O poeta Castilho e o imperador do Brasil
Texto publicado originalmente no jornal "Pacotilha", em edição de 1917. Transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2018)
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Permitam-me que desenterre hoje dos velhos arquivos
um precioso trecho de prosa portuguesa. Clássica, lapidar, elegante, bela;
ganham os leitores do Jornal do Brasil
em que eu substitua à minha, desataviada e pobre. Firma-a o grande nome do cego
ilustre, que enriqueceu a literatura de um século, que se chamou Antônio
Feliciano de Castilho, mais tarde Visconde de Castilho, e que é o mestre por
excelência de quantos procuram escrever com esmero a formosa, a opulenta língua
portuguesa.
A prosa que vou reproduzir é, além de tudo, um
modelo no gênero epistolar... É a carta que o poeta dirigiu a Sua Majestade
Imperial Dom Pedro II do Brasil, que pouco antes o agraciara com a mercê da
Comenda da Rosa, à qual carta em que expõe ao imperador as razões por que
determinara vir ao Brasil e aquelas que o levaram a desistir dessa resolução.
Esta é a epístola, desconhecida, se não por todos;
decerto pela maior parte dos que vão ter hoje o prazer de saboreá-la como um
fino e primoroso manjar literário:
“Senhor,
Já poetas escreveram a reis, imperadores; mas eram
esses poetas muitos maiores que eu, e esses soberanos muito menores, e menos
sábios que vossa majestade imperial. Eis o que até hoje me acovardou para o
cumprimento de um dever santo de gratidão, e de um ato, ao mesmo tempo de
satisfação e de glória para mim.
Devia eu à munificência de vossa majestade imperial,
o possuir, do seu próprio punho, o seu augusto nome, e o adornar o peito com a Rosa d'amor e fidelidade, plantada no
maior dos impérios para prêmio de mérito e símbolo de amor, por um dos maiores
príncipes da História; para uma das mais memorandas princesas dos nossos
tempos.
Tão subidas mercês eram estás, senhor, para o meu
coração, que toda a poesia se me afigurava pouca para agradecer. Tentei por
muitas vezes; esmoreci; desanimado de conseguir versos dignos dos olhos de
vossa majestade imperial, e proporcionados ao que me fervia dentro.
Afinal, disse-me a mim mesmo: que o afeto, com que
um Pedro Grande do Sul me favorecia, não era com poemas que se poderia, jamais agradecer,
mas sim com uma dedicação pessoal, positiva, e serviços reais em ponto do seu
máximo empenho, como é a pública instrução. Desde logo, Senhor, concebi o
projeto de me transladar com minha família para o feliz império e ótima sombra
do trono de vossa majestade imperial; para oferecer meus filhos ao seu glorioso
serviço, e solicitar para mim a honra incomparável de obedecer ao ardente e
perpétuo desejo de vossa majestade imperial, com a difusão dos estudos
primários; pelos métodos fáceis e aprazíveis, que tive a fortuna de criar, e de
ver maravilhosamente propagados por todo este reino, e carregados por toda
parte de opulentos frutos.
A 2ª edição do meu Método de Leitura e Escrita,
que eu tenho a honra de enviar hoje, para ser posta aos pés de vossa majestade
imperial, se vossa majestade imperial lhe lançar os olhos há de mostrar-lhe,
que a minha premeditada oferta de trabalhar aí, como aqui o tenho feito, no
arroteamento intelectual do povo até à plebe ínfima, não era vã. Não ia levar
aos florentes estados de vossa majestade imperial obras de talento, e muito
menos criações de gênio; mas ia sem nenhuma dúvida, juntar mais um obreiro,
crente e infatigável, aos muitos que a alma de vossa majestade está animando
nos trabalhos vastos e complexos de uma civilização, cujos futuros desde já
anteveem incomensuráveis.
