O nascimento de Eva
LUÍS DELFINO
"Imortalidades" (1941)
Quando pediu, um
dia, o homem primeiro,
Cansado de estar
só no Éden fruindo,
Quando pediu a
Deus, entressorrindo,
Para gozar
consigo, um companheiro,
Deus quis
mostrar-se excepcional obreiro,
E fez, então, o
que houve de mais lindo,
Fez a Mulher,
primor, que ele exibindo,
Pôs, mudado em
seu eixo, o mundo inteiro.
Era demais
aquela maravilha:
Mais do que o
sol, mais doce que o sol, brilha;
Aparição assim
jamais foi vista.
Viam-se estrelas
mesmo à luz do dia;
E o cântico que
em tudo então se ouvia,
Era um Te-Deum
da natureza ao artista...
★★★
Adão e a
companheira
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
Quase atônito
Adão, e ebriado ao vê-la,
Deslumbrado,
porém não satisfeito
Ficou desta obra
augusta, em seu conceito
Melhor que a
luz, mais bela que uma estrela;
Disse em si: — Por que fez tal obra? E fê-la
Mais do que lhe
pedira com efeito:
E, inquieto o
coração dentro em seu peito,
Foi de braços
abertos recebê-la.
Oh! como o corpo
tinha um suave cheiro!
Oh! que delícia
penetrante e doce!...
Era o céu todo
ante um pequeno argueiro!
Por que digno de
a ter consigo fosse,
Lhe era preciso
ser um deus primeiro...
E um terror vago
na alma ao pasmo enleou-se.
★★★
Experiência de Eva
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
Quando Eva só
ensaia algum caminho,
Há de alegria em
tudo uma vertigem:
Quando ela um pé
levanta, chilra um ninho;
Dá de um pássaro
a um canto novo origem.
Do bosque as
feras todas se dirigem,
Para vê-la
passar, deixando o arminho
Escuro; a neve
dele é só caligem,
Tanto ela
esplende — Adão ficou sozinho...
Hoje é sua a
apoteose — O Éden toma
Uma estranha
beleza; — e maravilha,
O que de bom na
natureza assoma:
Em cada galho de
árvore um sol brilha:
Da selva vem
mais novo e doce o aroma:
Mesmo, como aos
seus pés, o céu se humilha!...
★★★
Adão e Eva
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
—
Há só para o que é triste agora ensejo:
Hão de vir dias
cheios de amargura:
Não nos bastava
aqui tanta ventura?
Como sabe em teu
rosto um casto beijo!
Eva, não quero
mais, nem mais desejo:
Só mal — só mal a inveja te procura;
Só em pensares
nisso, olha, criatura,
Ponho os olhos
no chão, quando Deus vejo.
A que imprudência
a serpe te convida!
Vê que podes
mudar a nossa sorte,
Mudar tudo em
nós, mulher querida.
Acautela-te tu
de ti; sê forte:
Disse a cobra,
que o fruto era o da vida:
Mas disse Deus
que o fruto era o da morte. —
★★★
Repugnância de Adão
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
—
Esta serpente esquálida e medonha,
De pele áspera,
de escamas cheia, escura,
Que a sombra
escusa dos moitais procura,
E que parece ter
do sol vergonha;
Traiçoeira,
sutil, de má figura,
Que faz que
dorme e faz pensar que sonha,
Não tem ninguém
no Éden que a suponha
Capaz de uma
ação boa, uma ação pura;
É vil; ondeia,
salta, o corpo arrasta:
Todos a fogem,
como de um perigo,
No flóreo prado,
na floresta vasta:
Ninguém a quer:
não tem um só amigo.
Eva, foge também
da serpe; — basta
O susto, em que
ando; o horror que anda contigo.
★★★
A serpe só com Eva
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
—
Gentil Princesa, se ainda vir eu ouso
Lembrar que
tardas em colher o fruto,
É que, enquanto
o não tens, eu não repouso,
E com visões
aterradoras luto.
Ah! não demores
meu supremo gozo:
Sem justas
ambições te não reputo:
Sereis, tu só e
teu sagrado esposo,
Donos disto: do
próprio Deus o escuto.
