Palavras sobre o artista e sobre o livro “Canções"
“O homem será sempre o mortal enigma;
a sombra das sombras.”
Canções!
Canções à vida, não lamentos aos destinos. Canções à Forma que é linda, portanto, canções a Deus. É assim que Antônio Botto canta o homem, o qual vencido pende para a terra sob o peso dos sentidos; o homem escravo, o rei do Universo. Canta a humanidade e as coisas terrenas para lhes louvar a existência involuntária; canta a humanidade como ele sabe que ela é e não como ele desejaria que ela fosse. É esta a mais suave das filosofais, é esta toda a sua filosofia, criando na matéria uma arte deslumbrante de liturgias, dando a essa matéria toda uma origem divina. Se é nela que germina a forma, a cor, o som, olhar atento é rezar em silêncio. Antônio Botto louva e não maldiz, porque atravessa a existência para compreender. E, louvando, segue a eminência do pensar heleno, a grande harmonia dos dois mais nobres Princípios; — a arte e o critério; porque meditá-los é aliar num quietismo magnânimo as dolorosas imagens das nossas vidas. Canções de antigo requinte, canções de quente Sul. Canções à morna volúpia que adormece a louca angústia da razão. Canções de renascença, pelo sabor da verdade e pela técnica da maneira; canções onde a mudez não é uma crueza hostil, mas um desígnio de sabedorias, como nos dias gloriosos de Cirena, das frautas encantadas, deleusus… Canções, ao amor, — o triste desatino; ao mar gemendo lascivas, às sombras acolhedoras, ao cheiro acre das terras. Canções ao belo vinho amigo, que afasta os corpos famintos, e, a sós, sem conivências, não pedindo e não carpindo, — sem cômico e sem tragédia — canta a vida que sorri e olha os tempos sem medo. Canções cheias de sombra e cheias de intenção; canções de beleza porque são humanas e porque são raras. Humanas, dizendo a febre de todo o gozo, a luxúria que conquista, toda a posse que tortura; raras pela forma, pelo conceito, pelo sentir. Cantando a imperfeição o poeta canta a vida.
Doando
assim por essa gentil alquimia, a mais excelente das ciências com a mais
ilustre das artes, o poeta das “Canções”, prefere, ao repouso feliz do muito
desprezar, o sofrimento constante do muito amar. A vida seria melhor se nela
não existissem coisas tão belas! É a Forma que o enleva, essa forma que o tempo
absorve e devora com a vida dos artistas, porque a arte a ilumina. Essa forma
onde, por vezes, palpita um desejo decadente de perfeições aladas e que são a
decadência destas canções sentidas. Porque decadência é como um tédio cheio de
revolta motivado pela tortura da beleza para renascer no requinte da estética;
maneira de protesto genial presidindo a todos os ressurgimentos nas Artes. É a
Grécia douta e augusta, que renasce nos versos de Antônio Botto, como em todas
as renascenças; renasce numa visão de fumo lento, erguendo-se das aras votivas
ao domínio dos deuses humanos, a esse há deslumbroso de murtas, divino de
compreensões, a essa mansão da Inteligência, dirigindo as celebrações nas vestálias
como a humanidade nos peitos.
...
O homem cede ao desejo como a nuvem cede ao vento.
E Antônio
Botto louva esse desejo regendo as ações do homem, porque o homem dele nasceu.
O amor cantado assim, não é o opróbrio que avilta, mas o culto que enobrece.
Cantar a humanidade para a tornar mais bela!… Como os egípcios cadenciando-lhe
o gesto nas danças, como os gregos cultivando-lhe a graça dos ginásios, como os
romanos nos libames a Júpiter. Nestas canções, o amor, o vinho, os festins das
carnes amorosas, as penumbras lânguidas são narcóticos preciosos onde o poeta
afoga as dores do pensamento. É Vênus, Eros ou Afrodite; é o amor Universal
que, despreza a fome, a sede, a fadiga, para lançar no mesmo tropel os sexos,
as castas e as inteligências, o amor que tenta adormecer, com o seu macabro e
com o seu grotesco nos braços tolhidos da Noção; o amor, grande e Único como o
Sol, embora disperso em muitas lâminas douradas; — o amor que ergue nestas
canções o seu grito imortal; ora varonil investindo na exaltação da conquista,
ora feminil abandonando-se na ânsia da dádiva; palpitando nos peitos viris,
vencendo nos seios amorosos. É o amor profano, profano como todos os amores
humanos, os mais divinos ou os mais terrenos. É tudo que se arrasta, tudo que
se lamenta em redor do homem, suplicando uma imensa simpatia para a grande e
inalterável Animalidade, a qual é como um vasto campo, onde homens, insetos, e
gados, se agitam, entre a poderosa serenidade das formas vegetais, sob a mesma
claridade fecundante, sob a mesma armadura de velho ouro que os une e assimila.
A inspiração do poeta é nobre e ousada, porque é
dirigida pelo carinho tutelar da beleza e da humanidade. Ele faz da sonoridade
das palavras a escolha mais rítmica, mas quando essa fonética obedeça
doutamente à minúcia exigente do seu espírito raro de estilista alexandrino,
ornado, expandido nas belas letras. A sua Arte é toda harmoniosa de ironia;
dessa ironia, dessa deidade antiga forçando a inteligência a perdoar aos homens
a sua presença ruidosa e feroz, para a posse da mais gentil das coragens: —
sorrir! Então Antônio Botto não faz da eterna ignorância uma tortura,
mas uma suave piedade. Dentro do mistério Universal: — do seio que sente e
concebe, da semente que germina e ensombra, nada será espantoso, nada será
estranho. As combinações abstratas o poeta cede as combinações sensíveis; a
emoção pura, a sensibilidade consciente, a toada musical e branda. A sua
tranquila aceitação dos dilemas imutáveis pairando na vida, a sua compreensão
lógica, a sua natural intuição, animam-nos de um prazer juvenil ao falar do
artista e das suas “Canções”.
Cantam elas a treva do saber mesquinho dos homens, a ilusão de onde nascem as
angústias para a posse das venturas, a amizade nos peitos como desenhos pueris
na superfície das águas. Cantam doces crepúsculos, onde o Ideal, na solidão e
na morte, é sempre perfeito porque foge como os Sóis. São canções onde a angústia
é uma elegia de condescendências. O homem nascendo para acreditar e para
servir, o seu fanatismo vibra não das verdades mais demonstradas, mas, das
ilusões mais belas. Essa ilusão é a Arte, essa Arte uma doce ironia de conforto
belo. E o homem vai sempre imaginando e sofrendo. Entre Platão e Fídias,
Lucrécio e Virgílio, os Médicis e Miguelângelo, Luiz XIV e Racine, Goete e
Beethoven, existe a mesma comunhão de luminosidade divina, onde Jesus e São
Francisco de Assis, passam amenamente, para fazer reinar no coração dos homens
uma esperança sem fim e um encantamento sem verdade. Cantar a bondade ou a
beleza humana, é reconciliar a humanidade com a sua impudicícia e o seu
egoísmo. — Impudicícia e egoísmo, perduráveis razões de todo o ser humano! É
por essa orquestração sublime que o tédio cede à vida uma morada dileção, uma
resignação conciliante a salutar. É assim pois, colhendo de um clamor pavoroso,
uma sinfonia uníssona, vestindo com uma preciosa ironia os penosos fatalismos
das realidades, e sobressaindo na difícil maneira de ser simples, que Antônio
Botto entoa primorosamente, entre sedas e vinhos, a negra história dos
mortais: — O AMOR E A DOR.
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