Cruz e Sousa, um criador de símbolos
Texto publicado originalmente na revista "A.B.C.", em edição de 1923. Transcrição e adaptação ortográfica de Iba Mendes (2018)
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Cruz e Sousa foi um criador de imagens e de harmonias. Nunca, para a caracterização psíquica da forma literária de um escritor, a denominação de estilo musical andou mais próxima à verdade, do que referida ao magnetismo ondulante desse sutil prestidigitador do verbo. Essa musicalidade não era no artista negro o simples ressoar rítmico da indumentária poética, que exige a pausa e engasta a rima, como signos exteriores do seu cânon. Era qualquer coisa de mais íntimo, de mais profundo, que se identificava com a ondulação sonora do próprio pensamento, e era a expressão sensível, humana, da harmonia que a natureza põe às origens mesma da vida, como uma contingência do equilíbrio cósmico.
Tocados dos seus nervos de uma sensibilidade esquisita, as suas ideias, as suas imagens, as suas paralogias mais arrojadas, impregnavam-se de um sutil perfume, vibravam de sons, vestiam-se em cores, que davam às palavras novos sentidos e punham no ambiente, o frisson de nevrose, as alucinações, a semiobscuridade lunar que há no fundo dos quadros de certos pintores simbolistas. Era qualquer coisa de fino, de impalpável, de imponderável, que não se definia e, entretanto, vivia; brilho cadente, reverbero efêmero, ressonâncias tempestuosas esbatidas em marulhos, todo um admirável poder visionante, que não era bem intuição, mas que não era também observação, algo de instintivo, porém superorgânico, em que se confundiam as tintas crepusculares de um grande sonho. Vem daí o luxo não raro ofuscante, que se encontra em algumas das apóstrofes de Cruz e Sousa mais dolorosas; a superfetação das metáforas, a orgia de palavras e de tropos, com que às vezes ele procurava aturdir o seu fetichismo verbal, e que sendo às vezes incoerência, correspondia a exigências íntimas, psíquica, daquele exacerbado criador de símbolos. Foi toda assim a sua estranha poesia. Cheio de esperança, ou entregue à depressão melancólica das desilusões, o que sobretudo ele realizou, o que ele viveu foi um dramático destino, cortado de clarões, uma como noite escura e desolada que sabia transformar em alvoradas.
Tocados dos seus nervos de uma sensibilidade esquisita, as suas ideias, as suas imagens, as suas paralogias mais arrojadas, impregnavam-se de um sutil perfume, vibravam de sons, vestiam-se em cores, que davam às palavras novos sentidos e punham no ambiente, o frisson de nevrose, as alucinações, a semiobscuridade lunar que há no fundo dos quadros de certos pintores simbolistas. Era qualquer coisa de fino, de impalpável, de imponderável, que não se definia e, entretanto, vivia; brilho cadente, reverbero efêmero, ressonâncias tempestuosas esbatidas em marulhos, todo um admirável poder visionante, que não era bem intuição, mas que não era também observação, algo de instintivo, porém superorgânico, em que se confundiam as tintas crepusculares de um grande sonho. Vem daí o luxo não raro ofuscante, que se encontra em algumas das apóstrofes de Cruz e Sousa mais dolorosas; a superfetação das metáforas, a orgia de palavras e de tropos, com que às vezes ele procurava aturdir o seu fetichismo verbal, e que sendo às vezes incoerência, correspondia a exigências íntimas, psíquica, daquele exacerbado criador de símbolos. Foi toda assim a sua estranha poesia. Cheio de esperança, ou entregue à depressão melancólica das desilusões, o que sobretudo ele realizou, o que ele viveu foi um dramático destino, cortado de clarões, uma como noite escura e desolada que sabia transformar em alvoradas.
Bastaria o gênio de Cruz e Souza para afirmar a fisionomia de uma época e exaltar a capacidade imanente de um povo. Ele é, antes de tudo, um rútilo traço de união das distintas culturas que se amalgamaram e se desenvolveram entre nós ao longo dos séculos.
E, confundindo-as, integrando-as, deu-nos o exemplo de uma feliz convergência entre todas elas, destacando a unidade da língua portuguesa e mostrando que a literatura está acima dos abjetos preconceitos.
A.B.C., 24 de março de 1923.
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