Serão ordens
somente os teus olhares,
E a natureza, em
tudo obediente,
Dará vida ao que
dentro em ti pensares.
Baixará aos teus
pés o céu fulgente,
Anjos e sóis,
escravos aos milhares
Virão servir-te,
deusa onipotente!
★★★
A saída do Éden
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
Ao caírem os
dois, tudo caía:
Belos ainda,
vê-los já não ousas:
Havia em tudo as
lágrimas das coisas;
Quem não chorava
então, também não ria.
Do Éden de ontem
nada mais havia:
Em cardume andam
doidas mariposas:
Por ervas mortas
só teus olhos pousas:
Tudo é total,
tudo é melancolia.
Sabem: — fizeram jus à sua ruína:
E vão, perdoando
aos anjos, que se excedem,
Ao pô-los fora
da mansão divina.
Já não podem
querer; já nada pedem.
E Adão,
beijando-a: — Esposa peregrina,
O amor nos
resta; e o amor resgata um Éden.
★★★
Adão à porta do Éden
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
—
Anjos, saímos já: nada queremos:
Das mãos nos
escorrega o paraíso,
Como o
irradiamento de um sorriso,
Que está perto
de nós, e nós não vemos.
Isso, que nosso
foi, já foi, não temos:
Tudo, ó Eva,
perdemos de improviso;
Saibamos bem
deixar o que perdemos:
O orgulho do
vencido hoje é preciso.
Mas em te
possuindo, Eva querida,
Tenho o gozo
infinito em minha vida:
Não vale a nossa
perda um grão de areia.
Deus não soube
pesar o cruel castigo:
Tenho flores,
jardins, vergéis contigo:
De Edens contigo
está minh’alma cheia.
★★★
Eva
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
Surge Adão; Eva
após; Deus os exorta:
Tinham no
paraíso eterno encanto:
Roubam o fruto,
que é vedado, e entanto
Deles toda a
ventura é logo morta.
Vê-os Deus...
Deus agora os não suporta,
E envolve a face
irada em rubro manto:
Cai-lhes dos
olhos o primeiro pranto:
Rangeu, o Éden
fechando, a brônzea porta.
Tinha lá dentro
sândalos, e nardos:
De cada lado um
anjo a espada eleva:
O sol golpeia-os
com seus áureos dardos.
Urram leões em
torno, ao pé, na treva,
Eriça-lhes a
terra urzais e cardos...
Mas junto a si
Adão inda tem Eva.
★★★
Eva ante a
serpente
LUÍS DELFINO
"Imortalidades"
(1941)
Eva vendo-a
morrer, só teve nojo,
Mesclando em
tudo um pouco de piedade:
— E isto é obra de um Deus?!... Pensar quem há de!
Ele dar vida a
um ser, que anda de rojo!
Que habita as
urzes, que procura o tojo,
Para estar lá em
mais seguridade,
Que é hipócrita
e falsa, e a todo arrojo,
Não opõe força,
opõe sagacidade.
Finge às vezes
letárgico repouso,
Para atrair a si
os passarinhos,
Que amam a luz do
seu olhar choroso:
Ou abandona o
seu moital de espinhos,
Para enroscar-se
ao sândalo odoroso,
Ou dormir
dentro, em paz, nalgum dos ninhos...
★★★
A raça de Adão
LUÍS DELFINO
"Esboço
de uma epopeia americana" (1939)
O céu, ó minha doce virgem pura,
Minha Helena
gentil, és tu somente:
Ver o céu
através da sepultura,
Quer minha alma,
a razão só não consente.
A morte há
tantos séculos que dura;
A morte durará
eternamente:
E eu, que te
amo, esplêndida criatura,
Hei de esperar a
morte, e um céu que mente,
Para que Deus
nos una então, Helena?
Quem abandona em
vida, há de ter pena
De dois mortos
perdidos na amplidão?
O céu é cá na
terra, Helena amada,
Porque a raça de
Adão foi condenada
À dor eterna, à
eterna maldição...
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