E caiu a chuva
sobre a terra quarenta
dias e quarenta
noites.”
Gênesis — cap.7, vers. 12
MACHADO DE ASSIS
“Crisálidas” (1863)
“Crisálidas” (1863)
Do sol ao raio esplêndido,
Fecundo, abençoado,
A terra exausta e úmida
Surge, revive já;
Que a morte inteira e rápida
Dos filhos do pecado
Pôs termo à imensa cólera
Do imenso Jeová!
Que mar não foi! que túmidas
As águas não rolavam!
Montanhas e planícies
Tudo tornou-se um mar;
E nesta cena lúgubre
Os gritos que soavam
Era um clamor uníssono
Que a terra ia acabar.
Em vão, ó pai atônito,
Ao seio o filho estreitas;
Filhos, esposos, míseros,
Em vão tentais fugir!
Que as águas do dilúvio
Crescidas e refeitas,
Vão da planície aos píncaros
Subir, subir, subir!
Só, como a ideia única
De um mundo que se acaba,
Erma, boiava intrépida,
A arca de Noé;
Pura das velhas nódoas
De tudo o que desaba,
Leva no seio incólumes
A virgindade e a fé.
Lá vai! Que um vento alígero,
Entre os contrários ventos,
Ao lenho calmo e impávido
Abre caminho além...
Lá vai! Em torno angústias,
Clamores e lamentos;
Dentro a esperança, os
cânticos,
A calma, a paz e o bem.
Cheio de amor, solícito,
O olhar da divindade,
Vela os escapos náufragos
Da imensa aluvião.
Assim, por sobre o túmulo
Da extinta humanidade
Salva-se um berço; o vínculo
Da nova criação.
Íris, da paz o núncio,
O núncio do concerto,
Riso do Eterno em júbilo,
Nuvens do céu rasgou;
E a pomba, a pomba mística,
Voltando ao lenho aberto,
Do arbusto da planície
Um ramo despencou.
Ao sol e às brisas tépidas
Respira a terra um hausto,
Viçam de novo as árvores,
Brota de novo a flor;
E ao som de nossos cânticos,
Ao fumo do holocausto
Desaparece a cólera
Do rosto do Senhor.
★ ★★
OLAVO BILAC
“Alma inquieta” (1902)
Maldito
aquele dia, em que abriste em meu seio,
Cruel,
esta paixão, como, ampla e iluminada,
Uma
clareira verde, aberta ao sol, no meio
Da
espessa escuridão de uma selva cerrada!
Ah!
três vezes maldito o amor que me avassala,
E
me obriga a viver dentro de um pesadelo,
Louco!
por toda a parte ouvindo a tua fala,
Vendo
por toda a parte a cor do teu cabelo!
De
teu colo no vale embalsamado e puro
Nunca
descansarei, como num paraíso,
Sob
a tenda aromal desse cabelo escuro,
Olhando
o teu olhar, sorrindo ao teu sorriso.
Desvairas-me
a razão, tiras-me a calma e o sono!
Nunca
te possuirei, bela e invejada vinha,
Ó
vinha de Nabot que tanto ambiciono!
Ó
alma que procuro e nunca serás minha!
★ ★★
Dalila
LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
“Rosas Negras” (1938)
És
como o mar, és como o céu, és tudo
Que
se parece com o abismo, e o finge:
És
formidável como a antiga esfinge;
És
obra para o sonho, e para o estudo.
Às
vezes cravo em ti olhar tão rudo
Como
um machado, que mordendo ringe:
À
lua dos astros, e o luar que o cinge,
Teu
rosto é belo, ó deusa! — E não me iludo.
Preferes
os Sansões, que amam chorando,
E
ajoelham quando o teu olhar cintila:
Dos
cílios, tens a grande sombra, orlando...
Mas...
também tens, no fundo da pupila,
Uns
raios fulvos, trêmulos, pingando
Sangue,
que coalha em tuas mãos, Dalila!...
★ ★★
Canaã
LUÍS DELFINO
“Posse absoluta” (1941)
Hoje, amanhã, depois, sempre
após a esperança
Coluna chamejante em frente
ao pobre hebreu:
A cerrada corte em marcha, e
que não cansa,
De quimeras gentis, e a
conduzi-las eu...
Preciso de chegar a essa
terra fecunda:
É por ela que me ergo à
primeira manhã
É por ela que marcho até a
noite funda,
Ó Ofir do meu sonho! Ó minha
Canaã.
Pobres, quimeras, vós buscais
seu seio olente:
Pobres sonhos gentis, buscais
o seio seu;
Vós ides, podeis ir dormir
lá; eu somente
Posso mandar-vos, sem poder
ir também eu.
Entre o céu azulado, e os
esplendentes lagos
Com colares iguais ao colar
da manhã,
Sem nunca poder ter um só dos
teus afagos,
Hei de ver-te sorrir, terra
de Canaã.
Como o sol de ouro puro a
fronte te engrinalda!
Que selvas! que vergéis, que
força em tudo teu!
Só eu hei de morrer no fogo
que me escalda,
Sem nunca mitigá-lo em teu
seio!... só seu!...
Voltarão para ti formosas
primaveras;
E eu estarei a dormir e fora
a vida e o afã...
Ficam-te os sonhos meus e as
minhas vãs quimeras,
Mulher, Ofir de amor, e minha
Canaã!
***
Tu, que lês descuidado o meu
poema morno,
Como quem para um poço a
cabeça estendeu,
Vês muita água no fundo, e
muita sombra em torno.
Um dia terás sede, e morrerás
como eu.
Morrerás vendo o poço e o
ouro vão das quimeras,
Lançarás aos milhares lá
dentro: — e em louco afã,
Hás de morrer de sede e vendo
a água que esperas,
Como eu morro de amor em
frente à Canaã.
★ ★★
Babel
AUGUSTO DE LIMA
“Símbolos” (1892)
Humanidade, elevas teu
lamento
como uma torre de Babel
maldita:
tens sobre a fronte a abóbada
infinita;
mas tens preso na terra o
pensamento.
Tua alma aberta ao sideral
assento,
debalde geme e chora e clama
e grita;
há de a torre blasfema que
ela habita
ruir num grande
desmoronamento.
Será no dia em que, de todo,
a crença
compreender que a vastidão
imensa
já não encerra as ilusões
divinas.
A razão, sobreviva ao
cataclismo,
levantará nova Babel do
abismo...
– Feliz quem perecer sob as
ruínas!
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