Tudo estava prestes para a partida; já às saudades
da Pátria eu estava opondo, no íntimo do peito, os amores de uma Pátria nova
para meus filhos; o navio, que me leva um irmão, e por ele esta respeitosa
carta ia, levar-me enfim; quando um acontecimento imprevisto, e de força
irresistível para uma alma de bem, me veio de novo prender, na terra do
nascimento.
Os meus esforços para a instrução primária, de que
nasceram, em só meio ano mais de cem escolas gratuitas, das quais todos os dias
estão pululando escolas novas, tinham me granjeado um certo afeto popular, que
seria prêmio largo ainda para maiores fadigas; a abertura de cada aula era uma
verdadeira festa para os da terra, e uma estrondosa ovação para mim:
Autoridades administrativas, municipais, eclesiásticas e militares, me
felicitavam, associando-se na minha empresa; o melhor da imprensa quotidiana
fazia eco a todas essas demonstrações tão lisonjeiras; poetas, músicos,
desenhadores, ter-me-iam perdido de vaidade, se me eu conhecesse melhor do que
eles todos; os pequeninos descalços me saudavam pelas ruas. Era muito, era
inexplicável, e quase incrível; mas não era ainda tudo; o Paço Real Português
manifesta-me o seu sagrado: Sua Majestade Fidelíssima, Augusta irmã de Vossa Majestade
imperial, visita, mais de uma vez, as novas aulas. Ela mesma. Seu Augusto
esposo, e o primogênito o Príncipe Real, surpreenderem-me com ricas joias, me dirigem
expressões benévolas e animadoras. Por último, o parlamento e o ministério,
constando-lhes a minha tenção, patenteiam, da maneira menos equívoca e mais
honrosa, o seu desejo de me conservarem na obra do país e decidem
estabelecer-me nele, solto e liberto dos mesquinhos, dos despoetisadores
cuidados da subsistência.
Se a estas promessas solenes seguir o resultado, que
tão provado parece, hoje, a gratidão, além do patriotismo, me obriga a
permanecer, e a aguardar sepulcro onde recebi a primeira luz.
Entretanto, Senhor, como nada impede o ir qualquer
peregrino aos lugares da sua devoção ainda que eu haja de ficar afinal neste
mundo velho, espero em Deus que me não acabará a vida sem ter ido uma vez
beijar a mão de vossa majestade imperial, e soltar, à sombra das palmas, sob
esses céus, mais céus do que estes nossos, um canto de entusiasmo a essa
natureza magnífica, a esse império digno desta natureza, e a vossa majestade,
príncipe digníssimo deles ambos. Tais são; pelo menos, augustíssimo senhor, os
meus desejos mais ardentes.
Por agora, permita-me, vossa majestade imperial
mandar pôr nas suas augustas mãos esse livro, que se enobreceu com o amado nome
de sua majestade fidelíssima, e que eu, sonhador crente de grandes venturas
para o povo intitulei Estrelas
poético-musicais para o ano de 1853; assim como, por derradeiro, esses
versos Novo anjo, por mim consagrados
à sempre chorada perda da santa irmã de vossa majestade imperial, a senhora
Maria Amélia de Bragança Leuchtemberg.
Deus guarde por dilatados e prospérrimos anos, para
esplendor desse império, para amparo das ciências e letras, e para exemplar
perpétuo de imperantes, a imperial pessoa de vossa majestade.
De vossa majestade imperial, o mais profundo
admirador e o mais devoto e agradecido servo.
Lisboa, 12 de abril de 1853.
— Antônio Feliciano de Castilho”.
Afinal, cerca de dois anos depois, em fevereiro de
1855 o "peregrino veio visitar o lugar da sua devoção", e durante
alguns meses o Rio de Janeiro teve por hóspede o poeta de Os ciúmes do bardo, o pedagogista do Método Português de Leitura, o nacionalizador de Ovídio, de
Virgílio, de Goethe e de Molière.
JAIME VITOR
Jornal “Pacotilha”, 16 de janeiro de 1917.
Jornal “Pacotilha”, 16 de janeiro de 1917.
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